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quarta-feira, 10 de junho de 2020

Maktub - 59



Eu era ainda muito pequena quando comecei a ter um sonho que se tornou recorrente. Um sonho que se desencadeou na infância e me acompanhou pela vida fora até muito tarde, até um dia desaparecer de vez. Muito provavelmente desapareceu quando já não precisava mais dele.

 

Não era um sonho agradável nem um pouco. Era sempre a mesma imagem e o mesmo formato. Eu acordava e pensava, cá está ele uma vez mais, a invadir os meus sonhos e a perturbar o meu acordar.

 

Enquanto criança perguntava a mim mesma porque havia de sonhar com aquilo? Porque aquilo incomodava-me. Era quase um pesadelo, embora não tivesse a mesma força. E à medida que fui crescendo não tive outro remédio senão habituar-me a acordar, lembrando mais uma vez o repetidíssimo sonho, para não me esquecer nunca dele, embora eu já o soubesse de cor. Às vezes repetia-se na mesma semana, outras vezes podia ter intervalos maiores, de várias semanas, de vários meses e até anos. À medida que eu crescia tornava-se  mais espaçado, mas sempre o mesmo sonho, sempre igual. E se bem que inicialmente, ou porque era muito pequena ou porque não queria “ver”, eu me perguntava o porquê de sonhar aquilo, bem depressa fui obrigada a admitir que aquilo tinha um propósito, uma advertência, uma mensagem muito bem codificada e não dava mais para fingir que não era nada. De facto, mais tarde eu haveria de perceber que aquilo estava bem relacionado com toda a história da minha vida, com todo o percurso que estava à minha frente.

 

Eu entrava numa sala ou num quarto, não sei, porque não havia mobiliário algum. Eram quatro paredes brancas e uma porta aberta, por onde eu entrava e onde começavam imediatamente a cair do tecto também branco, enormes blocos cilíndricos presos por uma corda, que desciam caindo no chão de forma aleatória. Um após outro, ou seja, mal um assentava no chão já outro estava a despencar do tecto. Eram enormes, pelo que, se caíssem em cima de mim, matam-me, sem qualquer sombra de dúvida. E eu ia saltitando, naquele espaço limitado, ia-me desviando ao acaso, sem nunca saber de onde sairia o próximo, para me poder desviar e proteger daquele inferno. O chão chegava a ficar cheio, sem mais espaço e quando assim era e eu não acordava para interromper aquela aflição, eles começavam a cair por cima dos que já estava no chão, enquanto eu continuava a movimentar-me sem parar, apenas para dar tempo a que não me apanhassem. Era aflitivo. Era um desafio que ia sempre aumentando e punha à prova a minha capacidade de resposta, sendo que essa resposta não se compadecia de inteligência ou de conhecimento, ou fosse do que fosse. Era o factor “sorte” que orientava a escolha. Ou então uma intuição. “Talvez” aqui, “talvez” ali. O facto é que ao acordar eu sempre tinha a mesma sensação de que, no fim de contas, eles, os cilindros de pedra, nunca me apanhavam. Eu sempre conseguia safar-me.

 

O sonho tinha dois lados, como uma moeda. Os prós e os contras, como tudo na vida, com a seguinte mensagem: “a tua vida vai ser sempre em função da tua orientação, aliada a uma especial intuição, onde os perigos estarão sempre à espreita, todavia, a sorte, ou a tua boa estrela sempre te guiará”.

 

Assim, aprendi a não ter medo. Aprendi que a vida é tudo o que temos que enfrentar, seja bom ou não. É o destino, como dizem os árabes “maktub”.