Estávamos
num Centro Comercial e Conchinha queria comprar uns sapatos. Na verdade, nunca
chegámos a perceber se queria comprar ou experimentar. Sim, porque
experimentava, experimentava e nada lhe agradava. Mas havia algo de estranho
nisto. Quando ela via um modelo de que gostava, pedia sempre o mesmo número, um
número quase de criança, o que raramente havia, e quando havia estava muito
apertado para o seu pé. Quem a atendia apressava-se a ir buscar o tamanho maior,
que ela logo rejeitava, alegando que o número tinha que ser aquele, porque era
aquele o número dela. E porquê? Porque, dizia ela, tinha pés de “princesa”, do
qual não abdicava de jeito nenhum, ainda que os pés tivessem que sofrer as passas
do Algarve, pois o importante era ter pés de princesa. Todos sabemos que às
vezes, dependendo do modelo, o tamanho poderá ser alterado, coisa que ela não
conseguia admitir. Enfim, cada um com suas manias e Filomena e eu olhávamos uma
para a outra, trocando olhares com mensagens codificadas, sem necessidade de
palavras. Já conhecíamos muito bem a peça, com estas e outras manias.
As
duas são irmãs, Filomena e Concha, sendo que ambas têm um problema muito
complicado: vivem num fuso horário completamente diferente do das outras
pessoas. É como se vivessem no outro lado do mundo. Não têm horas para nada e
quando se combina alguma coisa é um verdadeiro suplício. Em todo o caso, nunca
admitem que estão atrasadas, etc… etc… etc. São vidas e maneiras de estar na
vida. Já eu sou o oposto. É ao minuto, ao segundo ou um pouco antes, conforme o
caso. Enfim…
Um
dia, Filomena perdeu o cartão de débito. Uma chatice. À hora que foi os bancos
já estavam fechados, por isso, teria que ficar para o dia seguinte. No outro
dia à noite quando lhe telefonei para saber se tinha dado baixa do cartão
fiquei de queixo caído quando ela me disse que chegou lá e já estava fechado.
Mas disse-me isto como se o banco tivesse fechado propositadamente para não a
atenderem. Perguntei-lhe a que horas tinha ido, claro, teve o dia todo para se
arranjar e embonecar e chegou ao banco aos quarenta e cinco do segundo tempo,
bateu a cara na porta e ainda teve o desplante de pedir para a atenderem!?
Claro que não foi atendida. Como é possível?!
Uma
vez combinámos ir ao cinema. Era uma matiné por volta das cinco ou seis horas
da tarde. Já contando com os atrasos dela dei-lhe meia hora de antecedência.
Quando cheguei à porta chamei-a pelo telemóvel. Disse que era só calçar os
sapatos. O tempo passava e ela não aparecia. Voltei a ligar, era só pegar na
mala. Continuei à espera e tive que ligar mais uma vez. Era só passar batom nos
lábios. Quando finalmente chegou ao carro, já tinha passado a meia hora de
tolerância e mais outra meia hora. Portanto, o cinema já era. Mas ela
continuava a achar que se tinha atrasado só um pouquinho.
Concha
é igual ou pior ainda. E andamos sempre juntas para concertos, cinemas, idas ao
Centro Comercial, almoços ou jantares, pelo que com elas é uma verdadeira
tortura. Mas são minhas companheiras de vida, minhas irmãs do coração e só por
isso tudo vale a pena.
Agora
eu tinha um telemóvel novo e estava a instalar as fotos nos respetivos números,
o que se torna mais fácil de identificar. Como estava com as duas pedi-lhes
para me deixarem fazer as fotos delas. É claro que houve logo um ensaio e um
cuidado de estarem bem, retocando os lábios e passando as mãos nos cabelos a
compor os rostos. Esperei o tempo necessário e quando concluíram tirei as
fotos. Não foi uma nem duas, foram várias, para uma e para outra, porque ambas
queriam escolher. Disse-lhes que era apenas para pôr nos números de telefone
para quando estabelecesse ligação com elas, mas isso não invalidava. Queriam
estar aprovadíssimas por elas mesmas, o que não tem mal nenhum, apenas um pouco
de exagero. Mas tudo bem. E com toda a paciência delas e minha, por razões
diferentes, lá concluí o que me interessava. Isto foi feito no Centro Comercial,
entre o experimentar de sapatos que nunca mais acabava, com a permissão das
duas, perfeitamente cientes do que se tratava.
Um
dia, depois de um concerto, em que já estávamos só nos duas, Conchinha e eu, no
carro dela, passando mesmo em frente ao Corte Inglês, Concha começa a dizer que
podíamos dar um saltinho lá para comer alguma coisa. E enquanto pensa e não
pensa, decide parar na faixa de rodagem como se fosse em segunda fila, mas sem
sequer encostar e chegar à direita. Parou bem ao centro, sem sinais luminosos a
indicar a paragem e sem a mais pequena preocupação, sacou o telemóvel da mala e
começou a escrever uma mensagem. Atenta a tudo o que dali vinha, achei estranho
e um perfeito disparate tudo o que estava a acontecer. Parar ali, sem mais nem
menos e pegar no telemóvel para responder a uma mensagem, numa zona movimentadíssima
como aquela, até me encolhi toda, pois o sinal de perigo era muito grande. Os
carros que vinham de trás com toda a facilidade podiam bater e de quem era a
culpa?
Chamei-a
a atenção, com uma certa calma, mas ela respondeu que era urgente responder
àquela mensagem. Mas aqui e agora neste sítio, com o carro assim, mesmo a pedir
para levar uma batida por trás? Ela achou que não, que não estava nada assim
tão mal e que os outros é que tinham que ter cuidado, pois poderiam esperar um
bocadinho. E continuava que o que estava a fazer era muito importante.
Eu
estava pior que estragada e agoniada de todo, com uma atitude tão
irresponsável! Sabia perfeitamente que dali tudo era possível, mas ainda assim,
estava sempre a ser surpreendida. É que as coisas podem piorar sempre(!). Nunca
sabemos qual é o limite.
Não
tendo como demovê-la daquela loucura e achando que ela tinha idoneidade mais do
que suficiente para perceber a que estava a sujeitar-se e a mim também, o que
me restava fazer era alhear-me e entregar-me à sua vontade, uma vez que quem
estava ao volante era ela. Assim, peguei também no meu telemóvel e
concentrei-me nele, a ver uma coisas.
A
páginas tantas, Conchinha arranja maneira de dar uma olhadela de soslaio e
pergunta “mas a menina tem aí a minha foto?” Sim, respondi, a foto associada ao
número de telefone. Não percebi muito bem o que ela queria com aquela pergunta
e não liguei ao assunto. Mas ela continuou “mas a minha foto está aí no seu
telemóvel?”
Conchinha,
que tem mais dez anos do que eu, tem a mania de me tratar assim. Aliás não é só
a mim. Ela dá-se uns ares de uma senhora muito fina e muito requintada, o que
nos dá um certo gozo. Já nasceu assim e será sempre assim. Além disso, a sua
idade em vez de aumentar, como a de toda a gente, vai baixando, ao ponto de as
irmãs na brincadeira dizerem que ela já é mais nova do que a filha,
simplesmente porque acha que não aparenta ter mais do que quarenta anos, quando
tem quase o dobro.
Voltei
a responder que sim. Mas eu não sabia, interpelou ela, não sabia que tinha aí a
minha foto. Ora essa, respondi, então não tirei uma vez no Centro Comercial, a
ti e à Filu? Ah, mas eu não sabia que era para ter aí no telemóvel. Treta,
claro que sabia e muito bem. Até tive que tirar uma série delas porque ela não
se contentava com nenhuma, por isso fiquei sem perceber a reacção dela. E
disse-lhe que tinha pedido às duas, dizendo-lhes para que efeito era, no que elas
concordaram. Mas Conchinha continuava afirmando que não sabia e resumindo e
concluindo, não queria que eu tivesse a foto dela no telemóvel. Pensei para
comigo mesma, isto é de doidos. Para começar, continuávamos paradas num lugar
daqueles e sem necessidade nenhuma. Depois começa a enviar mensagens e depois
ainda começa a chatear a minha paciência com uma porcaria daquelas?!
E
continua a insistir que não quer a foto dela ali. Apague, ordenou com o
indicador bem esticado. Apago? Mas porquê? Porque eu não quero a minha foto aí?
Essa agora, de repente lembrou-se daquilo e faz uma birra que nem uma criança
pequena! Mas apago porquê? Estou mandando. Apague imediatamente a minha foto.
Por
instantes fiquei calada, pensando, mas porque é que eu tenho que apagar? Qual é
o problema? Ela sabia perfeitamente quando lhe tirei a foto que era apenas para
aquilo, pois eu nem Face Book uso. Não tinha a mais pequena possibilidade de achar
que ia utilizar a foto para… sei lá o quê. E então ordena que apague no meu
próprio telemóvel? O telemóvel é meu! Eu apago se quiser! Se lhe tivesse tirado
a fotografia sem ela dar por isso eu até entendia, mas do jeito que foi, não.
Aquilo não tinha pés nem cabeça!
Acontece
que quando as pessoas têm atitudes que eu não consigo compreender, por mais
disparatadas que sejam, não desisto de tentar entender. Acho que é importante
compreender o ser humano. Eu também tenho as minhas manias, as minhas coisas e
somos todos diferentes uns dos outros. Cada um é um mundo. Um mundo secreto, um
mundo desconhecido. É interessante penetrar nesse outro mundo e perceber o que
há lá. É uma experiência que pode ser importante. Desconsiderar isso não é
talvez a melhor atitude.
Comecei
então a forçar a pergunta. Mas porquê? E embora ela continuasse no mesmo
registo, eu estou mandando, etc…, continuei a ignorar, só podia, a menos que
ela me desse uma boa razão, o que eu não antevia nem imaginava. E como eu não
obedecia e ela não queria ser vencida, depois de uma luta para lá, para cá e
tal e coisa, Concha descaiu-se e deixou sair o maior absurdo que já ouvi, vindo
de qualquer pessoa, mas dela, uma mulher que, à parte as suas manias e
esquisitices – todos as temos -, é culta, vivida, com um historial
interessantíssimo e uma experiência de vida com um certo peso. Concha respondeu exactamente isto: "às vezes tenho
tonturas e eu não sabia porquê. Agora já sei..."
Eu
pensava que não estava a ouvir bem. Mas ela continua: sim, o telemóvel está
sempre a movimentar-se de um lado para o outro e isso faz muito mal à minha
cabeça…(?!)
E eu
continuava sem palavras, tentando digerir o que acabava de ouvir e perguntando
a mim mesma “mas ela disse isto?”, à espera que fosse apenas uma brincadeira,
que nem por isso fez com que eu apagasse a foto, enquanto ela reafirmava
convicta e de viva voz “agora já sei porque tenho tonturas” … (?!)