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segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

O Poço - 56


Era um belo dia de Outono em que a folhagem cobre todo o chão, juntando-se aqui, juntando-se ali e especialmente nalguns sítios específicos, no poço, completamente coberto de folhas secas, caídas das árvores e arrastadas pelo vento.

 

Apesar de Outono o dia estava lindo, o céu azul transparente e o sol afagava docemente como que acarinhando a nossa pele. A quinta era um convite ao bem estar, ao lazer, à boa disposição. Sobretudo, depois da excelente refeição com que fomos presenteados. Pessoas humildes, mas gente muito boa que davam o que tinham e o que não tinham.

 

O gado pastava livremente enquanto estávamos sentados em volta da mesa conversando disto e daquilo, vagarosamente, sem pressa de nada. As crianças brincavam e a quinta parecia que sorria alegremente para nós.

 

Para quem nasce na cidade, vive na cidade, a oportunidade de estar entre a natureza é uma verdadeira dádiva. Era assim que eu me sentia. Presenteada pela vida. E aquilo é que era correr, espreitar tudo, observar as sementeiras, contar as árvores de fruto, tudo era motivo de admiração e observação. E o poço!...

 

O poço já deveria ser muito velho. Já devia ter dado muita água, regado muita terra, alimentado muito gado e muita gente, como não? Uma quinta não sobrevive sem um poço. Agora, o tempo tinha passado, tudo era diferente, mas o poço lá estava coberto pela folhagem. Por baixo da folhagem devia haver terra seca ou enlameada, se é que alguma coisa sobrava.

 

E não havia tédio. De alguma forma todos se distraíam. Ao fim do dia partiríamos, mas até lá, era aproveitar com todo o agrado o que a natureza tinha de melhor para nos oferecer.

 

E a brincadeira foi para o jogo das escondidas, onde cada um arranjava um sítio melhor que o outro. Estava realmente um dia excepcional e um clima maravilhoso. E o poço!... O poço, que sem saber porquê, tanto me cativava, activando a minha imaginação. Mas ali não havia nada. Apenas folhas e mais folhas, um verdadeiro amontoado de folhas. Seria interessante que assim não fosse, que estivesse limpo e cheio de água. A água é sempre interessante de se observar. E imaginava o poço a funcionar, com baldes carregados de água a saírem de lá para várias funcionalidades. Olhava a espessa camada de folhas e tentava imaginar água limpa, onde tudo se reflectiria. Rostos, corpos, árvores, céu, sonhos… enfim. Era uma pena o poço tão seco e abandonado.

 

No meio de tanta brincadeira e descontracção, de um dia que parecia perfeito, apeteceu-me entrar no poço, passar para o seu interior. Sem hesitar, pulei o muro que o circundava, com cuidado para não me desequilibrar e cair, não fosse magoar-me, o que não dava jeito nenhum e fiquei de pé, prontinha para cair lá dentro. E no preciso momento em que me predisponho a saltar para dentro, eis que uma pedra vinda não sei de onde, alguém que se lembrou de a atirar, passa no meio da folhagem, ao mesmo tempo que se ouvia um som característico como um “tlim”… desaparecendo por completo, enquanto um repuxo de água se solta, atingindo uns bons centímetros de altura, para voltar a cair por sobre a folhagem, abrindo caminho, apartando as folhas secas, deixando-me com a respiração cortada e completamente em desequilíbrio, quase sem tempo para apenas recuar, olhando abismada as folhas que continuavam a deslocar-se, mostrando toda a água e mais água, que se aclarava e se aquietava à medida que as folhas se afastavam, levando o meu enorme espanto, que seguia o rumo da pedra, perdendo-se pelo poço dentro para no fundo repousar e não mais voltar.