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segunda-feira, 11 de setembro de 2017

O Henrique nasceu - 39


No dia sete de setembro de 1980 eu estava em apuros. Mas os apuros já tinham começado cerca de nove meses antes, quando um dia disse ao meu marido: “acho que estou grávida”. Faltava uma semana para o período menstrual aparecer, mas eu sabia que estava grávida. A resposta dele, contudo, não se fez esperar e bem ao seu estilo, disse simplesmente: “hum? É impressão tua…” pois claro, era sempre tudo impressão minha. O facto é que passaram os dias e o período menstrual não aparecia e como tal, decidi ir ao médico e fazer as análises necessárias.

Numa manhã bem cedo, antes de ir trabalhar, recolhi a urina numa garrafa de plástico para ir ao laboratório, mas como devia ser apenas impressão minha, o meu marido que era muito boa pessoa, mas nunca facilitava a minha vida, decidiu que preferia ficar a dormir. E quanto a isso não havia nada a fazer. Barafustei, mas de nada serviu. Lá fui, toda nervosa, com a garrafa da urina que coloquei no banco da frente ao lado do condutor, amparada com o meu saco de mão, com todo o cuidado possível a fim de não se entornar, porque eu queria fazer as análises o mais rápido possível para ter a certeza do que eu já tinha. Mas precisava de ter o branco no preto e o preto no branco para começar a tomar providências.

As ruas de Ponta Delgada, S. Miguel (Açores), valha-me Deus(!), era só empedrado e o centro histórico todo muito estreito, com os carros estacionados à balda. Passar pelas ruelas com curvas, pouco a pouco vira à direita, vira à esquerda, era um inferno. Nessa altura, ainda não tinham direcção assistida, o que não facilitava e eu, nervosa para chegar lá, fazer o teste e esperar pelo resultado… numa curva logo ao entrar na rua, com carros estacionados pela berma, fui apanhada de surpresa e para não bater, dei uma guinada rápida, esquecendo-me completamente da urina. Pronto, o frasco foi parar ao chão. Aflita, para não perder a urina, descorei a direcção e fui justo bater no que estava estacionado na entrada da rua. Apanhei o frasco e o carro parou enfaixado no outro que estava parado, pum(!)… estava feita. O dia estava a começar bem. O outro na cama, no sono dos justos e eu feita num oito àquela hora da manhã. Tombei a cabeça sobre o volante com os braços em volta e aí fiquei, sem querer pensar em nada. Só queria não ser eu e não estar ali e… e… e…

Embrulhada nesta confusão, ouço uma voz de homem com uma pronúncia bem cerrada, tipicamente açoriana, numa gritaria histérica, como se tivesse morrido alguém e abrindo a porta de casa, sai na minha direcção aos gritos, pondo-me mais nervosa do que já estava. E o outro em casa a dormir, descansado da vida, sem se ralar com nada. Levantei a cabeça que estava sobre o volante quando ouvi as insistentes batidas no vidro da janela do carro. O Ferreira – que naquela altura eu ainda não conhecia -, com as mãos à cabeça, começa a desboninar: “tá doida? Nã viu o que fez”? Deu cabo do carro do mê pai!”

Disse-lhe que não se preocupasse porque o seguro tratava disso. Mas ele não queria saber, só estava ralado com o carro do pai. E começou a fazer perguntas estúpidas, por exemplo, porque tinha feito aquilo. Respondi-lhe entre o choro que, como era óbvio, não tinha sido de propósito. Tinha sido acidental. Que estava nervosa, caso ele ainda não tivesse percebido. Que ía a caminho do laboratório e que o meu marido não se tinha prontificado para me acompanhar. Aí, o Ferreira – que eu ainda não sabia quem era - já começou a acalmar e a pedir-me também para me acalmar. Ele era muito engraçado. Depois, tornou-se num dos melhores amigos, que faria parte de muitas das nossas grandes aventuras pela vida fora, mas naquela altura era um estranho.

Mas quando lhe disse que ia para o laboratório fazer análises, logo baixou a guarda, perguntando com um ar muito constrangido, se estava doente. Respondi que, em princípio, estaria grávida, mas que estava nervosa. Então ele cedeu, parou definitivamente de resmungar comigo e começou a ter pena duma mulher sozinha, indefesa, desprotegida do marido. Até lamentou o facto dele não ter querido acompanhar-me. E ainda sem saber quem eu era, retorquiu “ai o sacana, ficou dormindo, na querem lá ver!” E então, a curiosidade foi maior e resolveu perguntar: “mas quem é o sê marido?” Disse-lhe quem era e ele olhou para mim com uma expressão que nunca mais esqueço, com os olhos muito abertos, repetindo o nome dele, nem queria acreditar no que ouvia. “Ah… deixa estar, ê digo-lhe como é… então ficou na cama em vez de se levantar e ir contigo?”… aí já me tratava por tu, com grande intimidade. E como se nos conhecêssemos há muito tempo, disse: “vamos lá a casa, quê vô fazê esse malandro se lavantá e é agora”…

Bem, lá fomos, porque o carro, apesar da batida, andava. E foi ele conduzindo por conta do meu estado de nervos. E chegando a casa lá foi tirar o outro da cama que acabou por ir comigo às análises, já quase a fechar a porta do laboratório. E os dois ora riam ora se insultavam, ora praguejavam ora gracejavam. Enfim, tinha que me habituar a tudo aquilo, àquela gente, àquelas situações e percalços inusitados. E uns dias depois lá veio o resultado da análise que dava a gravidez como confirmadíssima. Fora de questão ser apenas “impressão minha”…

E, como eu ia dizendo, no dia sete de setembro de 1980, estava eu na clínica onde o meu filho nasceu. Já o chegar à clínica foi outra cegada. Uma confusão dos diabos.

Era uma sexta-feira à noite e estávamos com um grupo de amigos muito chegados, quase família. Nesse fim de semana o meu marido estaria de emissão, o que significava que trabalhava sábado e domingo pela noite dentro. Eu estava cansada e ia aproveitar para descansar. Diziam-me para tirar férias de parto e ficar em casa, mas eu preferia deixar todo o tempo possível para depois do nascimento, a fim de ficar com o meu filho o máximo de tempo antes de regressar ao trabalho. Os nossos amigos iam passar o fim de semana algures no Alentejo e insistiam para eu ir com eles. Precavida como sempre fui, achei que a partir daquele momento tinha que ficar atenta, pois acabava de entrar nos dez dias antes da data prevista pelo médico. E diziam ah, hão-de passar os dez dias e mais outros tantos e tu à espera… é o primeiro filho… é sempre assim (ou quase sempre).

O facto é que eu disse “não, obrigada, mas não vou. Daqui não arredo pé. Se ele decidir nascer quero ser assistida pelo meu médico”. E riam. Deixá-los rir, pensava eu. Ninguém me dizia o que eu havia de fazer(!). E assim, contra tudo e todos, fiquei no meu canto. Isto foi numa sexta-feira. No sábado seguinte quando acordei, eram umas sete horas da manhã, senti uma forte vontade de fazer xixi. Queria dormir mais, mais a bexiga não deixava, não dava tréguas. Contrariada, levantei-me para ir à casa de banho. E voltei para a cama, supostamente para continuar o meu precioso sono. Mal fechei os olhos a bexiga começou novamente a dar sinal e pensei “o que raio é isto que não me dá sossego, quero dormir e não consigo?!”

E mais uma vez me levantei para ir à casa de banho, mas não saía xixi. De repente começo a ver uma água a correr pelas pernas abaixo e em seguida, a água ensanguentada. Pensei mais uma vez “que raio é isto?” Mas logo se fez luz e pela dor que senti na bexiga, percebi que as águas estavam a rebentar. Bingo! Se eu tivesse ido passar o fim de semana para o Alentejo estava mesmo lixada, pensei. As dores começaram com toda a força e percebi que tinha entrado em trabalho de parto. Voltei ao quarto, já quase sem poder respirar com a força das dores e tentei acordar o meu marido várias vezes, dizendo-lhe que tinha que se levantar para me levar à clínica. “O que é?”, dizia ele. “Deixa-me dormir”. Desculpa, dizia-lhe eu, levanta-te o bebé vai nascer. “Não pode ser, ainda é cedo, faltam dez dias”. O bebé vai nascer, levanta-te para me levares à clínica que não tenho tempo a perder. Respondeu: “Deita-te e dorme, é impressão tua”(?). Percebi que mais uma vez não podia contar com ele. O que fazer?

As dores eram tantas e tão em cima umas das outras que eu tinha a certeza de que estava a entrar em trabalho de parto e uma vez que já tinha percebido que só podia contar comigo, tinha que ser prática. Ainda abri o roupeiro para tirar um vestido, mas as dores já não me deixaram chegar lá. Saquei do que tinha usado no dia anterior e que estava em cima da cadeira e com muito custo lá vesti. Peguei numa toalha turca grande e enrolei à minha volta por baixo do vestido. Peguei no saco de mão e saio porta fora decidida a mandar parar o primeiro carro que parasse, fosse quem fosse. E assim foi. Naquela figura, fiquei no meio da estrada e mandei parar um carro conduzido por um indivíduo qualquer, o primeiro que apareceu. O homem não queria parar, mas perante a minha insistência e a minha figura, lá parou. Abriu a janela do carro e antes que começasse a falar pedi-lhe por favor, que me levasse à Clínica de S. Gabriel, na Almirante Reis.

A cara dele era um espanto. Não percebia nada. Já não sei o que ele disse, mas expliquei que estava em trabalho de parto, o que dava para perceber por causa do toalhão enrolado, e que precisava urgentemente de dar entrada na clínica onde o meu médico me assistiria. Ele só perguntava: “então, mas está sozinha, não tem ninguém que a leve?” E eu nem sabia o que responder e nem tinha tempo nem paciência para entrar em detalhes. Disse-lhe que não, mas ele estava baralhado, confuso e sem saber o que fazer nem o que pensar. Não lhe dando alternativa, respondeu: “bom, está bem… venha lá…”, ao mesmo tempo que abria a porta para eu entrar, constrangidíssima com a situação, mas sem alternativa. Há alturas na vida em que não é possível parar para pensar, porque não há mesmo o que pensar. Era o caso. A única coisa que eu tinha que fazer era agir e agir rapidamente para não ter dissabores. Mais tarde, com certeza pararia para pensar em tudo aquilo. Naquele momento, era tudo menos oportuno.

E quando já estava a entrar no carro, começo a ouvir uma voz, ao longe: “eh, espera aí, onde é que vais”? Onde é que vais(?)… era mesmo essa a pergunta certa para o momento. Reconhecendo a voz do meu marido, sinceramente não sei se fiquei mais aliviada ou mais nervosa do que já estava. “Eh, o que é isso, espera, espera!”. O sujeito, que já estava resignado a ter que me levar, olha e pergunta: “quem é você?” E antes que ele respondesse, apressei-me a dizer que era o meu marido. O homem ficou possesso da vida. “Seu marido, e deixa a senhora neste estado, nesta situação, mas que raio de pessoa é você, não tem vergonha?” O outro, com as calças, uma perna enfiada e outra por enfiar; um sapato na mão e outro calçado, e com as chaves do carro no bolso das calças, começa a responder: “cale-se e vá-se embora”. Mas o homem não se calava: “não tem vergonha duma cena destas, onde é que já se viu, deixar a mulher numa situação destas(!?)”; “cale-se e pode ir andando”, respondia o meu marido.

E por momentos os dois pegaram-se e eu a ver que ainda ia haver porrada e tudo o que eu queria era ir para a clínica para o meu filho poder nascer, já que tinha chegado a sua hora. E desesperado, chamando nomes por todo o lado, o sujeito dizia “nunca vi uma coisa assim(!)”… e com isto lá se foi furioso da vida.

Entrei no nosso carro e lá fui a caminho da clínica. A meio do caminho tive que pedir para ele acelerar, porque realmente não tinha posição para estar. Chegados à porta da clínica lá saí com imensa dificuldade já em andar, enquanto ele ia “só” estacionar e tomar café. Entrei, fui à recepção e assim que olharam para mim imediatamente chamaram uma maca que me levou direitinha à sala de partos. Chamaram o meu médico, esperei por ele uma hora e às dez menos dez da manhã, o meu filho nascia. Agora estava tudo bem ou quase tudo, uma vez que as coisas são como podem ser.

Entretanto, o meu marido que tinha ido apetrechado de câmara de filmar e fotografar, porque estava muito na moda essas coisas, depois de ter estacionado, tomado o café e sei lá que mais o quê, calma e tranquilamente, entrou na clínica, dirigiu-se à sala de estar, abriu o jornal e refasteladamente aí ficou. A recepcionista, vendo-o ali, sem dizer nem perguntar nada, teve a percepção de que tinha a ver comigo e perguntou-lhe o que estava ali a fazer: “a minha mulher acabou de dar entrada”. A sua mulher já teve bebé, está tudo bem e pode subir para os ver, respondeu a recepcionista. “Não pode ser, ela acabou de entrar”. A sua mulher já teve bebé, pode subir, continuou a empregada. Mas ele não se convencia, enquanto a outra lhe afirmava que o filho já tinha nascido. Ele só achava que não podia ser, que era muito cedo. Só lhe faltou dizer que era “impressão dela”(!).

E no dia sete de setembro de mil novecentos e oitenta, mesmo sem filme e sem fotos, contra tudo e todos, o Henrique, nosso único filho, nascia, por sua livre e própria vontade.