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quinta-feira, 25 de setembro de 2014

LQ escondido - 9


Apressado, LQ tinha entrado no gabinete. Não ia jurar, mas era quase certo. Na minha estratégica posição, plantada no meio da sala, como convinha, para poder dar apoio a toda a estrutura da Direcção e, ainda que estivesse concentrada no que estava a fazer, quase podia garantir que o tinha visto passar.

 

Pouco tempo depois passa IC, também apressada, ao encontro dele, pensei. Mas, conforme entrou, saiu, percorreu todos os gabinetes e todo o open space da Direcção, parecendo uma barata tonta. O que é que esta quer, pensei para comigo mesma. Anda há procura de quem? Se não é do LQ, de quem mais pode ser?

 

Adivinhando o meu pensamento, chega junto de mim e pergunta-me pelo Luís. Respondo-lho que penso que está no gabinete, mas logo ela se apressa a negar, dizendo que não. Um não vago, contudo. O facto, é que ela tinha ido lá, portanto, tinha visto com os seus próprios olhos e um pouco esmorecida, que não era nada o seu género, deu à sola.

 

Continuei a fazer o que estava a fazer, mas mesmo sem querer, aquela cena não me saía da cabeça. Ia jurar que tinha dado pela entrada dele, mas não me lembrava de o ter visto sair, o que não queria dizer não tivesse saído sem que eu reparasse. E também não tinha acerteza absoluta dele ter entrado. Eram tantas entradas e saídas que a minha cabeça não podia ter certezas absolutas. Alguma coisa não batia certo, mas não percebia o que era. Para não me levantar, levantei o auscultador, liguei a extensão da Catarina e olhando para trás, porque ela estava na outra ponta da sala, perguntei-lhe se sabia do LQ, ao que respondeu “sim Luisinha, o senhor engenheirinho está no gabinete”. A Catarina falava tudo em “inho”. Respondi que também achava que sim, mas que a IC tinha ido lá e ele não estava.

 

Como ela era directamente secretária dele, podia ser que ele tivesse saído sem eu ter reparado e que lhe tivesse dito alguma coisa. Agora ela vinha confirmar que ele estava lá. Mistério… Perguntei-lhe se ela tinha a certeza e ela respondeu “sim, Luisinha”, sorrindo, com o seu sorriso de orelha a orelha, que fazia parte dela. Perguntei-lhe então se não tinha visto a IC. Respondeu que “sim, sim”, como um robot. Continuei, dizendo-lhe que ela não o tinha visto no gabinete. Encolheu os ombros docemente, riu e voou. Quando as coisas a ultrapassavam ela simplesmente desligava-se, não as confrontando. Cada um é como é. Mas a Catarina era gira. 


Claro que o homem não estava. A IC não era tonta. Era, mas de outra natureza, por exemplo, gostava de dar nas vistas e dava, mas não vem ao caso. E não sei porquê, mas levantei-me para ver com os meus próprios olhos que ele realmente não estava, caso contrário não ia conseguir concentrar-me no que estava a fazer. A minha cabeça continuaria a pensar naquele enigma. Era muito mais fácil ser como a Cathy, mas eu não era assim. Por isso, levantei-me e fui ao gabinete dele.  


E lá estava ele. O estranho é que não fiquei tão espantada como deveria ter ficado e não tanto porque a Catarina dizia que ele estava lá. É que, apesar de tudo, eu confiava bem mais em mim e a minha intuição dizia-me que ele estava. Eu sentia a presença dele lá, muito embora a IC não o tivesse visto. A Catarina tinha razão, mas isso era secundário, porque o mistério permanecia. Como é que a outra não o tinha visto?! O homem estava ali, sentado à secretária, a trabalhar ou a fingir que trabalhava; também não vem ao caso, mas que mágica tinha ele feito para não ter sido visto num espaço tão reduzido?!...  

 

Ingenuamente, perguntei-lhe se não estava ali quando a IC o tinha ido procurar. Respondeu que sim. A minha cabeça estava a dar um nó. Parecia que estava tudo doido. Mas ela esteve aqui e disse que o engenheiro não estava, disse eu, intrigadíssima. Respondeu, então, que ela não o tinha visto. Eu estava absolutamente incrédula. Credo, engenheiro, disse-lhe eu, se estava aqui, como é que a doutora Isabel não o viu?  


Aquilo, realmente, era de doidos. Eu abri a porta do armário e escondi-me atrás, continuou ele. Jesus! Naquela casa aconteciam as coisas mais loucas que se podiam imaginar, mas um Assessor do CA escondido atrás de uma porta de armário, como um qualquer garoto, era demais!

 

Em frente à secretária dele havia um armário/estante encostado à parede e o espaço entre armário e a secretária era minúsculo, dando apenas para uma cadeira, quando iam falar com ele. Olho para baixo e vejo o chão cheio de papéis, papéis, papéis. Agora olhava para o espaço da porta, que ainda estava aberta, e a parede e imaginava o LQ ali entalado para se esconder da IC. Logo eles, que passavam a vida enfiados naquele pequeníssimo gabinete, rindo escandalosamente, completamente histéricos e a pobre da Cathy ainda tinha que ir ao bar comprar chocolates para eles, tal qual crianças mimadas. 


Perguntei-lhe porque é que os papéis estavam todos no chão, ao que respondeu que era para fingir que os estava a apanhar, caso ela o visse. Eu estava incrédula de verdade. Cada resposta era pior do que a outra. Aquilo não podia estar a acontecer. Fez-se silêncio e não resisti a perguntar-lhe porque razão tinha feito aquilo, porque se tinha escondido dela. Respondeu “porque ela é uma chata e não me apetecia falar com ela”. 


Saí a falar sozinha e fui direitinha à Catarina. Contei-lhe a história e ela começou a rir, a rir, a rir. Ficámos as duas uns bons minutos a rir que nem umas parvas, olhando nos olhos uma da outra. E eu dizia “mas isto é uma casa de gente doida, Catarina” e ela ria ainda mais e continuei “e quando pensamos que já vimos de tudo ainda não vimos nada” e ela fazia sinal de concordância com a cabeça para cima e para baixo, rindo com os olhos escuros muito brilhantes, mas sem grande espanto, de certo modo, aceitando, como se aceitam as brincadeiras das crianças. Ela não vivia as coisas da mesma maneira que eu. Não lhes dava intensidade. Continuava calma e tranquila, a uma certa margem de tudo. E assim que ele a chamava, ela apressava-se a apagar o fogo, dizendo “sim, senhor engenheirinho, sim senhor engenheirinho”. E se ele tivesse um dia cheio de reuniões, como muitas vezes acontecia, ela ia ter com ele, no espaço entre uma e outra reunião, dizendo “tem dez minutinhos para fazer um xixizinho e lavar as mãozinhas”. Diria isto esfregando as mãos uma na outra, no seu ar aprumadíssimo, de secretária fidelíssima e exemplar, enquanto ele olhava para ela sem saber se ela estava a gozar com ele ou não.  


Quanto a mim, ria, ria, mas ria de gosto, só que por dentro. E não era pouco o esforço que fazia para não o dar a perceber. Estava sempre à espera de que um dia, numa destas caricatas situações, a coisa explodisse.  


Dado o recado, LQ acabava sempre seguindo o seu caminho como que não tendo ouvido nada e a Catarina voltava para o seu lugar, continuando com as mãos apertadas uma na outra, no seu andar teso, muito direita, com as saias demasiado curtas e as perninhas de rã, como na brincadeira lhe chamávamos.  



Mas esta briga não duraria muito. Esperta e sobretudo rápida no gatilho, rapidamente IC lhe daria a volta e ele não tinha como resistir aos seus encantos e ficaria tão contentinho que dias depois, traria para nós, trufas da floresta negra, na Alemanha, onde tinha estado há poucas semanas atrás e daria às suas duas secretárias uma a cada uma, vindas directamente do bolso das suas calças para as nossas mãos, sem papel, sem nada, todas meladas e com um aspecto de vomitado. E, claro, não esquecendo que ainda teríamos que dizer “obrigada” porque, segundo ele, não eram umas trufas quaisquer. 


Só que, da mesma maneira que vinham dos bolsos dele para as nossas mãos, assim que virou costas, do mesmo modo foram das nossas mãos direitinhas para o lixo. E lá foi ele em direcção ao seu cantinho, tirando trufas dos bolsos e comendo, uma atrás da outra.

 

Os Assessores ganhavam muito bem, não era qualquer ninharia. Eram pagos a peso de ouro. Mas faziam-nos rir e isso não há dinheiro que pague.  É justo (!)... 

  

 

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

O Candeeiro - 8


O candeeiro não saía de jeito nenhum. Até parecia que tinha nascido ali, de tal forma estava colado ao chão. Era um candeeiro de pé alto, que tinha uma base redonda bem grande, em pedra. Muito pesado, de facto, mas já o tinha movido várias vezes, pelo que, o problema não era do seu peso. 


Estava no gabinete do meu chefe, aproveitando uma breve ausência dele para pôr coisas em ordem e como o espaço não era muito, precisava de desviar um pouco o candeeiro, mas ele brigava comigo e eu já estava cansada. Olhei para o chão e percebi que havia uma grossa camada de cera que não tinha sido espalhada e, provavelmente, logo após a aplicação, puseram o candeeiro em cima e ele tinha colado. Só podia ser isso e já estava assim há algum tempo. Teria que ligar para a logística e pedir para virem removê-lo. 


Enquanto isto, vejo passar o Cruz, um colega da manutenção, que tinha problemas de vária ordem e uma vida muito complicada. Mas às vezes conseguia ser engraçado e apesar do seu quase permanente semblante fechado, quando finalmente ria, era um riso gostoso. Precisava de se rir mais e precisava de muitas outras coisas que a vida tinha sido obrigada a tirar-lhe, dada a sua condição de dependência de drogas para acabar com outras drogas. 


Para ser totalmente franca, nem nunca entendi muito bem como a DRH conseguia mantê-lo nos quadros da empresa, pois se fosse noutra empresa qualquer, há muito teria sido despedido. Não se podia dizer que não tinha sorte porque, na verdade, tinha um chefe que o protegia, pelo facto de ter um filho pequeno que precisava do emprego do pai para sobreviver. Mas era um quadro difícil, porque estava constantemente a recair e tudo se repetia, com a falsa promessa de que era sempre a última vez. 


Quando vi o Cruz, decidi brincar um bocadinho, sem maldade, apenas para nos descontrairmos um pouco. Chamei-o e ele reagiu como de costume. Primeiro ficava parado, ausente, naquele seu ar aparvalhado, com a barriga exageradamente para fora e as costas completamente curvadas; a boca sempre aberta com o maxilar inferior descaído e a língua de fora, como um cão cansado. Era o preço da sua pouca força de vontade. E ficava parado sem resposta, na verdade, esperando que desistissem dele, tal como ele desistia de tudo e de todos, a começar por ele mesmo. 


Na segunda chamada ele veio. Chegou ao pé de mim e pedi-lhe para entrar no gabinete, a fim de me ajudar a tirar o candeeiro do lugar onde estava. Sem olhar para mim, perguntou porque não o tirava eu sozinha e essa era a resposta perfeita, a resposta que eu sabia de antemão que viria. Respondi-lhe que não conseguia.

 

Ficou um pouco parado e depois reclamou “não consegues?” E voltei a responder que não. Olhou para mim com um ar super desconfiado e voltei a dizer-lhe a verdade, que não conseguia. Só não lhe disse que ele também não ia conseguir.

 

Podia dizer que não sabia o que se passava na cabeça dele, mas o facto é que sabia exactamente o que ele estava a pensar, porque eu o conhecia muito bem, e não só a ele, e ainda porque ele era tudo, menos imprevisível.

 

E naquele momento passava pela cabeça dele que, não havia razão alguma para lhe pedir ajuda. Qualquer pessoa fazia aquilo. Pedia ajuda porque era a ele, se fosse a outra pessoa não o faria. E nada disto era verdade, nem uma nem outra coisa. Eu realmente não conseguia levantar o candeeiro do sítio e depois não estava a fazer dele moço de recados. 


É que, por causa das suas limitações, deixavam-no para trabalhos que, por vezes, nada tinham a ver com a sua categoria profissional e ele não gostava disso. Mas também não restava alternativa porque, em boa verdade, para alguma coisa ele tinha que servir, já que o conservavam lá e lhe pagavam um ordenado normal. 


Como ele não reagia e eu estava a perceber que a cabeça dele estava a matutar desnecessariamente, peguei no varão do candeeiro, fazendo mais uma tentativa de o levantar, em vão, para ele ver que realmente não conseguia e percebendo que afinal eu não estava a brincar com ele - e depois era mais um favor quase pessoal, do que outra coisa -, mudou de atitude e deve ter pensado que era uma boa oportunidade para mostrar a sua macheza e mais: que, afinal, as mulheres sem um homem nada são e em alguma altura da vida um homem sempre faz a diferença. 

 

Deixei-o divagar um pouco e ver o que decidia, e como o decidia porque, talvez ele ainda não soubesse, mas era livre de pensar, tão livre como o era em agir, embora na maioria das vezes essa liberdade de acção se traduzisse em negativo.  Mas isso ele teria que aprender.


E nesta altura ele já sorria um pouco com um certo ar de escárnio da minha pessoa, claro, mas não me importei. E o sorriso dele foi aumentando, aumentando, porque devia achar que não tinha como não tirar o candeeiro. Na cabeça dele, e eu percebia isso perfeitamente, aquilo era fácil, fácil, por isso ria com gosto ante a expectativa de me poder mostrar a facilidade com que julgava que o ia fazer. 


E como ele só ria, fazendo-me de ingénua, perguntei-lhe de que se ria. Ele abrandou um pouco, fez uma pausa e, naquela voz rouca e embatucada, respondeu “então não consegues tirar o candeeiro?” Fingi estar chateada e respondi-lhe mais uma vez que não. Ele não entendia, mas também não desconfiou de nada e era essa a minha vantagem, porque eu queria rir quando ele pegasse no candeeiro e percebesse que também não o conseguia tirar. A menos que eu estivesse enganada o que, evidentemente, podia acontecer. 


Finalmente parou de rir, aproximou-se e pegando no candeeiro, primeiro com uma mão e logo a seguir com as duas, não o conseguiu levantar, claro está. Dobrou o seu empenho e pediu-me para sair do lugar onde estava, para ter mais espaço de manobra. Puxava de um lado, empurrava do outro, ficava rubro do esforço que fazia, mas todas as tentativas foram em vão, até que percebeu que era válido o meu pedido de ajuda, que não era uma brincadeira e que, afinal, tinha ficado mal na fotografia. 

 

Perguntei-lhe o que é que se passava e a resposta dele olhando, olhando, mas sem encontrar explicação, foi “não sei”. “Ah, mas riste-te de mim!” - disse-lhe eu e continuei – “Pois é, ri melhor quem ri por último”. 

 

Mas ele estava entristecido. Afinal de contas não tinha conseguido provar nada. Mas eu também não queria que ele ficasse chateado. Então propus-lhe que tentássemos os dois. Voltei para junto do candeeiro e os dois começámos a abanar para lá, para cá, tanto o sacudimos e empurrámos que, finalmente, cedeu, mas ainda assim, não tinha sido fácil. Por baixo, tinha uma enorme camada de cera, claro está. 

 

Então ele riu e riu, já todo satisfeito porque, afinal, sempre tinha servido para alguma coisa e não tinha ficado mal visto de todo. E lá foi, no seu andar autómato, batendo os pés um pouco mais apressado do que o costume, impulsionado pela adrenalina, mas com a cara sempre no chão e a língua de fora, como sempre. 

 

Há coisas que nunca mudam.



quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Em Cambridge - 7


Quinze dias após o nascimento da minha neta Sofia, estava na minha vez de ir para Inglaterra, mais propriamente para Cambridge, onde eles residiam, para dar assistência à jovem família e conhecer ao vivo a minha pequenina e a mais recente chegada à família.

 

Um dia saí com a minha querida nora, a Tânia, para irmos fazer compras ao supermercado e tive que ser eu a conduzir para ela poder ficar no banco de trás, dando assistência à bebé.

 

Conduzir em Inglaterra pode dizer-se que não foi nada fácil. Eles habituaram-se rapidamente. Para mim foi um suplício. Era muita coisa ao mesmo tempo. Primeiro, o facto de estar sentada no lado contrário ao que era habitual. Segundo, andar na faixa contrária e todo o trânsito a correr no sentido contrário, era um permanente susto. Finalmente, o GPS que eles usavam era sempre em inglês e se bem que não fosse difícil entendê-lo, em condução, tudo se tornava mais complicado, com tendência a bloquear a minha acção.

 

Cada vez que precisava de meter mudanças, porque não era um carro automático, lá ia eu com a mão direita, assim como o travão de mão, não havia uma única vez que o fizesse logo à primeira com a mão esquerda. Levava sempre em primeiro lugar a mão direita e só quando percebia que não o encontrava é que, rapidamente, ia com a mão esquerda. Por mais curto que fosse o trajecto, até porque Cambridge é uma cidade pequena, quando chegava, estava sempre exausta, por todo o esforço que era obrigada a fazer para me concentrar em tudo ao mesmo tempo. Mas enfim, só conduzia quando era mesmo necessário.

 

Vínhamos carregadas do supermercado e estava na hora de dar de mamar à pequena Sofia, que não gostava de se fazer esperar. Estacionei o carro mesmo em frente à porta de casa, mas no lado oposto da rua, dado que normalmente não usávamos o estacionamento da garagem. Saí e tirei todos os sacos do supermercado, enquanto a Tânia se ocupava da Sofia. Quando abrimos a porta de entrada do prédio e já estava tudo junto ao elevador, a Tânia chama-me, aponta para fora e muito ansiosa diz “o carro… o carro!”…

 

Não percebendo exactamente o que ela queria dizer, olhei para onde apontava e então percebi. O carro estava a deslizar, a deslizar, ou seja, a andar sozinho para trás. Logo me lembrei que me tinha esquecido de puxar o travão de mão e largando tudo, fui a correr que nem uma doida, sem saber exactamente o que fazer. Ou abria o carro e entrava para o travar ou me punha atrás dele para travar o andamento. E enquanto corria pensava em qual das duas situações seria melhor, mas isto em fracções de segundo.  


Havia outros carros estacionados e se não tomasse uma resolução rápida podia ser complicado. E ainda nem bem tinha decidido o que fazer, quando percebi que o carro tinha parado. Não sabia porquê, mas uma vez parado, abri, entrei e então puxei o travão de mão.

 

Entretanto, vim cá fora para ver se estava bem naquele sítio ou se seria melhor chegá-lo um pouco à frente e só então reparei que o passeio, isto é, a calçada, não era em linha recta, fazia uma ligeira diagonal para o sentido da estrada, o que fez o carro travar, porque o pneu encontrou resistência.

 

O susto não foi pequeno e a minha condução em Inglaterra, por mais que fosse necessária e que mais tarde nos tivesse dado muita vontade de rir, acabava ali. Ponto final. Só voltaria a conduzir em Portugal.



terça-feira, 9 de setembro de 2014

As calças brancas do LQ - 6


LQ era um assessor do CA que foi colocado num gabinete da Direcção Técnica para lhe darmos apoio. Quem trabalhava mais directamente com ele era a Catarina, mas sempre sobrava alguma coisa para mim. 

 

Era curtido e vaidoso, também. Não era muito bem visto pelos trabalhadores, mas com o tempo, acabou por ser aceite, conseguindo uma boa colaboração por parte de todos, pelo menos, na nossa Direcção. 


Era nervoso e irrequieto e fazia questão de dar sempre a entender que estava muito ocupado, mesmo quando era apanhado a dormir, mas considerava-se o maior e queria mandar em tudo e todos. 


Um dia, olhando para ele, sempre em movimento, percebi que as calças do terno branco que usava com frequência, estavam curtas e fora de moda. Comentei com a Catarina, que logo começou a rir e as duas rimos à conta das calças curtas do LQ. A partir daí, sempre que ele punha aquele fato, lá olhávamos nós uma para a outra e lá vinham à baila as calças dele, para nos divertirmos um pouco. E os comentários começavam: “mas a mulher não vê?”, “e não tem outra roupa para vestir?”, “com tanto dinheiro que ganha”... etc, etc. Até que, sugeri à Catarina, que o chamasse à atenção para o facto de as calças estarem muito curtas, mas a Catarina coibiu-se, não tinha muito à vontade para isso. Como vi que ela não iria avançar, disse-lhe que lho diria eu mesma. Ela riu muito, deu muita gargalhada, mas achava que eu não seria capaz de lhe dizer. No fundo ela tinha um certo medo dele, como quase toda a gente. 

 

Os dias passaram e lá vem o LQ novamente com o seu fato branco, imaculado, que devia estar imundo. Ás vezes dava-nos gozo falar mal de qualquer coisa e o LQ prestava-se a isso. No fundo só precisávamos de descontrair um pouco. E dizia ela a rir com gosto: “diz lá, Luisinha, diz”. Ok. Lá o chamava eu “engenheiro”, era assim que o tratávamos “oh engenheiro, pode chegar aqui” e a Catarina a tentar ficar séria, engolindo o riso e o gozo que lhe ia na alma, porque ela era sempre muito correcta, correcta de mais. Sim, sr. engº, sim, sr. engº. Mesmo que não fosse para ser, ela sempre dizia "sim" a tudo. 


Lá veio ele e quando chegou perto de nós, com muita calma, perguntei-lhe em voz baixa “engenheiro, já viu como essas calças estão curtas, precisa descer essa bainha, se quiser traga-as que eu arranjo, se não tiver quem lhe faça”… ele interrompe, começa a gaguejar - o que acontecia sempre que ficava nervoso, dizendo: “ah, não, este fato já é velho, tenho que o pôr de lado, porque tenho lá um novo”… bla… bla… bla…


A Catarina morta de riso e o homem desfazia-se em desculpas esfarrapadas porque, na verdade, ele tinha sido apanhado de surpresa. Ele nunca pensou que alguém reparasse naquele pormenor e muito menos o dissesse assim, abertamente, sem rodeios. Mas ele ia sempre directo aos assuntos, com tudo e todos, portanto, eu só fiz o mesmo. Tinha aprendido a lidar com ele e amor com amor se paga. 


Bom, depois de muito tagarelar, prometeu que não usaria mais aquele terno, mas olhava para nós com um olhar diferente do habitual. Talvez por ter descoberto que afinal não éramos só o que aparentávamos. Afinal, havia mais em nós, embora estivéssemos sempre caladinhas e a Catarina no sim, sr. engº. Ele foi, e nós ríamos que nem umas perdidas. A Catarina nem queria acreditar do que eu tinha sido capaz. Mas aquilo não era nada. E contámos às outras colegas as história das calças e todas diziam “ah… tu disseste?” É, eu disse. 

 

Os dias passaram e um dia à chegada dele, pela manhã, olho para a Catarina e digo “lá vem ele outra vez com aquelas calças, não acredito!” E diz a Catarina já a desfazer-se a rir: “Então, o que é que tu queres, o homem não tem outras”. Começo a chamar por ele “engenheiro, oh engenheiro” e lá vem ele apressado, a andar de lado, com papéis na mão para mostrar trabalho e com a cara franzida, para se perceber que àquela hora da manhã já estava cansado de trabalhar.

 

“Engenheiro, outra vez essas calças?” Resposta dele, parecendo um garoto que está a ser chamado à atenção por algo que não fez, ao mesmo tempo que se olha de cima a baixo para obter a sua própria aprovação:

 

Mas são outras(?)… ai, vocês!...

 

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

O Jeep do RM - 5


Em frente ao meu chefe que estava sentado à secretária, concentrado em qualquer coisa que estava a fazer, aguardava que ele me desse atenção para lhe dizer o que tinha acabado de acontecer. Mas ele fazia tudo menos dar-me a atenção que eu precisava naquele momento. Estava difícil.

 

A seu pedido, evidentemente, porque tinha sido chamado para uma reunião inesperada e que não era possível prever a que horas acabaria, tinha ido à rua buscar o jipe dele que estava estacionado no parquímetro e dado que já havia lugar na garagem da rtp, na 5 de Outubro, não valia a pena pôr mais moedas. Apressado, ele atirara-me a chave, pedindo-me para ir buscar o jeepe e estacioná-lo na garagem.

 

Nessa altura, ainda não tinha carro da empresa nem direito a estacionamento e, se bem que não fosse das minhas competências fazer aquilo, a nossa camaradagem profissional ultrapassava em grande escala esses limites. Assim, depois dele ter ido para a reunião, lá fui buscar o carro.

 

Na verdade, era a primeira vez que tal acontecia. Já tinha ido pôr moedas no parquímetro, algumas vezes, mas nunca tinha conduzido o jipe, no entanto, não achei que tivesse algum problema, por isso, peguei nas chaves e fui. Pus o jipe a trabalhar e fui conduzindo até à entrada da garagem. Aguardei pelo sinal verde e entrei.

 

Comecei a descer a rampa da garagem até ao piso menos um e ao fazer a esquina, calculei mal a curva e pumba… bati. Ouvi a traseira lateral direita embater com força na parede. Que estupidez(!), pensei. Como é que eu, uma condutora experiente, tinha feito uma coisa daquelas? Ainda por cima com um carro que não era meu? Ele confiava em mim e eu tinha feito um estrago daqueles!? É que, pelo estrondo, não tinha sido pouca coisa. Estava irritadíssima comigo mesma.

 

Continuei a conduzir até ao piso menos dois onde encontrei lugar e estacionei. Estava ansiosa para ver o estrago que tinha feito. Apressadamente, saí do carro e fui inspeccionar. Nem queria acreditar. Que loucura! Aquilo não podia ter acontecido de jeito nenhum. E agora? De quantos vencimentos eu ia precisar para pagar o estrago feito?

 

E aí estava eu, à espera que ele me desse atenção para lhe contar o sucedido. Quem iria ficar mais furioso, ele ou eu? Sim, muitas vezes nos desentendíamos, mas a nossa cumplicidade estava acima dessas coisas. Fazíamos uma dupla imbatível. Podíamos ter um desentendimento forte, mas no instante seguinte estávamos a entender-nos a cem por cento. Tínhamos liberdade para sermos francos um com o outro, até onde isso é humanamente possível, o que era muito mais do que profissional.

 

Não que isso alguma vez me tenha dado privilégios no campo profissional nem tão pouco monetariamente. Para ele eu sempre fui a melhor secretária do mundo, mas traduzi-lo em promoção e em remuneração, jamais. Quando eu o confrontava com essa situação e quando chegava a altura do ano, dos enquadramentos profissionais, muitas vezes o encostei à parede fazendo-lhe perguntas directas acerca do meu desempenho profissional, a que ele nunca teve dúvidas em reconhecer o mérito que me era devido. E eu sabia que ele o reconhecia com verdade. Mas daí não passava.

 

Todavia, era o meu melhor amigo. Resolvíamos sempre as nossas coisas, os nossos assuntos pessoais e profissionais em equipa, no mais perfeito equilíbrio, protegendo-nos um ao outro, facilitando a vida pessoal e profissional um do outro, quebrando o “galho” um do outro, organizando-nos para facilitar também a vida no âmbito familiar porque, para além do trabalho, há a família, que é preciso respeitar e que precisa da nossa atenção.

 

Sempre que eu tinha descompensações de ordem emocional e ficava esgotada era ele que sabia o que fazer comigo. Era ele que me dava a “mão”, era com ele que desabafava e o contrário também era válido.

 

A agora aí estava eu, esperando que ele parasse o que estava a fazer e olhasse para mim, para me ouvir dizer que tinha batido com o Honda na esquina da garagem. Como é que iria reagir? É verdade que ele não tinha o direito, legalmente falando, de me culpabilizar. Mas isso, entre nós, não contava. Eu era culpada, sim.

 

Finalmente, ele olhou para mim e como se ainda não tivesse reparado que eu já ali estava há algum tempo, disse: “ah, estás aí”. Não sabia como dizer, mas antes que se fosse novamente e me deixasse pendurada, disse-lhe que já tinha posto o carro na garagem. “Ah, já havia lugar... pois àquela hora já tinham saído muitos”…, comentou ele. E antes que continuasse, porque quando começava a falar nunca mais se calava, interrompi, dizendo: “tenho muita pena, desculpa, mas bati com o carro, na garagem”. Estava dito.

 

Surpreendentemente, não ficou muito admirado. Não percebi bem porquê, mas talvez para me poupar. Perguntou se tinha sido muito, respondi que sim, muito. E era. Estava batido e muito riscado. Era feio. Ele ouvia-me, mas não parava de fazer coisas, indo da janela para a secretária, da secretária para a estante, mexendo aqui, mexendo ali, tirando daqui e pondo ali, mas nada de comentar acerca do assunto. Disse-lhe, então, que visse e depois me dissesse, que eu, claro está, contrariada, mas assumia o prejuízo.

 

Findo o dia, retornamos às nossas casas. Quando me deitei, não conseguia dormir, pensando em como ele iria ficar aborrecido quando visse o estrago. Talvez ele não tivesse reagido mal por achar que eu estivesse a exagerar. O pior é que não estava. Tinha sido uma pancada e tanto. Ele nem imaginava. Que chatice! Como não era com um desconhecido, mas sim com o meu chefe, acabei por me acalmar e consegui dormir.

 

No outro dia, lá vou eu a caminho da rtp para mais um dia. Chego e começo a trabalhar. Ele ainda não tinha chegado e com o trabalho, quase me esqueço do assunto. Mas, de repente, eis que chega, apressado, entra no gabinete, tira o casaco e senta-se. E não diz nada. Que estranho. Esperava que ele entrasse por ali dentro, fazendo-me mil e uma perguntas, porque quando começava a falar nunca mais se calava. Mas, para meu grande espanto, nada disso aconteceu.

 

Vou atrás dele, fico na sua frente e ele apenas me pergunta o que é que há, se eu quero alguma coisa. Oh, digo eu, então e o assunto de ontem? Com uma certa ingenuidade ele pergunta qual era o assunto. Com os nervos já em franja, reavivo a sua memória, lembrando-lhe que ele ficara de ver a batida com o carro. Resposta dele:

 

- Ah, aquilo? Aquilo já estava!