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quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Uma pequena distracção - 55


João Bosco Soares da Mota Amaral, Presidente do Governo Regional dos Açores. Tudo estava no começo. Era a RTP nos Açores e Mota Amaral no Governo. E até eu, que me tinha transferido de armas e bagagens para a Delegação da RTP em S. Miguel, Ponta Delgada.

 

Mais ou menos seis meses depois de ter chegado aos Açores conheci aquele que viria a ser o meu marido e pai do meu filho, o António. A empresa abriu concurso para admissão de técnicos nos seus quadros e ele que tinha recém chegado à sua terra natal e andava à procura de emprego, depois de ter passado uns anos em Angola no cumprimento do serviço militar obrigatório, vinha agora concorrer, tendo sido admitido como operador de câmara, o que o fazia andar por todo o lado, na cobertura de tudo o que era notícia, acompanhando os jornalistas em todos os trabalhos televisivos. 

 

Mota Amaral, como Presidente do Governo Regional, andava sempre em viagem e a televisão atrás dele, claro está. Era um indivíduo discreto, reservado, com muita ética profissional e muito seguro de si, o que lhe conferia um certo à vontade e que lhe ficava muito bem, porque sabia estar, como se comportar e penso que agradava a toda a gente, pelo menos como pessoa. Com os jornalistas e operadores da RTP tinha até uma certa familiaridade, pelo muito que conviviam. Era uma constante, como facilmente de compreende. E sempre que havia que ir ao encontro dele e de quem o acompanhava para o efeito, o pessoal identificáva-o por "Joãozinho", sem que nisto houvesse o menor desrespeito pela sua pessoa. Conforme já disse, toda a gente gostava dele.

 

Nesta altura eu e o António já namorávamos e ele ficava uns dias em casa da mãe e outros em minha casa. Andava de cá para lá e de lá para cá, porque era quase ao virar da esquina e assim não se desligava por completo da casa materna, sendo que era bom ficarmos os dois sempre que nos apetecia. Com isto, começou a haver muita coisa espalhada lá por casa, isto é, pela minha casa. Ele foi sempre muito desarrumado, muito desligado de tudo. As coisas ficavam onde calhava e mais nada. Talvez porque tinha a mãe que cuidava de tudo e fazia tudo por ele e pelo irmão e, portanto, nunca foi educado para ser organizado. Veio para minha casa e foi a bagunça completa. Sendo que sou o oposto, as coisas nunca foram fáceis. Aproveitando isso, uma vez mais se desligava da tarefa de arrumar, achando que era a mim que competia fazer o que a mãe fazia. E ainda assim, as coisas continuavam desarrumadas, porque não é possível andar atrás de ninguém a guardar e a arrumar isto e aquilo, uma coisa a seguir à outra, não é de todo possível, nem física nem psicologicamente, é uma canseira terrível e uma enorme frustração.

 

E uma vez mais era dia de ir esperar Mota Amaral que vinha de Lisboa. O dia decorreu normalmente e ao final da tarde, como acontecia muitas vezes naquela altura, o pessoal reunia-se num café para conversar, descontrair, contar umas piadas e dar umas boas risadas. Encontravam-se uns amigos, comiam-se umas cracas, etc... e a piada daquele dia era a respeito da reportagem de Mota Amaral.

 

Da mesma maneira que na RTP tratávamos João Bosco da Mota Amaral, carinhosamente, por "Joãozinho", também ele quando queria brincar, usava os diminuitivos com o pessoal. E naquele dia, uma vez mais, lá foi um jornalista com um operador de câmara. Mota Amaral tinha acabado de chegar ao aeroporto, vindo de Lisboa com o seu pessoal e caminhava por ali fora em direcção à saída, onde o aguardava o motorista. Seguindo-o, o jornalista ia-lhe fazendo perguntas, ao mesmo tempo que o fazia parar aqui, parar mais ali, enquanto o câmara o seguia filmando-o e toda a sua atenção se concentrava na filmagem. As máquinas ainda não eram como agora. Eram mais pesadas, mais antigas, mais difíceis de manejar.

 

Mota Amaral vinha sempre de frente para ele e ele andando da frente para trás para o apanhar sempre de frente. Sempre recuando, recuando, Mota Amaral ia falando com o jornalista. Contudo, não lhe passou despercebido o insólito, isto é, o "pormenor" que não era pequeno e quase inconscientemente não parava de olhar para os pés do operador. António também começou a achar estranho o olhar insistente do Presidente do Governo Regional para o que parecia serem os seus pés, mas longe de imaginar o motivo. Quando a reportagem terminou e os microfones se desligaram e a câmara parou de funcionar, bem mais descontraído, "Joãozinho" Mota Amaral não se conteve e em pleno aeroporto de Ponta Delgada, no meio de todo o pessoal que o acompanhava e de mais uns quantos mirones que sempre gostam de seguir o Presidente e estar de volta a dar fé de tudo, debaixo das luzes da ribalta, "Joãozinho" olha uma vez mais para os pés do operador de câmara que estava na sua frente e rindo diz "eh, Antoninho, que aconteceu?" e dizia isto rindo, rindo, ainda que discretamente, mas rindo com gosto.

 

"Antoninho" olha finalmente e curioso para os seus próprios pés e percebe a piada. Despistado como era, tinha os sapatos desirmanados, ou seja, um par de cada nação, o  que muito divertiu "Joãozinho", pelas boas risadas que deu com gosto.