Da varanda da minha casa olho a paisagem à minha volta, vejo a serra que felizmente ainda tem muito verde para espraiar a vista e relaxo. Quando estou cansada ou entediada vou até à varanda e aprecio a vista.
Algures, por entre a serra vejo a IC 17 e deparo-me sempre com o trânsito
infernal que nela passa. Também eu por lá passei e vezes sem conta fiquei
parada durante muitos anos enquanto trabalhava. Felizmente, desde há algum
tempo não preciso mais de enfrentar essas confusões, a não ser esporadicamente,
por algum motivo pontual. Tirando isso, dessa parte já me livrei. E fico
observando o correr do trânsito.
Nos fins de semana o trânsito corre, não fica parado e não raras vezes
tentei fazer o exercício mental de contar em simultâneo os carros que passam
para norte e para sul. Desde a primeira vez que fiz isto, percebi logo que era
uma causa impossível. Uma impossibilidade completa. Mas como sou teimosa,
quando penso numa coisa que quero fazer e não consigo, em vez de desistir, vou
sempre tentando. Mas isto é uma coisa que eu sabia perfeitamente que não iria
conseguir nunca.
A mente, a minha mente, é uma mente “normal”, felizmente, e uma mente
normal não tem os poderes cognitivos tão alargados que consiga fazer duas
contagens ao mesmo tempo. Contar num sentido é uma coisa e mesmo que sejam
muitos carros, a coisa vai. Fazê-lo simultaneamente e em dois sentidos, mesmo
que fosse em sentidos iguais, duas contagens é impossível. Pelo menos para mim,
e desafio quem quer que seja a fazê-lo. Não faz.
O cérebro dos humanos não tem a menor capacidade de fazer esse prodígio.
Pode até haver quem tenha essa capacidade. Mas isso são excepções. Já vi na
televisão programas sobre esse assunto e com efeito há pessoas, raríssimas, que
têm uma mente prodigiosa que consegue cálculos matemáticos em grande escala, em
apenas segundos. Conseguem o que mais ninguém consegue. Como(?), não faço a
menor ideia, porque eu jamais faria. Tenho que aceitar que são cérebros
diferentes, sem as limitações que os outros, os “normais” têm. Parece mentira,
mas acontece.
Quanto a mim e como gosto de desafios, vou sempre tentando, ainda que de
antemão tenha a certeza de que não é possível. Por isso, quando chego ao
segundo ou terceiro de uma das direcções para passar ao primeiro da outra
direcção, já estou toda baralhada e volto ao princípio à espera de não ficar
bloqueada e desejando que os carros passem o mais distanciados possível uns dos
outros, tanto para a direita como para a esquerda, para me darem tempo. É um
exercício inútil, mas eu vou fazendo. E perdendo, também. Sempre. Disso não há
dúvidas. Ou não havia.
Sim, não havia.
Agora, nos dias que correm, fui surpreendida com um facto. Venho à varanda,
olho a paisagem, observo o horizonte, a serra, o céu, ora limpo ora delineado
de nuvens, vejo a IC 17 e de repente, com o maior espanto, consigo fazer a
contagem, o que é simplesmente incrível. Quem diria que esse dia chegaria!? E
fico parada, segurando os números apenas para não me esquecer. É mesmo
incrível!?...
Quando me dei conta disto entrei em processo de meditação automático e
percebi que, seja pelos motivos que forem, não há nada que não seja possível.
Ou melhor, não há “impossíveis” definitivos, o que significa que a “esperança”
é aquilo que nunca morre. Não, não é a última coisa a morrer, porque se morrer
não é esperança. É aquilo que nunca morre, mesmo depois de morrermos. Quantas
coisas não se realizam depois da nossa morte(?!)... Mas isso é outro assunto.
No caso, temos a contagem dos carros que passam na IC17, uma das mais
movimentadíssimas vias, por ser a circular exterior da área metropolitana de
Lisboa. Agora eu olhava e com toda a facilidade, os números fixavam-se na minha
memória sem a mais pequena dificuldade.
Milagre? Não. Alguma coisa mudou em mim? Também não. As minhas capacidades
continuam exactamente as mesmas, certa de que com a idade não hão-de melhorar,
só pioram. E a IC17 também não mudou, continua a passar no mesmo sítio. Então,
a que se deve esta mudança súbita, perante um facto que era dado como certo,
não conseguir contar em simultâneo os carros que passam para norte e os que passam
para sul?!
Fiquei contente com o facto? Nem por isso. Mas eu sempre quis ser capaz
dessa proeza!? Mas agora já não queria. Ou seja, preferia mil vezes continuar a
não ser capaz de contar, porque isso é que era normal. Estava sem palavras para
comigo mesma. Até o meu pensamento estava lento, lento e sem saber o que
pensar, olhava a via rápida e era um verdadeiro desalento. Silenciosa, calma e
tranquila, comparado com o que era. Tão diferente, tão anormalmente diferente.
Mas ao menos isso podia fazer com que me sentisse um pouco feliz, por
finalmente poder fazer a contagem que eu tanto desejava ser capaz. Mas não.
Porque agora dava-se o inverso. Agora eu queria voltar a não ser capaz de
contar, como antes, como era, como deveria ser.
E somos mesmo complicados, ou nem tanto. Mas agora e, mais do que nunca, eu
não queria mesmo ser capaz de contar os carros. Queria ver a IC 17 bem cheia.
E mais, queria poder sair de casa livremente e ir para onde muito bem me
apetecesse. Poder falar às pessoas sem o mais pequeno constrangimento. Olhar
para as ruas e ver gente e mais gente a circular. Os jardins e os parques
cheios de crianças a brincar e a correr, felizes e contentes. Queria poder
continuar a encontrar-me com os meus amigos e as minhas amigas, combinar
almoços e jantares e festas e quanta coisa mais.
Queria ver a minha neta ao vivo e a cores, poder abraçá-la e beijá-la muito
e matar saudades. Queria ir à praia apanhar sol e caminhar à beira mar. Queria
andar nas ruas à procura de motivos para fotografar. Queria conviver e
confraternizar como habitualmente fazia…
E mais... bem mais do nunca, eu só queria ser capaz de saber esperar.
Esperar que o Covíd 19 se fosse embora de vez, para voltar a olhar para a IC 17
sem conseguir contar os carros que passam...