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segunda-feira, 19 de março de 2018

O caos - 41



Um pardalito acabava de pousar no telhado da escola mesmo ao lado da minha casa, imediatamente seguido de outro que se veio juntar a ele, desviando assim a minha atenção do caos em que estava mergulhada.

 

O caos. Um verdadeiro caos, por nada. Apenas porque o meu medicamento da tensão tinha sido alterado e eu estava com medo de algum efeito indesejável. Apenas isso. Acontece que detesto medicamentos, mesmo compreendendo que às vezes é necessário. E por isso corri para o meu posto de meditação/contemplação, na minha varanda de inverno, onde estou protegida das intempéries, podendo observar toda a serra que fica em frente, porque tenho vidros de cima a baixo, possibilitando-me um anglo de visão bastante alargado.

 

Absorta em pensamentos negativos que tentava afastar, porque não me faziam falta, observei os pardalitos que se tinham encontrado no topo do telhado do conservatório de música. Eram tão engraçados, tão felizes e livres que não resisti ao seu encanto. Era mesmo delicioso observá-los, correndo atrás um do outro, beijando-se com bicadinhas amorosas, passando por cima um do outro, lá iam felizes e contentes, sem pensar no dia triste e cinzento, carregado de nuvens, sem se preocuparem com nada nem ninguém. 

 

E, de repente, senti os músculos do rosto contorcendo-se, forçando um sorriso teimoso, a que não consegui resistir. Isso mesmo, aquelas duas minúsculas criaturas, seguindo o seu curso normal, tinham tido o condão de arrancar das minhas entranhas um sorriso que foi mais forte do que eu. Era uma ternura olhá-los e observar o envolvimento dos dois. Uma graça, que contrastava devastadoramente com o que ia dentro de mim. 

 

E quando acho que já passei em determinados testes da vida, que já superei determinadas barreiras, livrando-me desses flagelos para sempre, atingindo patamares mais dignos do ser humano, aí estão elas de novo para uma vez mais me testarem e uma vez mais me porem à prova. Um caos.

 

Pensando em caos e sem querer, fui transportada na minha viagem até à Índia, um dos maiores caos que tive de enfrentar até hoje, em que todo o tempo dava comigo a perguntar como era possível ter nascido naquela terra e ter sobrevivido? Era quase um milagre. E durante quinze dias que por lá andei, quando a coisa piorava e só pensava na “minha” casa, no “meu” quarto, na “minha” cama, enfim… tudo meu; meu isto, meu aquilo, porque tudo o que isso representava era conforto, paz, sossego. Mas aquela viagem de regresso às origens, por minha própria escolha e vontade e com plena consciência disso, não tinha sido exactamente o caminho para a tranquilidade, nem um pouco, e isso era sabido e admitido de todas as formas. Eu sabia de antemão que ia mexer com a minha zona de conforto a toda a prova e muito, muito mais. O caos em toda a ordem, com letras maísculas e numa dimensão elevada ao cúmulo de exagero.

 

Era a Índia! Não era surpresa nenhuma. Ainda assim era difícil de aceitar. "Aceitar" era a palavra certa. Aceitar era o segredo daquela gente e era essa a chave para a sobrevivência a todos os níveis. Para mim estava assegurada mais do que a sobrevivência a nível da alimentação, do alojamento e para falar verdade, de todas as coisas, o que não impedia a impossibilidade do equilíbrio psíquico. Por outro lado, eles não se queixavam de nada. Limitavam-se à existência do jeito que se apresentava e agradeciam tudo, o bom e o mau. E quem poderia dizer que isso era certo ou errado?

 

De regresso aos pardalitos, que não precisavam de se preocupar com nada, de repente achei que havia ali uma certa analogia com a vida na Índia, onde a grande maioria das pessoas não têm os problemas da “sua” casa, do “seu” quarto, da “sua” cama. Então estava tudo certo. E sempre olhando os pardalitos que iam brincando enquanto prosseguiam o seu rumo, pensei que, vendo as coisas por essa perspectiva, então a Índia não era necessariamente um caos. Estava tudo certo. O caos só existia na minha cabeça, na minha forma de ver as coisas. Melhor dizendo, na minha forma de viver. Eles não tinham, portanto também não tinham com o que se preocupar. Logo, não havia caos. Pelo menos para eles. Era eu que estava como peixe fora de água porque, apesar do meu espírito livre e aventureiro, a verdade é que há uma linha que, uma vez ultrapassada, nos tira da nossa zona de conforto para nos fazer sentir mal, deslocados, no caos. Como é que um simples medicamento me estava a roubar o sossego daquela maneira, era a única pergunta que não queria calar.

 

E ali estava eu, achando-me a criatura mais infeliz do mundo, fazendo do nada um problemão maior do que eu, como se fosse o fim do mundo. E os pequenos pardalitos aos pulinhos, comunicando-se na sua linguagem própria, completamente sintonizados um com o outro, limitando-se a viver plenamente, mostravam-me da forma mais natural e mais simples possível, como eu estava a ser estupidamente ridícula. Era isso que eu via ali. Parecia que, deliciados com a vida, eles tinham chegado ali para me mostrarem isso. Aquilo era uma lição de vida, a lição que eu precisava de aprender e não sabia. Tão simples, tão natural.

 

E o sorriso teimoso voltava aos meus lábios, através daquela doçura de cortar o coração, pensando… é a natureza. É a natureza no seu melhor, no seu pleno território, na sua zona de conforto e desconforto. Eles não reclamam nunca do tempo, do sol, do frio, da chuva, do calor. Eles não se preocupam com o que comer e vão sempre encontrando alimento pelo chão, pelos telhados, pulando nas árvores de galho em galho, bebendo água numa pocinha aqui, noutra ali, libertos e despreocupados. E quanto mais os seguia e os apreciava verdadeiramente encantada e extasiada, mais o meu sorriso aflorava e a minha alma respirava aliviada.

 

Cumprida a sua missão, com a mesma graça com que chegaram, partiram, deixando comigo uma bela e ternurenta mensagem de "aceitação", que custou uma lágrima bendita a correr pelo meu rosto.