A
Clara tem agora cinquenta e sete anos e é a minha muito querida prima/irmã,
quase uma filha, porque cuidei muito dela em pequena, na qualidade de irmã mais
velha. Amo a Clara como ela é, com todas as suas maluquices e doidices, que não
são poucas.
Dos
cinco, dos quais eu faço parte, ela sempre foi a que mais trabalho deu. Só
fazia aquilo que queria e não tinha medo de nada nem de ninguém. Sempre que a
levávamos a passear no parque, o que normalmente acontecia comigo ou com o avô,
onde houvesse água, fonte, lago, apesar de todas as nossas recomendações, a Clarinha enfiava-se lá, obrigando-nos
a esperar, esperar, quase como uma tortura porque, apesar de todas as ameaças
que lhe fazíamos, nomeadamente, advertindo-a de que nos iríamos embora
deixando-a sozinha, nada adiantava. Ela sabia que eram só ameaças e que, na
verdade, jamais o faríamos. E assim, invariavelmente, chegava a casa encharcada
da cabeça aos pés, feliz e contente, ignorando tudo e todos, até os piores
sermões da avó, que sempre nos culpava por aqueles incidentes, achando que não
tínhamos nunca o cuidado suficiente com a “menina”.
A
Clara cresceu e tornou-se uma mulher de sucesso, que se empenha a fundo na sua
vida profissional. Um pouco materialista para o meu gosto, mas cada um é o que
é. É inteligente e mata-se a trabalhar. Mas, quando é preciso, a Clara está
presente e em situações muito difíceis da minha vida, foi a Clara que me tirou
do sufoco. Foi a Clara que me “salvou”, por três vezes, na minha acidentada caminhada.
E de todas as vezes o fez sem me questionar ou me atribuir culpas, limitando-se
a disponibilizar-se, de acordo com a natureza da minha necessidade e apenas
isso. Por isso e por muito mais, estou-lhe infinitamente agradecida e para mim
ela é e sempre será muito especial. E porque a amo muito, também me dói muito,
quando faz coisas que me parecem indignas dela.
Quando
éramos crianças, a nossa tia avó materna, Maria Vergycosck, de descendência russa, nessa
altura já com a idade muito avançada, tinha muitas joias. E todo esse ouro, que
há muito já não usava, até porque já nem saía de casa, guardava religiosamente
numa gaveta da sua cómoda grande e muito antiga, envolto num pano de feltro
preto, por baixo da roupa. Segundo se contava, parte desse ouro já tinha
servido para tirar do sufoco a família, nalgumas situações difíceis. Por
exemplo, quando a minha tia, mãe da Clara, precisou de vir para Lisboa estudar
e os meus avós não podiam fazer face às despesas. Ainda assim, ficara muita
coisa. E de vez em quando, nós três, crianças, meninas, gostávamos de dar uma
olhadela e admirar aquelas obras de arte que brilhavam pelo ouro e pelas pedras
bonitas que tinham. E como ninguém tinha autorização para abrir aquela gaveta,
de longe em longe, pedíamos à tia/avó que nos mostrasse, o que ela fazia com
toda a sua boa vontade e a maior paciência do mundo, porque era uma dessas
criaturas raras, que passam por esta vida apenas para cuidarem e se preocuparem
com os outros, dando tudo sem nada receber e muito menos exigir. A sua
capacidade de abnegação e resiliência era total. Ajudou a criar os irmãos, os
sobrinhos, os sobrinhos netos e mais não fez porque chegou a sua hora de
partir. Uma longa vida de dedicação e entrega, uma vida da qual nada teve a não
ser o que deu e que não foi pouco.
E
apesar do ouro ser sempre o mesmo, lembro-me de que nem por isso deixava de nos
fascinar, como se o víssemos sempre pela primeira vez, admirando aquilo que,
como ela dizia, um dia seria nosso. Com certeza esse dia chegaria, mas eu
achava que nenhuma de nós três pensava nisso. Nós amávamos aquela tia que era o
nosso consolo, porque nos aturava a toda a hora com todas as nossas
impertinências de crianças.
Tudo
isto era tranquilo e não tinha nada de extraordinário. Mas a Clara, a mais nova
das três, era a que sempre se mostrava mais apegada às joias. Muitas vezes
percebi que ela as via com um olhar diferente, com uma certa impaciência e como
que se achando com mais direitos… sem dúvida alguma.
As
crianças cresceram, tornaram-se adultas, a tia cada vez mais velhinha, cansada
e chegou um dia em que a Clara decidiu não esperar e sem mais nem menos,
pediu as joias à tia, o que conseguiu, de forma leviana e abusiva,
ignorando tudo e todos. A minha irmã, presenciando a cena, veio ter comigo,
reclamando. Mas nós já sabíamos que ela era assim. Ela sempre foi assim. Não
tinha regras. Simplesmente fazia e dizia o que queria. Por mais que a
chamássemos à atenção, ela não queria saber disso para nada. Ela era como era e
ponto final. A minha irmã não conseguiu ficar indiferente com aquela situação.
O facto é que a tia era dona daquilo e podia fazer o que muito bem
entendesse.
É
claro que percebíamos perfeitamente que a Clara se tinha aproveitado da já tão
adiantada fragilidade dela, que já não tinha uma percepção tão clara das coisas, nem
forças para reagir. E pedir-lhe contas por isso seria uma enorme injustiça. E
talvez até tenha pensado que ela a repartisse connosco, por exemplo. Por isso,
disse à minha irmã que simplesmente esquecesse e fizesse de conta que aquilo
nunca tinha existido.
Por
seu lado, a Clara estava triunfante. Ela tinha-se adiantado, o que nunca o
deveria ter feito, mas enfim… ela tinha reclamado e quem éramos nós para julgar
as suas atitudes?! A única coisa que para mim era importante era continuarmos
sempre unidas, porque era assim que era a nossa vida, apenas isso. Do resto, a
vida, ela própria, se encarregaria de cuidar.
Efectivamente.
A
Clara casou, já tinha um filhote com menos dez anos que o meu, a vida não
estava propriamente fácil e eu comprava no supermercado uns cereais para o
pequeno almoço que, mediante uns cupões fornecidos nas embalagens, davam
direito a uns cremes de rosto de uma certa marca bastante razoável e assim eu
poupava algum dinheiro. Como gastava muito daqueles cereais, juntava alguns
cupões e para tirar o máximo partido daquela facilidade, quando atingia o
limite, precisava de uma morada diferente da minha para ter direito a mais
cremes.
Nessa
altura, a minha irmã já vivia no Brasil, por se ter casado com um brasileiro e,
portanto, não podia contar com ela. Restava a Clara. Falei com ela e
expliquei-lhe o assunto, pedindo-lhe para receber os “meus” cremes na morada
dela, o que ela logo aceitou sem objeção alguma,
como era natural. O que não era natural era recebê-los e ficar com eles para
ela, porque não foi esse o acordo. Mas ela ficava com eles e por conta das
minhas reclamações, simplesmente respondia que, se iam para a morada dela, eram
dela, deixando-me completamente sem palavras. Ela não tinha necessidade daquilo
e não foi esse o trato que fizemos. Ela apenas faria o favor de os receber, no
que ela concordou, mas não respeitou, porque decidiu apoderar-se deles.
Fiquei
incomodada com aquela situação, nem tanto por ficar sem os cremes, mas por não
entender a atitude dela, até que um belo dia ela teve o desplante de se queixar
que a empregada recebia o correio e ficava com os cremes para ela, o que a
deixava muito indignada! A empregada “roubava-lhe” os cremes.
Voltando
ao ouro da tia, que a Clara guardava em casa a sete chaves, no último andar do
prédio onde morava, um dia em que não estava ninguém em casa, os ladrões
entraram pelo telhado e lá se foi todo o ouro. A Clara informou-nos da tão
imprevisível tragédia que, claro, era só dela. A nós em nada nos incomodou. E
nem um pouco chateadas ficámos, nem pena nenhuma sentimos, para grande espanto
dela, que queria que estivéssemos solidárias e condoídas com a perda dela!
A
Clara é inteligente, culta, com muita bagagem, muita estrada, muita vivência,
muito tudo. A Clara é antropóloga, tem dois filhos e uma vida muito rica, porque
muito aproveitada e eu amo a Clara com todo o meu coração. O ouro e os cremes,
etc… não têm a menor importância. O que importa é que, apesar de tudo, a Clara
até hoje não aprendeu o básico da vida, desconhecendo as leis universais.
O facto é que, apesar de saber tanta coisa, até hoje, a coisa mais
simples, o mais elementar da vida, a Clara ainda não aprendeu, desconhece ou
ignora – a lei do retorno.