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quarta-feira, 30 de novembro de 2016

A lei do retorno - 32


A Clara tem agora cinquenta e sete anos e é a minha muito querida prima/irmã, quase uma filha, porque cuidei muito dela em pequena, na qualidade de irmã mais velha. Amo a Clara como ela é, com todas as suas maluquices e doidices, que não são poucas.

 

Dos cinco, dos quais eu faço parte, ela sempre foi a que mais trabalho deu. Só fazia aquilo que queria e não tinha medo de nada nem de ninguém. Sempre que a levávamos a passear no parque, o que normalmente acontecia comigo ou com o avô, onde houvesse água, fonte, lago, apesar de todas as nossas recomendações, a Clarinha enfiava-se lá, obrigando-nos a esperar, esperar, quase como uma tortura porque, apesar de todas as ameaças que lhe fazíamos, nomeadamente, advertindo-a de que nos iríamos embora deixando-a sozinha, nada adiantava. Ela sabia que eram só ameaças e que, na verdade, jamais o faríamos. E assim, invariavelmente, chegava a casa encharcada da cabeça aos pés, feliz e contente, ignorando tudo e todos, até os piores sermões da avó, que sempre nos culpava por aqueles incidentes, achando que não tínhamos nunca o cuidado suficiente com a “menina”.

 

A Clara cresceu e tornou-se uma mulher de sucesso, que se empenha a fundo na sua vida profissional. Um pouco materialista para o meu gosto, mas cada um é o que é. É inteligente e mata-se a trabalhar. Mas, quando é preciso, a Clara está presente e em situações muito difíceis da minha vida, foi a Clara que me tirou do sufoco. Foi a Clara que me “salvou”, por três vezes, na minha acidentada caminhada. E de todas as vezes o fez sem me questionar ou me atribuir culpas, limitando-se a disponibilizar-se, de acordo com a natureza da minha necessidade e apenas isso. Por isso e por muito mais, estou-lhe infinitamente agradecida e para mim ela é e sempre será muito especial. E porque a amo muito, também me dói muito, quando faz coisas que me parecem indignas dela.

 

Quando éramos crianças, a nossa tia avó materna, Maria Vergycosck, de descendência russa, nessa altura já com a idade muito avançada, tinha muitas joias. E todo esse ouro, que há muito já não usava, até porque já nem saía de casa, guardava religiosamente numa gaveta da sua cómoda grande e muito antiga, envolto num pano de feltro preto, por baixo da roupa. Segundo se contava, parte desse ouro já tinha servido para tirar do sufoco a família, nalgumas situações difíceis. Por exemplo, quando a minha tia, mãe da Clara, precisou de vir para Lisboa estudar e os meus avós não podiam fazer face às despesas. Ainda assim, ficara muita coisa. E de vez em quando, nós três, crianças, meninas, gostávamos de dar uma olhadela e admirar aquelas obras de arte que brilhavam pelo ouro e pelas pedras bonitas que tinham. E como ninguém tinha autorização para abrir aquela gaveta, de longe em longe, pedíamos à tia/avó que nos mostrasse, o que ela fazia com toda a sua boa vontade e a maior paciência do mundo, porque era uma dessas criaturas raras, que passam por esta vida apenas para cuidarem e se preocuparem com os outros, dando tudo sem nada receber e muito menos exigir. A sua capacidade de abnegação e resiliência era total. Ajudou a criar os irmãos, os sobrinhos, os sobrinhos netos e mais não fez porque chegou a sua hora de partir. Uma longa vida de dedicação e entrega, uma vida da qual nada teve a não ser o que deu e que não foi pouco. 

 

E apesar do ouro ser sempre o mesmo, lembro-me de que nem por isso deixava de nos fascinar, como se o víssemos sempre pela primeira vez, admirando aquilo que, como ela dizia, um dia seria nosso. Com certeza esse dia chegaria, mas eu achava que nenhuma de nós três pensava nisso. Nós amávamos aquela tia que era o nosso consolo, porque nos aturava a toda a hora com todas as nossas impertinências de crianças.

 

Tudo isto era tranquilo e não tinha nada de extraordinário. Mas a Clara, a mais nova das três, era a que sempre se mostrava mais apegada às joias. Muitas vezes percebi que ela as via com um olhar diferente, com uma certa impaciência e como que se achando com mais direitos… sem dúvida alguma.

 

As crianças cresceram, tornaram-se adultas, a tia cada vez mais velhinha, cansada e chegou um dia em que a Clara decidiu não esperar e sem mais nem menos, pediu as joias à tia, o que conseguiu, de forma leviana e abusiva, ignorando tudo e todos. A minha irmã, presenciando a cena, veio ter comigo, reclamando. Mas nós já sabíamos que ela era assim. Ela sempre foi assim. Não tinha regras. Simplesmente fazia e dizia o que queria. Por mais que a chamássemos à atenção, ela não queria saber disso para nada. Ela era como era e ponto final. A minha irmã não conseguiu ficar indiferente com aquela situação. O facto é que a tia era dona daquilo e podia fazer o que muito bem entendesse. 

 

É claro que percebíamos perfeitamente que a Clara se tinha aproveitado da já tão adiantada fragilidade dela, que já não tinha uma percepção tão clara das coisas, nem forças para reagir. E pedir-lhe contas por isso seria uma enorme injustiça. E talvez até tenha pensado que ela a repartisse connosco, por exemplo. Por isso, disse à minha irmã que simplesmente esquecesse e fizesse de conta que aquilo nunca tinha existido.

 

Por seu lado, a Clara estava triunfante. Ela tinha-se adiantado, o que nunca o deveria ter feito, mas enfim… ela tinha reclamado e quem éramos nós para julgar as suas atitudes?! A única coisa que para mim era importante era continuarmos sempre unidas, porque era assim que era a nossa vida, apenas isso. Do resto, a vida, ela própria, se encarregaria de cuidar. Efectivamente.

 

A Clara casou, já tinha um filhote com menos dez anos que o meu, a vida não estava propriamente fácil e eu comprava no supermercado uns cereais para o pequeno almoço que, mediante uns cupões fornecidos nas embalagens, davam direito a uns cremes de rosto de uma certa marca bastante razoável e assim eu poupava algum dinheiro. Como gastava muito daqueles cereais, juntava alguns cupões e para tirar o máximo partido daquela facilidade, quando atingia o limite, precisava de uma morada diferente da minha para ter direito a mais cremes.

 

Nessa altura, a minha irmã já vivia no Brasil, por se ter casado com um brasileiro e, portanto, não podia contar com ela. Restava a Clara. Falei com ela e expliquei-lhe o assunto, pedindo-lhe para receber os “meus” cremes na morada dela, o que ela logo aceitou sem objeção alguma, como era natural. O que não era natural era recebê-los e ficar com eles para ela, porque não foi esse o acordo. Mas ela ficava com eles e por conta das minhas reclamações, simplesmente respondia que, se iam para a morada dela, eram dela, deixando-me completamente sem palavras. Ela não tinha necessidade daquilo e não foi esse o trato que fizemos. Ela apenas faria o favor de os receber, no que ela concordou, mas não respeitou, porque decidiu apoderar-se deles. 

 

Fiquei incomodada com aquela situação, nem tanto por ficar sem os cremes, mas por não entender a atitude dela, até que um belo dia ela teve o desplante de se queixar que a empregada recebia o correio e ficava com os cremes para ela, o que a deixava muito indignada! A empregada “roubava-lhe” os cremes.

 

Voltando ao ouro da tia, que a Clara guardava em casa a sete chaves, no último andar do prédio onde morava, um dia em que não estava ninguém em casa, os ladrões entraram pelo telhado e lá se foi todo o ouro. A Clara informou-nos da tão imprevisível tragédia que, claro, era só dela. A nós em nada nos incomodou. E nem um pouco chateadas ficámos, nem pena nenhuma sentimos, para grande espanto dela, que queria que estivéssemos solidárias e condoídas com a perda dela!

 

A Clara é inteligente, culta, com muita bagagem, muita estrada, muita vivência, muito tudo. A Clara é antropóloga, tem dois filhos e uma vida muito rica, porque muito aproveitada e eu amo a Clara com todo o meu coração. O ouro e os cremes, etc… não têm a menor importância. O que importa é que, apesar de tudo, a Clara até hoje não aprendeu o básico da vida, desconhecendo as leis universais.

 

O facto é que, apesar de saber tanta coisa, até hoje, a coisa mais simples, o mais elementar da vida, a Clara ainda não aprendeu, desconhece ou ignora – a lei do retorno.



sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Um casamento singular - 31


No dia 7 de julho de 1979, a capela mais pequena e mais isolada da ilha de S. Miguel nos Açores, abria as suas portas para celebrar um casamento que, de comum, nada tinha.

 

Para o efeito, o pároco da igreja matriz de Ponta Delgada, tinha providenciado o seu arejamento e bem assim, a limpeza, já que raramente abria as suas portas. Quem se lembraria de encomendar um casamento naquelas bandas? Mas a senhora Ana cumprira rigorosamente as instruções do senhor padre e até tinha ornamentado a capela com algumas flores frescas. Enfim, por aquelas bandas havia um evento e era preciso tirar partido da situação. Assim, à hora certa, dois carros chegaram e estacionaram no átrio da pequena capela, de lá saindo os seus ocupantes, ao todo oito: o padre, tio do noivo; a irmã do padre, mãe do noivo; o filho mais velho da irmã do padre, irmão do noivo e respetiva mulher; o noivo, a noiva e um casal amigo de ambos e padrinhos de casamento.

 

Os escassos “mirones” não se fizeram esperar, pois não era possível que algo ali pudesse passar despercebido e muito menos um casamento. E logo se ouviram vozes que comentavam “oh, a noiva é aquela, vestida de branco”… que bem que isto soava, naquela bela pronúncia açoriana que, conforme for, não se entende nada. É que, quem ia vestida de branco era a mulher do irmão do noivo e não a noiva. Essa, trajava um vestido preto que tinha o peitilho todo bordado com todas as cores do arco-íris, embutido de pequeníssimos espelhos, que tornavam um simples vestido preto num vestido totalmente invulgar.

 

Era um vestido indiano que tinha sido comprado em Londres, numa viajem de “lua de mel”, cerca de mais ou menos um ano antes do casamento e como ainda não tinha sido usado, foi o escolhido para a cerimónia. Com isto, estava longe de ser identificada como “a noiva”, o que a deixava bem mais confortável. E para isso, lá estava a cunhada, vestidinha de branco, simulando a noiva. Mas os nossos olhares não puderam deixar de se cruzar, dando aso a risinhos escondidos por causa do caricato da situação. E segredava a suposta noiva, com a mão a tapar a boca “olha, a noiva sou eu!”… com um ar incrédulo, de quem não percebe o porquê, que mais claro não poderia ser. Mas deixemos isso. 

 

A capela tinha apenas três bancos corridos e lá nos acomodámos conforme as indicações do tio Padre, que não parava de blasfemar entre dentes, dado que para ele, tudo aquilo não passava de um grande sacrilégio do qual ele fazia parte, esperando com todas as suas forças que Deus nosso senhor o perdoasse.

 

Aquilo era uma família muito religiosa. Só padres e freiras. Apenas a senhora minha sogra se salvara daquela sina, rompendo as regras para se casar. E desse casamento vieram dois filhos, sendo que o mais novo se tornou oficialmente meu marido, com todos os papéis assinados e finalmente a indispensável bênção do Senhor. Tudo conforme o figurino.

 

Em casa do senhor Padre Domingos, com quem a minha sogra vivia desde que o marido se fora, deixando-a com dois filhos pequenos, um de quatro anos e outro de dois, eu era muito bem recebida, muito acarinhada. Contudo, aos domingos, quando a família se reunia para celebrar a sagrada refeição do dia do Senhor, não havia lei que permitisse a minha presença. Podia até ir jantar, mas almoçar, nem pensar. E isso, porque não éramos casados. Para eles, vivíamos em pecado e o almoço de domingo não podia ser manchado. Podia ir lá todos os dias, a todas as horas. Aos almoços de domingo, não. Mas parece que o “pecado” era só para mim, para o filho não. Enfim…

 

Em virtude disso e para não me aborrecer, combinámos que ele alternaria, sendo que, num domingo almoçaria comigo para eu não ficar sozinha e no outro, com a família, para a mãezinha não ficar triste. O facto é que com o tempo percebemos que isso não funcionava porque se ele ia, ficava chateado porque eu ficava sozinha e se ficava comigo, ficava chateado porque não ia à mãe. 

 

Então, um dia, decidi pôr fim àquela treta e decidi que nos casaríamos pelo registo, para se acabar com aquela cena. Tratámos dos papéis, chamámos um casal nosso amigo para serem as testemunhas e resolveu-se o problema. Ou pensávamos que tínhamos resolvido o problema. Porém, tudo continuava na mesma. É que o casamento no registo não tinha valor, porque não tinha a bênção de Deus… Oh céus! Tanto trabalho para ficar tudo na mesma. E o problema continuava com o dilema a minar a nossa vida. Que inferno!

 

E aí chegou um dia em que me chateei com aquela situação toda e decidi que íamos casar pela igreja, fazer essa fantochada toda e acabar de uma vez com esse problema. Bom, na verdade, não estava mesmo nos nossos planos, nem nos dele nem nos meus, andar às ordens dos outros. Mas fazer o quê?

 

Decidi que não queria ter duas datas de casamento, por isso marcámos para a mesma data, exatamente um ano depois. Quem nos iria casar? Fazia sentido que fosse o tio, já que tanto queria que nos casássemos e lá fui eu dar a notícia e dizer à mãezinha e ao tio que se preparassem para aquela data. E agora começa outra fantochada, a fantochada completa. Para se resolver um problema cria-se outro e a bola de neve não pára. 

 

Depois de ter falado com o tio, baixinho e gordinho, tal qual um barril, com ar sério, informou que teríamos que frequentar o curso. Qual curso, perguntei, incrédula. O curso, respondeu ele, o curso para todos os que se casam. Oh, essa não… eu ia ter que me sujeitar a um curso para fazer um casamento em que já estava casada!? E ele?… Eu sabia que ia começar a rir e nem resposta me daria. Ia pensar que estava a brincar. O pior é que não… e quando cheguei a casa e lhe contei como tinha sido a conversa com o tio, claro, deu umas boas risadas, dizendo que podia esquecer o assunto. Era sabido. Então o que fazemos, perguntei. Ele que faça o casamento sem o curso ou então não há casamento, respondeu. Eu sabia.

 

E lá fui, uns dias depois, para nova negociação. Não quer frequentar o curso? Era o que faltava! Todos têm que fazer. Não posso abrir nenhuma excepção, muito menos para vocês, dizia ele todo incomodado. Até parecia que não conhecia o sobrinho.

 

Silêncio… e ficámos calados, sem saber o que dizer. Todo agitado, afastou-se, indo-se enfiar no escritório. A minha sogra andava na cozinha de um lado para o outro, ouvindo a conversa, mas sem se intrometer. Aproximei-me dela e disse-lhe que fizesse o favor de falar com ele para ponderar o assunto, caso contrário, não haveria casamento e depois… depois, paciência.

 

Fui à minha vida. Quando o outro chegou, contei-lhe a história. Encolheu os ombros e desligou-se do assunto. E assim ficámos. No dia seguinte, a minha sogra mandou-me chamar e lá fui eu, depois de sair do trabalho. A negociação estava feita. Ela tinha conseguido convencer o irmão a desistir do curso. Que alívio! Estava feito… pensava eu. Mas aí, veio uma outra surpresa. Então, vão-se confessar uns dias antes, para se prepararem, dizia ele. Confessar… para se prepararem…?! Eu até posso ir, respondi. Ele… duvido. Rapidamente, deu meia volta e com um ar da maior estupefacção e os olhos arregalados, retorquiu: O quê? Ele nã se vai confessar? Eu acho que não, respondi, mas vou dar o recado. Pois vai, respondeu ele, porque se ele nã se for confessar, nã posso fazer o casamento. Nã posso fazer uma coisa dessas!... E espumava por todos os lados.

 

Tudo aquilo era uma imensa perda de tempo, um desgaste de energias perfeitamente inútil e exigia de mim uma paciência sem limites. E o pior é que ele se recusava a ir falar com o próprio tio. Eu que fosse, que ele não queria saber disso.

 

Pronto, mais uma vez, lá fui levar a decisão. Ele continuava a espumar, a pedir perdão a Deus nosso Senhor pelo que estava a fazer e depois de alguns minutos lá acabava por me participar a última decisão: então temos só a missa. Finalmente. Agora eu achava que tínhamos chegado a um acordo final. A história era sempre a mesma: ou aceitavam ou não havia casamento. Querem o casamento ou não? O sobrinho do senhor prior não é casado por igreja… ficam mal vistos? Então há que ceder.

 

Dei a novidade ao sobrinho do senhor padre, dizendo-lhe que o tio tinha finalmente concordado em fazer só a missa. Mas ele logo me interpelou, replicando com o maior espanto “missa”? Para que é preciso missa? E uma cara feia que eu sei lá!…

 

Hum? Agora até eu não entendia. Missa… é preciso missa. Uma cerimónia de casamento é feita durante o ato litúrgico. Diferente disto nunca tinha visto. Mas também era certo que não assistia a casamentos. E continuava: não é preciso missa. Ele que faça “só” o casamento e chega. Não é preciso mais nada. É assim tão complicado de perceber?

 

De certa forma este despique tinha-se tornado interessante. Tinha uma certa piada perceber os interesses e como são geridos. O que é mais importante e o que afinal pode mesmo ser descartado. Duas forças em jogo e eu no meio. Tudo isto apenas para ter direito aos almoços de domingo. Eu só queria que nos dessem descanso.

 

E lá fui eu informar da drástica decisão. Eu sabia que ia doer, que ia custar horrores. Eles nem sabiam no que se tinham metido por causas das exigências.

 

O tio ficou tão furioso, mas tão furioso! Ele concretizaria aquele casamento, sim, mas a verdade é que tinha que abdicar da sua posição e pouco a pouco se viu obrigado a perder terreno, todo o terreno. Ele gritou, xingou, praguejou; chamou a irmã, como que a pedir socorro para que o tirasse daquela alhada; ele esbracejava, falava com Deus, ora culpando-se, ora pedindo perdão, mas ele sabia que não tinha saída. Ainda assim, não pensei que acabasse cedendo. Fui-me embora sem decisão nenhuma, porque ele não tinha condições de decidir nada. Parecia que o inferno tinha desabado sobre ele, de tão atormentado que estava.

 

Fui-me embora. Tinha feito o que me era possível. Não havia mais nada que pudesse fazer. Durante uns dias esquecemos aquele assunto, até que um dia, lá fui novamente ao escritório do tio padre. Foi rápido, preciso e conciso. “Diz ao António que faço só a cerimónia do casamento”. Eu nem queria acreditar. Aquilo deve ter doído. Mas ele estava calmo, muito calmo para o meu gosto, dada a situação. Na verdade, eles tiveram que aceitar a troca de um casamento em cheio na igreja matriz, para uma simples bênção na capela mais pequena e perdida dos confins da ilha, onde não vivia quase ninguém. É triste. Mas a história não acaba aqui.

 

Estávamos apenas à espera que o tio padre vestisse todas as suas indumentárias e enquanto o fazia, sempre blasfemando e praguejando, Tony e Leonor, nossos padrinhos, não faziam outra coisa senão rir baixinho, pela calada, aproveitando todas as coisas para gozarem com a situação, o tio padre erguia as mãos aos céus, rezando e pedindo por si mesmo, pela coisa horrenda que achava que estava fazendo. Praguejava a todo o instante, perante a nossa máxima indiferença. Rezava e praguejava, na sua bela pronúncia açoriana, bem cerrada. Dava dó, mas fazer o quê?

 

Quando tudo parecia ter entrado na normalidade e a cerimónia dava início, comecei a sentir uma sensação de alívio por aquilo tudo estar a terminar e se acabar de vez com o problema dos almoços dos domingos. Mas aquela sensação de alívio durou muito pouco, porque chegou a altura das alianças e nós não tínhamos alianças. Nem pensámos nisso. E quando o tio padre pediu as alianças, o meu excelentíssimo marido ficou impávido e sereno enquanto eu pensava “agora é que está tudo lixado”. Discretamente, dei-lhe uma cotovelada, que respondeu com um ainda mais discreto movimento de cabeça, que significava “não quero saber”. E enquanto pensava numa saída, lembrei-me que tinha no meu dedo anelar direito uma aliança que usava sempre. Era a aliança da minha falecida mãe e a minha irmã usava a do meu pai que, entretanto, voltara a casar-se. Rapidamente, tirei a aliança, passando-a para as mãos dele. O irmão tirou a aliança dele e deu-me. E enquanto fazíamos esta operação, o tio padre, com os óculos redondinhos na ponta do nariz e a cabeça elevada, como se estivesse a farejar, interrompia a cerimónia para perguntar “Vocês nã têm as alianças?” E como não houvesse resposta ele continuava indagando, na esperança de estar enganado e ver surgir umas alianças que não podiam aparecer, simplesmente porque não existiam. E à medida que se apercebia da realidade, reparando na troca que fazíamos, tirando alianças e passando de mãos, ficava inerte, sem reacção, olhando para um, depois para outro, pensando sabe-se lá em quê, completamente perdido.

 

Naquele momento achei que ele ia interromper o casamento e acabar com tudo. Mais uma vez se virou para trás, depois de lado, praguejando, gritando, balbuciando, dizendo coisas que não tínhamos tempo de entender, enquanto manifestava todo o seu repúdio e um imenso arrependimento por aquilo que estava a fazer. Com a Bíblia ou o Missal nas mãos, quase chorava de raiva, de desprezo, de sei lá o quê… enquanto Tony, Leonor, o irmão e a cunhada do noivo, tentavam esconder os rostos, disfarçando o quanto podiam, para não piorar a situação mais do que já estava.

 

E lá ficámos com as alianças nas mãos para a cerimónia continuar e poder chegar ao fim, depois do tio padre se recompor e se acalmar o quanto lhe era possível.

 

Esta é a história de um casamento que não foi muito feliz. Por isso, passados alguns anos, divorciaram-se e assim foram felizes para sempre.

 

quinta-feira, 2 de junho de 2016

A Cidade Sagrada - 30


Varanasi, tão espiritualizada, tão desejada, tão amada!... Como era possível? As ruelas por onde passávamos eram tão estreitas que, para passar uma bicicleta, tínhamos que nos desviar, parar e encostar às paredes esburacadas e imundas. Não era tudo assim. Havia ruas largas, espaçosas, mas por todo o lado a mesma aparência do auge da miséria. Misericórdia!

 

Caminhávamos praticamente em fila indiana e a certa altura, peguei na pachmina, enrolando-a à volta do rosto, deixando só os olhos de fora. Havia tanto mosquito e tanta mosca, que temia que me entrassem pelo nariz e pela boca, mesmo fechada. O cheiro no ar era indescritível. Tudo aquilo era nojento. Varanasi, a cidade sagrada, não era diferente do resto da Índia. A diferença é que, para além do habitual, havia ainda as chamadas cerimónias religiosas na margem do ganges, para onde nos dirigíamos agora, com horas e horas de sono em atraso. 

 

O hotel era razoável. Não… era bom, muito bom, mesmo. No entanto, já tinha havido um probleminha que me chateou. Pouco depois de termos dado entrada e nos acomodarmos, voltei ao piso zero, mais precisamente à recepção, para adquirir rupias. Tive que esperar um pouco porque estava a ser atendida uma das raparigas do grupo que, por acaso era indiana, não de naturalidade, mas de sangue. Logo que ela se retirou, o balcão ficou livre e aproximei-me do recepcionista, um senhor que aparentava uns cinquenta anos, com um ar muito solene e que estava de olhos postos nuns papéis quaisquer, sem me dar a menor atenção. Esperei um pouco mais e como ele continuasse a ignorar-me, interrompi-o, fazendo-o perceber que estava à espera de ser atendida. Levantou um pouco a cabeça e com um ar superior e enjoado, perguntou-me o que queria. Disse-lhe que precisava de trocar dinheiro. Deu-me um papel que preenchi, devolvendo-lhe. Levou para trás do balcão, continuou a fazer ou a fingir que fazia não sei o quê, deixando-me a secar, sem uma palavra, nem uma explicação.

 

Com a outra tinha sido tão rápido, porque demorava tanto comigo? Algo não estava bem. Passado um pouco mais, resolvi perguntar porque estava a demorar. Olhou-me de lado e com toda aquela calma que tanto me irritava, respondeu-me que tinha que esperar, dando-me a entender que quem mandava era ele e tinha que me submeter à sua “vontade”. Não gostei. Era óbvio que estava a gozar com a minha cara. Então, vali-me do meu trunfo, se assim se pode dizer. Tirei do saco de mão o passaporte, abri e coloquei sobre o balcão, em frente aos olhos dele, que não entendeu o meu gesto, claro. E disse-lhe, com tom de poucos amigos e um pouco ameaçador: “O senhor atendeu a minha amiga com toda a rapidez e a mim está a dificultar as coisas porquê? É por causa da nacionalidade? Porque ela é indiana e eu não? Quem sabe não está enganado?!” 

 

Aí, ele levantou os olhos por cima dos óculos, mantendo a cabeça baixa, mas olhou para mim, ainda sem perceber onde eu queria chegar. “Sabe, as aparências enganam”, dizia-lhe eu, enquanto ele me olhava, não entendendo nada e talvez pensando “está a passar-se”. Então, a verdade que ele não esperava, veio ao de cima. E continuei: “Não é pelo facto de ela ter a sua côr que é indiana, porque ela - e marquei o “ela” - pode ter a aparência, mas, para sua informação, não é Indiana. Eu sim, apesar de não parecer, eu nasci na Índia, conforme pode ver.

 

Com ar de poucos amigos, mas já um tanto cauteloso, discretamente, dignou-se olhar para o passaporte e confirmando o que eu acabara de lhe dizer, virou-se, foi direito lá atrás do balcão, contou o dinheiro e voltou de imediato, pondo-o junto ao meu passaporte e com um ar completamente diferente, disse: “Minha senhora, o seu dinheiro”. Estava feito. Chateada que nem um peru, agradeci e subi aos meus aposentos, esbaforindo por todos os lados. Racistas dum raio, pensei comigo mesma.

 

Entretanto, no segundo dia, depois de virmos das cerimónias no ganges, com aquele folclore todo ao pôr-do-sol, estávamos exaustos e fomos directos para o hotel. À chegada, tivemos uma super recepção. Havia polícia por todo o lado. Em cada esquina um policial com uma espingarda ou metralhadora, sei lá, apontada à porta principal. Impressionava.

 

O que é isto(?), pensei comigo mesma. Bom, não fiz mal a ninguém, sou apenas uma turista, não tenho com que me preocupar. Resolvi ignorar, mas fomos revistados, apalpados e só acabou quando transpusemos a porta do hotel. Do lado de dentro ainda havia um polícia, mas a coisa era pacífica. Acabou. Subimos e fomos tomar um duche. Primeiro foi a Mina, minha companheira de quarto, depois eu. Enquanto ela estava na casa de banho, percebi que havia uma movimentação anormal e muito especialmente no quarto ao nosso lado, onde havia muita gente, porque eu os ouvia falar muito alto e a porta estava sempre a bater, porque entravam e saíam e não havia sossego. Era esquisito.

 

Entretanto, a Mina saiu da casa de banho e fui eu. Quando estava a meio do duche ouvi baterem à porta. Estranhei, mas não liguei, limitando-me a ficar atenta. A Mina era bastante surda, o suficiente para não ouvir. Bateram novamente, com mais força. Não gostei. Não era uma bater amistoso, era um bater que adivinhava problema. Saltei do duche, enrolei-me no lençol de banho e espreitei pelo buraco da porta, que era enorme. Fiquei surpresa quando vi vários homens, sendo que um deles era um policial e ainda tinham um cão, um pastor alemão. O que é isto, pensei, o que quer esta gente? Rapidamente, pensei e agi.

 

Abri a porta, tal qual estava, enrolada na toalha, mas abri só um pouquinho, escondendo-me atrás dela, não totalmente, para eles verem que estava no banho e com a testa franzida, de interrogação, perguntei: “O que querem, não posso atender, estou no banho”, fechando imediatamente a porta na cara deles. Silêncio. Durante uns segundos, nada se passou, ninguém falou. Eles não estavam à espera de ter uma recepção daquelas. Deviam achar que intimidavam toda a gente. E depois de alguns segundos, bateram novamente, com mais força. Não atendi e fiquei à espera. Foi então que um deles falou em inglês, dizendo “abram, é a polícia”. Isso já eu sabia, mas também não me apetecia facilitar-lhes a vida e respondi-lhes que não estava vestida. Abra, repetiram eles. Bom, não podia abusar da situação e abri. Empurraram a porta, escancarando-a, dizendo-me para voltar para a casa de banho que ninguém nos faria mal. Assim fiz porque, verdade seja dita, não foram nada meigos.

 

Para a Mina, passou tudo ao lado. Quando os ouvi sair, saí da casa de banho e perguntei-lhe o que lhe tinham dito. Respondeu que não tinham trocado uma só palavra. Limitaram-se a passar um detector de metais sobre toda a bagagem e saíram. Só isso? Sim, respondeu ela. São muito estúpidos, pensei, pois se houvesse alguma coisa, podia estar na casa de banho onde nem entraram!?

 

Mais tarde percebi qual era o problema. Era o mês do Ramadão e estavam muitos muçulmanos na Índia, o que para mim foi uma surpresa. Até já tínhamos visto uma manifestação, onde também havia polícias. Mas se eram muçulmanos, porque não iam para o Paquistão e deixavam os hindus em paz com as suas inúmeras crenças? Era mesmo querer confusão e nunca estarem satisfeitos com nada. 

 

E ali estava eu, metida naquele filme, em andanças pela Índia. Nunca pensei… Varanasi, a cidade sagrada!... Era tudo menos sagrado. Era do mais profano que podia haver. Como é que podiam chamar-lhe a cidade sagrada!? Alguma vez o teria sido? Isso já não sei. Mas aquilo era um verdadeiro pesadelo, em todos os sentidos. Quando na tarde anterior fomos às lojas, eu estava no balcão, à espera que a menina me trouxesse o kajhal que lhe tinha pedido e não havia ar condicionado. Era um espaço enorme, um grande armazém e se o calor lá fora era infernal, lá dentro era insuportável. De tal ordem que eu não conseguia ter os olhos abertos, por causa do suor que me caía em bica sobre as pálpebras e tinha que estar constantemente a limpar a água para poder abrir os olhos. Até me sentia envergonhada. Dizia uma palavra e parava para limpar os olhos e a cena continuava. E o pior é que não via isso nelas. Estavam sequinhas, bonitinhas… parecia que não eram feitas da mesma matéria que eu.

 

As cerimónias do nascer e pôr-do-sol na cidade sagrada eram iguais todo o santo dia. Repetiam-se todos os dias. Mas era tudo como se fosse a primeira vez. É claro que tudo naquela terra é sagrado, tão sagrado que não tem explicação. É uma imundície por todo o lado, mas Varanasi, realmente, consegue superar. No rio, as pessoas fazem tudo, tudo o que se possa imaginar: cozinhar, comer, tomar banho, beber água, mijar, cagar, lavar roupa, orar, dormir tranquilamente em qualquer lugar ou em qualquer situação e todos fazem tudo o que querem sem ligar absolutamente nenhuma importância ao que se passa ao seu redor. Ninguém perturba ninguém. Enquanto uns deitam flores à água, outros fazem cremações dos seus mortos. Tudo ali acontece ao mesmo tempo. Quem tem parentes doentes, deficientes, exibe-os como se sentindo abençoados com aquele “presente” que consideram uma bênção. É de loucos. É difícil saber quem é mais louco que o outro. Contudo, os turistas ficam deliciados com aquilo. Acham tudo muito bonito, muito especial, muito santo. Deve ser por causa do povo que vive na rua porque, em vez de fazerem casas para as pessoas, invariavelmente fazem templos, um atrás do outro. Templos é o que realmente faz falta para preservar a tradição e o paganismo. E toda a gente acha aquilo lindo, carregado de um forte misticismo. Esquecem-se é da carga de energia negativa que é emanada para todo o planeta. Disso ninguém fala, ninguém tem a coragem de o dizer.

 

Mas Varanasi até é um nome bonito, sonante, leve, agradável… é a Índia e a Índia, com todos os seus defeitos, contradições, etc..., é um grande mistério porque, na verdade, apesar dos horrores a que assistimos e da diversidade da sua cultura; por trás da hipocrisia, da verdade que se esconde, da inocência, da injustiça, da iniquidade, da desigualdade, das mil e uma doutrinas, do bem e do mal, da fome… Varasnasi, como toda a Índia, é ao mesmo tempo doce, pacífica, calma e tranquilidade. Um sonho confuso, um encontro insólito, um prazer amargo, uma experiência única, num parque místico de diversões infinitas, onde o mistério impera a toda prova, sem a menor possibilidade de se esgotar, de se esfumar, porque é a Índia e porque não há nada igual.



sábado, 23 de abril de 2016

Areia Branca - 29


Quatrocentos quilómetros de reta, era uma coisa impensável para nós. Não fosse o ar condicionado e estávamos fritas. O nordeste… tanto que me fascinava, pois tinha tudo a ver com África.  E lá íamos nós, por aquela estrada de alcatrão toda esburacada, que eram mais buracos que alcatrão. Mas era o que era. Sempre em frente, nem uma ligeira curva. Tudo reto, naquela imensa solidão, onde a água nos acompanhava sempre ao nosso lado. E tirando isso, nada mais havia. Tínhamos que ir falando, para Inajá não adormecer ao volante. Várias vezes lhe tinha perguntado se queria que conduzisse, mas ela respondia que não.

 

Deserto completo na paisagem vazia. Mas de repente, quando parecia que não havia a mais pequena possibilidade, eis que aparecia, vindo do nada, uma criança pequena que ainda mal sabia andar. De onde vinha aquela alminha, sozinha, tranquila, como que caída do céu? Era um enigma. E por ali andava brincando pertinho da água, sem se queixar, completamente à vontade, como se o céu e a terra fossem a sua casa. Eu ficava a olhar até a perder de vista, cansando os meus neurónios com tanta pergunta sem resposta. E lá íamos nós, seguindo o nosso rumo, estrada fora. 

 

E de repente aparecia um homem carregando sacos de rede com fruta, pendurados num pau que carregava no ombro, balançando para a frente e para trás, ao ritmo do caminhar suado. De chapéu de palha na cabeça, magro e seco, lá vinha ele junto à estrada. Como era possível? De onde viria e para onde iria? E a minha cabeça continuava a trabalhar sem descanso. Era tudo tão insólito! Mas ele continuava o seu caminho, indiferente ao resto, ignorando até a nossa passagem. 

 

E lá seguíamos nós o nosso trajecto, quilómetros e quilómetros naquela estrada sem fim, até que, a páginas tantas, aparecia uma cabra brincando à beira mar. Sozinha, sem rasto de vivalma e sem as demais companheiras. E da mesma maneira que aparecia, desaparecia da nossa vista. Quanta solidão! Quanta estranheza naquilo tudo. E a reta nunca mais acabava e parecia que não ia a lugar nenhum. A paisagem era sempre igual, fiel a si mesma. 

 

Mas finalmente entrávamos em Areia Branca. Afinal havia um fim e esse fim tinha um nome: Areia Branca. Agora sim, havia gente, havia casas, havia tudo ou quase tudo que, por sinal, era muito pouco. 

 

Dona Xiquinha e seu António estavam à nossa espera e mais uma data de gente que estavam sempre lá por casa. Uns velhotes bem simpáticos que nos acolheram com toda a simpatia. Dona Xiquinha e seu António eram pais do Prefeito de Areia Branca, que vivia noutra casa mais moderna. Mas aquela casa era uma delícia e tinha um jardim cheio de flores, onde acorria uma fauna verdadeiramente fabulosa de pássaros, os mais variados e os mais raros. Uma coisa do outro mundo. Mas Areia Branca ainda mal tinha começado. No dia seguinte de manhãzinha, após o pequeno almoço nordestino, com direito a bolo de fubá e a tanta coisa que não estávamos habituadas, lá partimos à descoberta daquele paraíso. Trocámos o Honda por um bug e lá fomos, costa fora.

 

Areia Branca nunca mais acabava. Aquilo era lindo demais! Aquilo era liberdade que nunca mais acabava. Depois de andarmos mais uns quilómetros, eis que chegamos a areia branca, claro. Mas ali, que lugar era aquele? Uma rua com árvores pelo meio e casas, mais palhotas do que casas, dum lado e do outro? Um telefone começou a tocar. No meio da rua, junto a uma árvore, uma cabine telefónica, melhor dizendo, um orelhão. Saltei do bug e fui correndo para atender o telefone. Aquilo dava-me um gozo! Lúcia gritava “Inajá, o que vai ela fazer? Oh Lilly, tu não podes atender o telefone, sabes lá o que é, para quem é?” Inajá ria, enquanto respondia “deixi, deixi ela” e Lúcia com aquela cara de espanto, como se todos tivessem perdido o juízo e só ela estivesse lúcida. Enquanto isso eu gritava “Dona Lurdinha, dona Lurdinha” e alguém vinha correndo “já vai, já vai… muito agradicida, viu?”. Mas Lúcia continuava perplexa. Aquilo era muita confusão para a cabeça dela, que não conseguia perceber o que fazia uma cabine telefónica (orelhão) plantada ali no meio da rua e quem é que ia atender? Inajá e eu ríamos… aquilo era Areia Branca… Nordéstshe, Rio Grande do Norte, Brasil! Enquanto isso, dona Nené perguntava de onde éramos nós, de onde tínhamos vindo. De Lisboa, respondemos. “Di Lisboa, Portugau? Meu Deus, lá no fim do mundo?!” Aí, Lúcia rindo, não se conteve e logo respondeu “fim do mundo? Fim do mundo é aqui”, enquanto olhava para mim com ar incrédulo, de quem não quer acreditar no que ouve. 

 

Deixámos o bug no descanso e fomos à praia, àquela água irresistível. Sentei-me na areia com um côco fresco, bebendo a sua água adocicada que eu tanto, tanto amo e ali ficámos, olhando o nada, perdidas no horizonte, saboreando a simples existência. Já tínhamos passado por uma lagoa deliciosa para onde levámos as cadeiras do bar e nos sentámos com a água à altura das nádegas. Lúcia, com a sua caipirinha e eu com a minha água de côco. E deliciadas com aquilo tudo, olhávamos uma para a outra, rindo a bom rir, pensando o mesmo. Na RTP estavam todos a trabalhar, com os problemas de todos os dias, as chatices que sempre se repetiam, enfim… nós duas bem o sabíamos. E nós ali no maior bem bom. Oh vida boa!...

 

Caminhando ao longo da praia havia uma casa pequena. Cá fora, um homem e uma mulher estavam sentados à volta de uma mesa de madeira coberta com uma toalha de plástico aos quadrados vermelho e branco e em cima algumas garrafas de cerveja. Cada um tinha um copo de cerveja e no chão, junto à mesa, várias grades de garrafas, provavelmente vazias. Ainda em frente da casa, ligeiramente ao lado deles, um rapaz jovem estava estendido numa rede de tecido presa nas extremidades, em árvores que a sustentavam. O rapaz estava deitado de costas, com uma perna e um braço de fora, que tocavam no chão de terra, para ir balançando a rede. A casa estava à beira da estrada, metida por entre a folhagem das árvores e da mais vasta vegetação, naquela terra avermelhada. Não havia a mais pequena aragem. Nada mexia, a não ser, de vez em quando, o rapaz, que empurrava a rede lentamente, com um ar vagaroso e preguiçoso. Ali não era preciso fazer nada. Estava sempre tudo feito. A única coisa a fazer era beber para matar a sede. 

 

Isaurinha e seu mui dedicado esposo, continuavam agarrados à cervejinha, esvaziando garrafa após garrafa, sem darem conta do tempo, limitando-se a apreciar a vida, sem nada fazerem, à sombra das longas folhas das bananeiras, das mangueiras, dos coqueiros, naquele lugar que era só deles. Se era o fim ou o princípio do mundo, não sei. Ali estavam, olhando o mar, numa imensa paz, num bem estar infinito. Naquele extenso areal branco banhado pelo mar calmo, um barquito aqui, outro ali, areia branca era aquilo mesmo. Lúcia sempre se queixando do calor e o meu espírito vagueando ao sabor da saudade de perder aqueles momentos que me devolviam um sentimento tão especial, uma coisa gostosa, saborosa, longe da correria e do stress de todos os dias, em que às vezes tinha a sensação de que quase não tinha tempo para viver ou até mesmo, respirar. Areia Branca… tão fascinante.

 

Muito tempo atrás, minha irmã Guida, com vinte e poucos anos, passava ali as férias com as crianças e o marido. António, fazia questão de trocar S. Paulo por Areia Branca, sempre que os negócios o permitiam. Era ali que tinha passado grande parte da sua infância, por seus pais serem oriundos do nordeste. Como as crianças gostavam muito de praia, todos os dias deixava minha irmã na praia com os filhos e voltava para a cidade, a poucos quilómetros. Havia uma outra mulher que também fazia o mesmo, isto é, frequentemente ia com os filhos pequenos à praia. E as crianças começaram a brincar juntas, até que um dia, as duas mães decidiram juntar-se e começar a falar, tal qual as crianças. E a outra perguntava à minha irmã “você é Pórtuguesa, pela prónúncia”, ao que a minha irmã respondeu afirmativamente. “E como veio párá aqui” voltou a perguntar. Minha irmã respondeu que o marido era primo do Prefeito. Ela olhou para a minha irmã, com enorme espanto e respondeu “então você é Mágárida, casada com António, meu primo? Eu sou Altair, irmã do Prêfeito,  filha de seu António e D. Xiquinha".

 

Pois é, só que Altair tinha casa própria para as suas idas a Areia Branca e por isso ainda não tinha havido o encontro das duas famílias. Então as crianças eram primos e sem saberem estava tudo em família. Só por isso, ficou entre as duas uma amizade que nunca mais acabou.

 

E eu continuava obcecada com o quadro de Isaurinha e sua família. Quanta inveja aquilo me fazia pela tranquilidade. É verdade que me causava uma certa nostalgia, mas eu gostava daquela mistura de sentimentos. Era uma leve mostra de um passado ao qual, definitivamente, há muito eu já não pertencia. A minha realidade era tão diferente, presentemente. Era a cidade de uma Europa, de uma cultura diferente e… e sei lá. Parecia que ali não havia chatices. De vez em quando, Isaurinha ia até à cidade com seu amado esposo, que a levava ao cinema. E, além de se amarem, que mais fariam nas suas pacatas vidas?!

 

O sol já começava a baixar, a ficar mais suportável, enquanto aquele cenário ia desaparecendo, levando a minha nostalgia e também a minha saudade, para me centrar no momento presente. Para Lúcia aquela viagem tinha sido um acontecimento marcante e muito louco na vida dela. Para começar, nunca tinha viajado de avião. Depois, não era uma viagem propriamente curta. Para quem tinha medo, pavor de andar de avião, foi uma grande loucura. Decididamente, ela tinha que perder o medo, caso contrário, não poderia ir. Então, o seu subconsciente se encarregou desse trabalho e assim, todas as noites ela sonhava. Quando chegava à RTP dizia-me “já consegui subir dois degraus da escada até ao avião(!)”. Isto acontecia nos sonhos, enquanto dormia durante a noite. E logo de seguida acordava, o que significava que apenas conseguira fazer aquele esforço, que não fora tão pouco assim. No dia seguinte voltava a dizer “já consegui subir mais dois ou três degraus(!)” e novamente acordava naquele ponto. Todos os dias no sonho fazia esse trabalho, até que um dia, muito excitada, chegou ao pé de mim, com um sorriso de vencedora. A auto estima dela estava lá em cima, dizendo “Lilly, consegui, amiga, consegui entrar no avião(!)”. Estava feliz e excitada que nem uma criança. Eu olhava para ela fascinada. A minha amiga estava pronta para aquela que seria a grande viagem da sua vida. E com aquela viagem aprenderia tanta coisa! Aprenderia, se não, a comer caju, pelo menos, a saber da sua existência e não só da castanha, como é verdadeiramente comum. Caju é muito mais que uma castanha. A castanha é só o pé. Caju é o fruto mais suculento e delicioso que conheço. Caju é fruto dos “deuses”. Só come caju quem ama loucamente caju. E eu sou tão louca por caju que, um dia, em plenas dunas, quando a minha água já havia acabado e eu estava a ficar completamente desidratada e sem pingo de energia, debaixo daquele calor e do sol escaldante, contra tudo e todos, fiz parar o bug e fui correndo para um pé de caju bravo que passava rasteirinho ao chão e quase despercebido, porque a sua côr é amarela e não vermelha, e ignorando as advertências de todos, colhi um, colhi dois, colhi três cajus, os mais maduros e depois de limpar o pó maior, ignorei também os problemas que daí podiam advir e chupei, chupei todo o caju, um por um. E à medida que punha à boca e ía passando do primeiro para o segundo, do segundo para o terceiro, a minha sede era saciada e a minha energia revigorada. Estava verdadeiramente renovada. “Você vai ficá duentshe” dizia Inajá, com Lúcia aproveitando a deixa "oh, Lilly, não comas essa porcaria"...


E o litoral ia sendo percorrido naquela calma toda, como se o tempo não se esgotasse, como se a vida nunca acabasse.



Uma receita original - 28


Um dia a minha tia telefonou-me a perguntar se queria ir lá jantar. Perguntei-lhe o que era o jantar e respondeu-me que ia fazer ervilhas com ovos. Como o meu marido era um pouco esquisito com as comidas, era preciso saber sempre qual seria o menu, para ver se servia ou não. Ele era açoriano e estava acostumado a umas coisas um pouco diferentes, o que implicava ter uma certa cautela. Continuava agarrado às comidinhas da mãe que, por sinal, era uma excelente cozinheira, mas era uma cozinha um pouco pesada para o meu gosto e às vezes era difícil conciliar os nossos hábitos. Porém, ervilhas com ovos, parecia-me bem.

 

Em casa dos meus tios sempre houve empregada a tempo inteiro, pelo que a minha tia nunca na vida fora habituada a cozinhar, assim como o meu tio. Mas quando se reformou decidiu que não precisava mais de uma empregada a tempo inteiro e decidiu dedicar-se à culinária. E assim, ervilhas com ovos era o que nos apresentaria para o jantar, cozinhado por si mesma.

 

Telefonei ao meu marido, mas havia um pormenor. Tínhamos em casa um amigo açoriano, que estava de passagem. A nossa casa era a hospedaria dos açorianos que vinham a Lisboa de passagem. Estávamos constantemente com gente em casa. Desta vez era o Ferreira, que era amigo do meu marido desde criança. Então, liguei para a minha tia para lhe dizer que talvez não pudéssemos por causa do nosso amigo, mas logo ela respondeu que o levássemos também. Ele concordou e na hora certa lá fomos jantar a casa dos tios. Por esta altura o meu filho teria uns dois, três anitos no máximo. Era bastante pequeno.

 

O Ferreira era um tipo bem disposto, curtido à brava, que sempre nos fazia rir até mais não. Era casado, tinha dois rapazes também pequenos e lá em casa a mulher tratava de tudo excepto das refeições, porque o Ferreira, bom cozinheiro que era, fazia questão de ter essa tarefa por sua conta, o que muito aliviava a mulher.

 

Então, chegámos e entrámos. Fomos para a sala de estar, onde estava o meu tio e demos início às apresentações. Estava tudo já em família. O Ferreira nunca se calava, estava sempre a falar e a fazer piada com tudo. Ele era assim. Um humorista inato e logo começou a inspeccionar o local, por sua conta, fazendo discretamente as suas apreciações, que só quem o conhecia bem é que entendia, caso contrário passava despercebido. E lá fomos conversando, rindo, até que chegou a hora de ir para a mesa.

 

Para começo de jantar, a mesa estava posta com muito pouco cuidado e a minha tia dizendo que não fazia cerimónia, se não nos importávamos que fossem os tachos para a mesa, e mais isto e mais aquilo. Pois, o que haveríamos de dizer!? Quando havia empregada não dispensava todos os requintes e mais alguns, agora, tudo mudara de figura. Mas podia ter-se empenhado um pouquinho mais. Ainda por cima, sabendo que levávamos um amigo. Mas pronto. Bom, à mesa, continuámos com as nossas graças, pois com o Ferreira era certo haver sempre motivo para rir.

 

A minha tia que ia da sala para a cozinha e vice-versa, fazendo-se toda atarefada e empenhada no jantar à família, naquele dia alargada, lá vinha então com um tacho para a mesa. Voltou a dizer que se sentia à vontade e, portanto, não ia fazer cerimónias, pedindo desculpa por causa do tacho, mas... francamente, deve ter escolhido o tacho mais antigo e mais velho que tinha, porque era feio que eu sei lá. Além do mais, estava todo martelado. Um horror! Nós olhávamos, mas já estávamos habituados às excentricidades dela. O Ferreira olhava e dizia entre dentes - “mas o que é isto?” - com aquela sua bela pronúncia açoriana que não tem igual. E eu pensava “nem sabes onde te vieste meter”. Ok, depois falaríamos sobre o assunto e dar-lhe-ia algumas explicações para ele entender.

 

Mas era tão estranho aquele tacho na mesa, que percebi que todos os olhares estavam concentrados nele. Porque seria? Sabíamos que o jantar eram ervilhas com ovos escalfados. Mas parecia que aquele tacho não se adaptava muito bem a ervilhas com ovos escalfados. Pelo menos, uma panela. Um tacho, não, pensava eu. O meu marido sempre com ar de gozo, que ele sempre gozava com a minha tia. E o Ferreira olhava incrédulo, para o mau aspecto daquele tacho na mesa. Depois, devia ter acabado de sair do lume, porque o vapor subia, subia. Cheiro não havia. Ervilhas com ovos escalfados têm o seu cheiro característico, mas dali não saía cheiro nenhum. O meu tio calado como sempre e todos na expectativa. Porque seria que estávamos todos na expectativa? Aparentemente, não precisava ou não devíamos.

 

E, instintivamente, levantei-me um pouco, para dar uma espreitadela. Ah, devia ser engano. Ao mesmo tempo, o meu filho, que tinha saltado para o meu colo, ergueu-se também para espreitar e foi o primeiro a dar sinal: “ai, mãe, o que é que eu como?” - começando a choramingar. Disse-lhe rapidamente que não se preocupasse, que ia arranjar outra coisa para ele comer. 

 

O que é que se passava!? Ervilhas, não vi nem uma para amostra. O tacho estava cheio de água a ferver até acima, com uns feijões verdes a boiar para lá e para cá, ora subindo ora descendo e no fundo do tacho, ovos cozidos com casca. Pensei para comigo mesma “o que é isto?” E perguntei em voz alta: “então não tinhas dito que eram ervilhas?” E a minha tia responde, com o ar mais tranquilo deste mundo: “pois, mas não encontrei ervilhas e resolvi o problema com feijão verde”. E perante o meu ar perplexo, desconcertado e sem saber o que fazer e o que dizer, enquanto os outros dois já riam, tão discretos quanto possível, mas sem se conseguirem controlar, a minha tia continuava a desculpar-se: “então paciência, também não é assim tão diferente?” Não é diferente? Pensava eu alto. E os ovos? E ela continuava: “cada um descasca o seu, não é assim tão complicado".

 

 

E assim ficámos todos, todos, a olhar, mas sem ninguém se aventurar a servir-se. Apenas o meu tio foi “obrigado” a servir-se e a comer “só um bocadinho” como ele fez questão de dizer, porque estava sem “vontade” de jantar. Saímos dali e fomos jantar. 

 

Mas esta receita tão inovadora nunca mais foi esquecida.




 

domingo, 21 de fevereiro de 2016

África - 27


Uma das coisas de que sempre gostei foi de correr riscos. Sempre gostei de sentir a adrenalina, quando algo perturbador se aproxima de nós. Contudo, os meus riscos foram sempre calculados, de modo que as hipóteses de darem errado sempre foram acauteladas. Não deixaram por isso de ser um risco maior ou menor. Em cem por cento de cautela, havia sempre um por cento ou talvez um pouco mais, das coisas correrem mal. Por isso, se alguma vez tivesse falhado, sabia bem de quem era a responsabilidade. Ainda assim, correr o risco valia a pena, pela pura adrenalina, mas falhar, não podia acontecer.

 

Em criança, com cinco anos, vivia em África, onde a minha vida era uma liberdade sem limites porque, literalmente, fazia o que queria. O meu pai passava uma boa parte do dia no quartel e a minha mãe em casa, fazendo alguma coisa ou simplesmente descansando, ao ar livre. Nunca passou pela cabeça de ambos, as coisas que eu fazia. Sempre fui uma aventureira inata. Descobria por minha conta e risco o que queria e me interessava. Sempre tive a noção do perigo e protegia a minha irmã, mais nova do que eu e bem assim, os amiguinhos, porque sabia que não tinha que metê-los nos mesmos apuros em que eu me metia. Além de que, a confiança que tinha em mim, não tinha nos outros. Os outros, considerava-os crianças. Em relação a mim mesma, sempre me considerei meio criança, meio adulta. Sempre soube que havia em mim um passo um pouco mais adiante em relação às outras crianças. E isso, de certa forma, fazia-me sentir responsável por eles. Por isso, o que servia para mim, não servia para eles, não permitindo que, só porque estavam comigo, fizessem as mesmas loucuras que eu. Podiam assistir, ver, mas tinham que estar quietos. 

 

Eu trepava às árvores, pior do que os garotos da minha idade, o que muito aborrecia o meu pai, que passava a vida repetindo que eu era uma menina e não um rapaz e que havia coisas que as meninas não podiam fazer. Mas aquela conversa não me interessava. Eu não tinha a menor intenção de lhe desobedecer, em todo o caso, subiria às árvores todas as vezes que os cajueiros tivessem um só caju, que seria para mim e para mais ninguém. Chateados, os garotos, sempre haveria um que acabava por me denunciar e depois era a parte que doía, porque eu sabia que o meu pai ficava muito aborrecido. Claro que o problema dele era que eu caísse e me machucasse, mas eu achava que isso nunca ia acontecer. Era tão simples subir às árvores! E os cajus justificavam. Não havia fruto mais bonito e delicioso que um cajú madurinho e suculento. Não havia nada igual. O problema, também, é que eles não tinham tempo de amadurecer, porque eu não lhes dava essa oportunidade, desde que uma vez perdi uma bela duma manga, apenas porque estava à espera que ela estivesse no ponto certo. Claro que à mangueira não podia subir. Mas nem precisava. A pernada do ramo quase entrava por uma das varandas do primeiro andar da casa do quartel onde morávamos nessa altura. Contudo, na altura certa, a manga desapareceu. E não é que não houvesse mangas em casa. Mas aquela era minha. Alguém roubara a minha manga, o que me deixou triste durante alguns dias, enfiada pelos quatro cantos da casa.

 

Em Bissau, nos arredores da cidade, onde vivíamos, nas casas que o exército disponibilizara para os militares, a vida era uma aventura. Desde que acordava até à hora de me deitar, era uma festa. Contudo, a verdadeira festa acontecia durante a noite, depois de me deitar. É que, quase todos os dias depois do almoço, a minha mãe fazia-nos dormir uma sesta e com o calor, às vezes dormia de mais e à noite, sobrava energia. O quarto dos meus pais dava para a estrada nacional, mas o nosso, dava para o mato. Mato cerrado. E quando não conseguia dormir, começava a ouvir algo que inicialmente achava estranho, mas que com o tempo começou a ser habitual e mais do que isso, familiar. Eu ouvia um batuque ritmado e forte, acompanhado de uma espécie de canto. Eram vozes que se manifestavam de um modo particularmente estranho, porque indefinido. Aquilo não parava. Entrava pela noite dentro despertando a minha curiosidade de criança e aguçando o meu desejo de correr riscos. Eu tinha que descobrir o que era aquilo. Eu tinha que ver. E no meio da noite escura, na ausência total de luz, apenas com a luz da lua, levantava-me, certificava-me de que a minha irmã no seu berço dormia tranquilamente, punha uma cadeira junto à janela que estava sempre aberta, protegida com uma armação de rede por causa dos mosquitos e sem fazer o menor ruído tirava a rede que colocava em baixo, no chão, e saltava para o lado fora.

 

Então, na noite mágica, era só eu e eu. Sozinha, usava os sentidos com toda a atenção para perceber de que lado vinha o batuque e depois era só seguir naquela direcção. Se o som se perdia era porque estava na direcção errada. E assim, ia chegando perto, cada vez mais perto, olhando para trás para não perder de vista a direcção de casa, caso contrário, ficaria perdida no mato, sendo que esse era um dos riscos que não podia correr - perder-me -, de jeito nenhum, porque mais do que tudo eu queria a minha casa e a minha família. E só de cuecas, por causa do calor, só tinha medo de uma coisa: as cobras. Morria de medo das cobras. E como sabia que o mato estava cheio delas, ia sempre aos saltinhos, pulando de pé em pé, para fugir delas e não terem tempo de me apanhar, achava eu.

 

Tudo isto acontecia enquanto a minha irmã com menos de dois anos dormia tranquilamente, para não falar dos meus pais que estavam longe, longe, a milhas de pensar no que a sua primogénita tão bem comportada e sobretudo, tão sensata, como a minha mãe sempre fazia questão de realçar, andava a fazer durante as noites em que não conseguia dormir. E na verdade eu era sensata porque tinha a exacta noção do que fazia, dos riscos que corria, mas também tinha a noção de que aquela era a minha verdadeira natureza e que algo invisível me protegia sempre, como se na verdade nunca estivesse completamente sozinha, protegida de tudo e mais alguma coisa. E só por isso eu não tinha medo, coisa que fui tendo cada vez mais, à medida que fui crescendo e foram acontecendo coisas que eu não entendia porque tinham que acontecer.

 

E sempre fugindo às cobras, lá ia eu atrás do batuque. À medida que o som aumentava, a minha excitação era maior, porque sabia que estava a chegar. Parava um pouco para reflectir se havia de avançar ou retomar o caminho de volta para casa, mas acabava sempre por continuar. O perigo era mais sedutor. E à medida que me aproximava, primeiro de longe, sem ser avistada, escondida no capim ou no canavial, via o espectáculo todo. Os homens e as mulheres faziam uma roda, com faixas de grandes e bonitas penas à volta da cabeça. Uns dançavam, cantavam e outros tocavam nos tambores. Aquilo era bonito. Eu queria ver de perto, por isso ia-me aproximando devagarinho para não os assustar e perceberem que eu era inofensiva. 

 

A princípio assustavam-se, porque aceleravam o batuque e especialmente as mulheres, entravam em histeria ou transe mais acelerado, em sinal de alerta. A minha estranha e enigmática presença devia ser tão surpreendente para eles, como aquele espectáculo para mim. Só que, para mim, tinha sido uma escolha. Escolha minha. Para eles, não. Eles estavam a ser invadidos por algo insólito, que não tinham como compreender. Como, no meio da noite, uma criança branca tão pequena, aparecia ali no mundo deles, vinda de onde, perdida… devia ser muito complicado para aquelas cabeças?! 

 

Naquela altura eu não tinha como saber. Só muito mais tarde soube que eles eram feiticeiros e, portanto, estavam em pleno ritual, por qualquer motivo que só eles sabiam. A minha presença ali, infalivelmente, interferia nas intenções deles, no destino deles e isso deveria ter uma interpretação transcendental qualquer. Com certeza a minha presença encaixava no ritual, do qual eles tiravam uma qualquer ilação.

 

E quando eu já estava muito próxima deles e percebia que não me iam fazer mal, porque se quisessem já o teriam feito, e em vez disso continuavam olhando para mim mas, de certa forma, ignorando-me, eu chegava a entrar no círculo, onde ficava, encantada, extasiada, por fazer parte daquela festa, que para mim era única e exclusiva. Ninguém mais sabia daquilo. E ficava, ficava, às vezes até me sentava um pouco nas pedras do terreiro, deliciada, observando todos os gestos, movimentos, batuques e até as suas expressões. Depois, quando o sono começava a chamar por mim, levantava-me e tomava o caminho de volta, com o coração um pouco apertado, não fosse perder-me no caminho. Quando ao longe avistava a casa, então, respirava aliviada. Estava a salvo.

 

No meio destas aventuras todas, nunca ninguém me fez mal, nunca ninguém me tocou ou me incomodou. Eu sentia-me em casa, em família. Hoje, penso que aqueles rituais, independentemente do motivo por que se realizavam, deviam estar ligados às fases lunares, quero dizer, deviam acontecer com determinadas fases da lua, não sei.

 

Depois, havia os crocodilos. As casas ficavam à beira da estrada nacional. Do outro lado da estrada, a caminho do quartel, na cidade de Bissau, havia o mercado e um pouco antes do mercado, havia um fosso que vinha lá do meio do canavial e como era um fosso, fazia um desnível no terreno. Como era tudo terra batida, com as chuvas, a parte de cima do fosso tinha uma abertura pequena, e lá em baixo havia crocodilos. Sempre que se juntava um grupo de criançada havia que fazer alguma coisa. Na melhor das hipóteses inventava-se e lá íamos nós para os crocodilos. Como a minha mãe confiava muito em mim, eu andava sempre com a minha irmã atrás e tal como as nativas, tinha uma faixa que amarrava à cintura, onde sentava a minha irmã e rodava para trás, colocando-a às minhas costas, com o pano amarrado à cintura, o que fazia com imensa facilidade e assim a carregava para todo o lado, apesar dos avisos da minha mãe, que achava que aquilo me fazia muito mal às costas. É claro que fiquei com uma escoliose e uma cifose, o que não foi por acaso. E lá ia com a criançada toda para os crocodilos.

 

Isto, só por si, não seria muito grave, não fora a questão do fosso estar aberto na superfície e nos pormos a espreitar lá para baixo, a chamar nomes aos crocodilos, como que a provocá-los. Mas pior do que isso é que a abertura do fosso dava para cair lá em baixo e eu, sempre com a tolice de gostar de correr riscos, tinha aí uma óptima oportunidade para sentir a adrenalina a subir até furar os tímpanos, porque mandava todos sentarem-se, do mesmo modo que sentava a minha irmã muito bem sentadinha numa pedra que sempre tinha o cuidado de arranjar, maneirinha, para ela ficar bem confortável, dizendo-lhe para não sair dali de jeito nenhum, no que ela me obedecia sem reclamação alguma e, afastando os outros miúdos, saltava sobre a abertura do fosso. A cada salto que dava, afastava-me o suficiente para ganhar velocidade necessária e abrir as pernas o mais possível, caso contrário, caía lá em baixo e os crocodilos faziam uma festa comigo. Eu sabia disso. Tinha plena consciência, mas o risco era uma tentação. De cada vez que saltava havia um silêncio profundo e um medo quase aterrador que se transformava numa verdadeira festa, logo que os dois pés atingiam o lado oposto e a miudagem batia palmas de contente e depois também queriam fazer. Mas aí eu não deixava. Eu confiava em mim, nos outros não e não me agradava ver nenhum deles cair lá em baixo e ser devorado pelos crocodilos que estavam constantemente a levantar aquelas carcaças horrendas, abrindo a bocarra toda com quantos dentes tinham, como que dizendo “que apetitosos que vocês são!” 

 

Depois, íamos ao canavial, cortávamos canas bem compridas, descíamos à parte mais baixa do fosso, a vala, e quando os crocodilos vinham na nossa direcção de boca aberta, enfiámos as canas pelas goelas adentro e corríamos novamente para a parte de cima, onde estávamos relativamente em segurança, desde que não caíssemos lá em baixo. Quando nos fartávamos dos crocodilos regressávamos a casa esfalfados das brincadeiras que ninguém imaginava.

 

 

África foi um maravilhoso presente que a vida me deu. Depois de ter perdido a minha Índia com três anos de idade e de ter sido trazida para Portugal, onde tudo me parecia estranho e feio, sem graça, onde as pessoas vivam com as portas trancadas e não havia liberdade nem espaço para as brincadeiras, África foi o melhor que a vida me podia ter dado naquela altura, o que me deixaria uma saudade imensa para toda a vida.