Translate

sábado, 11 de março de 2023

O telemóvel - 76

 

A Lúcia e eu decidimos ir almoçar fora. Não tinha nada a ver com o que quer que fosse que o refeitório da RTP tivesse para aquele dia. Apenas, uma vez por outra, apetecia-nos espairecer na hora do almoço.

Decorriam as olimpíadas e todas as televisões dentro da empresa, num canal ou noutro, não falavam em outra coisa. E lá fomos nós em busca de um lugar diferente.

Saímos das instalações da Avenida 5 de Outubro e fomos até ao Chimarrão que nessa altura havia no Campo Pequeno, mesmo ao lado da Praça de Touros. Era um espaço gigante, onde acorria sempre muita gente que trabalhava ali naquelas redondezas e provavelmente outras pessoas vindas de outros lados. Para nós, estava óptimo. Eram meia dúzia de passos e lá estávamos nós.

Como era um espaço bem amplo, normalmente havia sempre lugar. E além de ser chimarrão, havia alternativas à ementa. Portanto, estava bem para qualquer um. A Lúcia sempre foi uma óptima companhia, porque estava sempre bem disposta. Tudo para ela era motivo de gargalhada e gozação. A descontração morava dentro dela, o que eu invejava grandemente, no bom sentido. Para ela nunca havia drama. Drama não ligava com a personalidade dela, de jeito nenhum. Nunca conheci ninguém assim.

Chegadas ao Chimarrão, procurámos uma mesa vaga e sentámo-nos. Na parede de fundo, lá estava um écran gigantesco e, como não podia deixar de ser, a transmitir os Jogos Olímpicos. Mas enfim, dado que estávamos fora do nosso local habitual, não nos afectava muito.

Logo de seguida chegaram dois indivíduos, que se sentaram numa mesa bem pertinho, logo a seguir à nossa. Lembro-me de que os dois chegaram, tiraram os respectivos casacos, ou sobretudos, puxaram das cadeiras e tomaram lugar à mesa. E é então que, sem querer, ouço um deles dizendo ao outro que o tinha chamado para irem ali almoçar, porque os dois tinham um assunto de trabalho para conversar e ele achava que seria mais proveitoso fora do local de trabalho, a fim de não serem interrompidos nem importunados com outros assuntos, etc, etc, etc, ao que o outro logo concordou, dizendo que estava plenamente de acordo e que tinha sido uma excelente ideia.

Ouvindo esta conversa, ainda que sem querer, pensei para comigo mesmo, que iam tratar de trabalho, o que não era o nosso caso. A Lúcia e eu íamos simplesmente espairecer. Talvez dizer disparates e falar de tudo menos de trabalho. Para isso não teríamos ido ali. Eu não queria de todo estar a ouvir a conversa dos dois, nem de ninguém. Mas eles estavam tão perto de nós, que era impossível não ouvir. Mesmo estando nós duas a falar uma com a outra, mesmo assim, ouvia-se, mesmo não querendo.

Dito isto, e enquanto tinham a ementa já nas mãos, eis que toca o telemóvel de um deles, que logo atende, dando início à conversação. Chegou o empregado, que o fez interromper a conversa ao telefone por uns instantes, mas logo recomeçou. O empregado retirou-se com ele ainda ao telemóvel e antes mesmo que a conversa terminasse, tocou o telemóvel do outro, que logo atendeu. Entretanto, o primeiro terminou, ficando em silêncio, pois o segundo estava agora a falar ao telemóvel.

A Lúcia e eu já tínhamos sido servidas e limitávamo-nos a saborear o nosso rico almoço, bem diferente do refeitório. E enquanto comíamos íamos conversando e parando, conversando e parando. Dizendo as nossas larachas e rindo das parvoeiras que íamos relembrando.

Entretanto os nossos amigos, parceiros de negócio, também já tinham iniciado o seu almoço. A diferença entre eles e nós, é que enquanto nós comíamos e conversávamos uma com a outra, eles comiam e falavam ao telemóvel. Acabava um, começava o outro. E às tantas eram os dois ao mesmo tempo. Que gente tão solicitada, pensava eu. Nem o almoço lhes dava o merecido prazer, porque ainda por cima as conversas eram longas. Longas a falar, longas a ouvir do lado de lá. E sempre que um começava a falar com o outro, por ausência de telefonemas, era certo que a conversa não ia para além de duas ou três palavras, pois eram logo interrompidos pelos telemóveis.

E nós na boa, descontraídas, carregando as baterias para mais uma tarde de trabalho e de olimpíadas, também, mas depois de uma boa e saborosa refeição.

Curiosamente o nosso almoço terminou mais ou menos ao mesmo tempo que o deles, pois quando chamámos o empregado para pagar, eles aproveitaram e fizeram o mesmo. E tal como nós, pediram a conta, pagaram, levantaram-se, voltaram a enfiar os casacos e guardaram os telemóveis nos respectivos bolsos.

Os dois tinham ido para uma conversa especial, segundo palavras deles, com uma certa importância. Tão importante que convinha ser fora do local de trabalho. Para quê? Para não serem importunados por nada nem ninguém.

Mas… !?