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domingo, 11 de outubro de 2015

A Teca - 22


Os meus nervos estavam em franja! Em menos de meia hora o autoclismo já tinha tido pelo menos umas dez descargas. Que raio se passava ali que eu não estava a perceber? Mas havia tanta coisa com ela que eu não entendia mesmo!... Por exemplo, com metro e meio de altura, como tinha ela conseguido um emprego de hospedeira da Sata e ainda por cima com o grave problema da fobia das “alturas”(?)… enfim, só mesmo nos Açores.

 

À custa dessa cena das “alturas” passaram-se episódios com os quais até hoje me rio sozinha.

 

Uma vez chegou ao porto de Ponta Delgada um navio no qual vinham “macanudos”, isto é, radioamadores. E como os nossos homens eram radioamadores, lá fomos os quatro passar uma tarde no navio, com direito a jantar a bordo, o que foi bem divertido. 


À chegada, a maré estava baixa e a escada do cais ao navio estava praticamente na horizontal, com uma inclinação mínima. Não houve problema algum. O problema foi na volta. Passamos tantas horas lá dentro que, na saída, a maré estava cheia e o navio tinha subido. A escada estaria a cerca de quarenta e cinco graus. Para mais, era noite cerrada e a iluminação do cais muito pobre. Eles saíram à frente, depois eu e a seguir a Teca (Teresa). Isto, se ela tivesse conseguido sair. Já eles iam no final da escada quando ela chegou à porta do navio e se apercebeu da situação em que estava. Aí deu um grito enorme e começou a chamar o marido. Ao ouvi-la chamar ele parou subitamente e voltou-se para trás. Aliás, os dois viraram-se. E ela continuou a gritar “Oh José Manuel, vem me buscar”, na sua bela pronúncia açoriana da ilha Terceira. 

 

O José Manuel que, em contraste com ela, era alto e espadaúdo, mais do que habituado àquelas cenas, não deu muita corda. Disse-lhe que descesse, porque não havia problema. Mas ela insistia para ele a ir buscar e levar ao colo, porque ela não conseguia sair dali. O meu marido que era um gozão desgraçado e gostava de castigar a fraqueza alheia, respondeu-lhe que podia ficar lá a noite, caso não quisesse descer, e os dois desligaram literalmente, pondo-se na alheta. Tal e qual. Sobrou para mim, claro está. A verdade é que ela tremia que nem varas verdes e agarrava-se ao corrimão com todas as forças que tinha, o que tornava tudo mais difícil. Então foi a minha vez de gritar pelos dois, mas eles não quiseram saber. Pronto, aquela cena estava-me destinada. Missões impossíveis eram sempre comigo.

 

Comecei a fazê-la entender que eles se estavam borrifando e que ela tinha que me ajudar para a tirar dali. Mas ela não queria saber de nada, não queria sair. Olhava lá para baixo e dizia que morria e gritava, gritava e… um Deus nos acuda. Finalmente tive uma ideia. Peguei num lenço que tinha ao pescoço, fiz uma venda e coloquei nela, pedindo-lhe para fechar os olhos e se esquecer de onde estava. Curiosamente, ou porque percebeu que não tinha alternativa, lá se acalmou. Depois, disse-lhe que se segurasse a mim como quisesse, que eu iria conduzi-la. E lá vinha ela, agarrada a mim com unhas e dentes, tremendo o corpo todo, tremendo a voz, que apelava a todos os santinhos e mais alguns. Mas passo por passo, degrau por degrau, lá conseguimos chegar à base, com imensa dificuldade, porque ela levava todas as minhas forças. Quando lhe disse que podia tirar a venda e abrir os olhos, certificando-se de que estava já no cais, livre da altitude, olhou para cima, curvou-se e desatou a rir, a rir, completamente histérica. Ela ria descontroladamente e eu assoprava por todos os lados, da tensão de carregar com ela, que não tinha sido propriamente fácil. Vamos embora, dizia-lhe eu, insistindo, porque já tínhamos perdido de vista os homens e ela já não tinha a menor pressa. Apenas, à sua maneira, libertava-se também da carga emocional a que tinha sido submetida.

 

Outra vez… alguns anos depois, já nós tínhamos regressado ao Continente, veio a Lisboa a uma consulta na maternidade Alfredo da Costa e depois foi ter comigo à RTP para irmos para minha casa, onde ela ficava sempre que vinha. E foi à maternidade sozinha. Tinha que apanhar o elevador para ir ao primeiro andar, mas não conseguiu porque o elevador era muito aberto e via-se tudo e lá vinha o problema das alturas. Então decidiu ir a pé. Só que, a meio, deu-lhe a “travadinha” e lá veio novamente a questão. Ficou paralisada, sem saber o que fazer e começou aos gritos. Passou um homem de bata branca e ela não fez mais nada: agarrou-se ao homem com unhas e dentes. Com a voz entramelgada e gaguejando por todos os lados, pediu-lhe muitas desculpas e só dizia “tire-me daqui, tire-me daqui”… o homem de branco que, por acaso, era médico e por acaso compreendeu a situação, pediu-lhe para se acalmar que ia tirá-la dali e lá subiu as escadas agarrada a ele, devagar… o costume. Ela contava-me aquilo rindo que nem uma doida e eu vendo a cena toda. Com um caraças!

 

Mas depois, na RTP fez-me outra cena inesquecível. Até hoje, está-me devendo essa.

 

O edifício da cinco de Outubro, que agora é o Hotel Zurik, era naquela altura a sede da RTP. Com treze andares, o edifício tem vários elevadores. Do lado onde eu trabalhava, sétimo andar, tinha dois elevadores que, por uma questão de poupança de energia, paravam alternados, de dois em dois andares. A Teca foi ter comigo até ao sétimo, sem problemas, porque os elevadores eram estanques, não se via nada para fora. Chegou ao sétimo andar e foi ter à minha sala. Então, quis ir tomar um cafezinho. Eu não tomava café, mas como ela queria, claro, lá fui com ela. E agora começa a tourada. O sétimo andar não tinha máquina de café porque também as máquinas de café eram de dois em dois pisos. Que aconteceu então? Era preciso subir ou descer um andar. Os elevadores, neste caso, não serviam, pelo que, toda a gente ia a pé. E ela não se opôs. Abri a porta de acesso à escada, entrámos no patamar e quando íamos começar a subir a escada ela joga-se ao corrimão e começa a gritar que vai cair. De repente, nem me lembrava daquele problema, mas logo me veio à ideia a cena das alturas e disse-lhe que só caía lá baixo se quisesse, porque nunca ninguém tinha caído. Além disso, as escadas tinham largura suficiente para se encostar à parede e comigo ao lado dela, do lado do corrimão, nem dava para ver a altura. Então, lá se acalmou, encostando-se à parede, conforme lhe sugeri. E começámos, aparentemente, subindo as escadas com calma e tranquilidade, mas quando eu achava que não havia problema nenhum, ela desata outra vez aos gritos, agarrada a mim, “ai que eu caio, ai que eu morro”… e dali não saíamos… e o pior é que eu não queria de maneira nenhuma que, naquele preciso momento, aparecesse quem quer que fosse e nos visse naquela cena. Aquele era o piso dos engenheiros e eu não queria aquela cena. E enquanto olhava para a porta de cima e para a de baixo, aflita, pedindo a Deus que não aparecesse ninguém, perguntei-lhe o que é que se passava agora, mas antes que ela me respondesse, rapidamente percebi. A parede tinha acabado e começava o envidraçado que acompanhava a escada desde a raiz ao topo do edifício. Ou seja, o patamar entre os dois lances das escadas era panorâmico. Inevitavelmente, ela olhava lá para baixo e ai Jesus que morro, que caio, etc. 

 

Imediatamente a puxei dali, o que foi fácil - porque não tinha onde se agarrar -, encaminhando-a para o segundo lance. E mais uma vez ela foi atraída para o corrimão, onde se agarrava com quanta força tinha, naquela histeria toda, olhando para baixo como se o mundo fosse acabar ali mesmo. Puxei-a para dentro e atirei-a contra a parede, mas a minha preocupação continuava: o medo de que alguém aparecesse. Aliás, só por sorte ainda não tinha aparecido ninguém e eu já não sabia mais o que fazer com ela. Tentei que se acalmasse, apelando ao bom senso que, claro, nestas alturas não funciona. Não tem como funcionar. O irracional está à solta, sem comando. Tremia ela e tremia eu. E o pânico era tanto, que se estendeu pelas escadas. Parecia uma cobra, agarrada aos degraus. E quanto mais eu lhe dizia para não olhar para baixo, mais ela se sentia atraída para o abismo. Comecei então a encorajá-la a rastejar, porque eram só mais uns degraus. Olhando para cima, apercebeu-se de que eu estava certa e rastejando, chegou ao patamar de cima. Recompondo-se, pôs-se de pé. Abri a porta que dava para o interior do edifício e a escada já tinha ficado para trás. Fomos à máquina do café e já com o café na mão, começámos as duas a rir, a rir que nem duas tontas. Para mim, o mais importante é que não tinha aparecido ninguém. A minha "reputação" estava salva.

 

Entretanto, já tínhamos demorado tanto com aquela cena que eu lhe disse que viesse bebendo o café pelo caminho. E ela já nem se lembrava que a tortura se ia repetir, até eu abrir novamente a porta da área de serviço. Antes que ela começasse novamente com os pânicos, falei-lhe com toda a seriedade para ter calma e não olhar para lá. E fazendo um esforço, lá foi, empurrada por mim, começando a descer a escada. Mas não durou muito o esforço. Lá se deitou novamente no chão, só que agora havia mais o café, que tremia por todos os lados. 

 

Sentei-me ao pé dela, uma vez mais, aterrada, com medo que alguém viesse e pedi-lhe que bebesse mais um gole de café, talvez ajudasse, pensei eu, que não bebo café. Mas nem ela conseguia levar à boca o copo de plástico, nem ouvia nada do que eu lhe dizia, só ai ai ai… ai ai ai… tirem-me daqui… que cena, que canseira! Eu não sabia para que lado me virar. Era o café, era ela, era eu, era tudo fora de controlo. Lá veio rastejando enquanto eu tentava tapar-lhe os olhos, evitando piorar o que já estava o pior possível. E com um esforço terrível lá conseguimos chegar. Pronto, porta fechada, escada para trás, ela ria que nem uma perdida. E eu ria também, pois.

 

E agora a cena do autoclismo que não parava. Eu estava provisoriamente numa casa de uma das minhas irmãs, porque a minha casa estava em obras. O meu marido estava nos Açores e eu estava com o meu filho na casa do Alto de S. João, uma casa que ela alugava a estudantes, num prédio muito antigo, onde tudo era antiquado. A casa de banho era espaçosa, mas tinha logo à entrada, do lado direito, o lavatório e a seguir a sanita, com um autoclismo cuja descarga era accionada por um cordão de metal que terminava numa maçaneta de madeira e que caía mesmo ao lado do lavatório.

 

A Teca estava a arranjar-se porque ia sair à noite. E pouco a pouco ia à casa de banho. Até aí tudo bem. Porque é que de cada vez que ia à casa de banho puxava o autoclismo, isso é que eu não conseguia entender! Primeiro, pensei que não estivesse bem dos intestinos, mas depois percebi que não podia ser, porque assim que entrava puxava logo a descarga. E quando eu já estava que não aguentava mais aquilo e me dispunha a averiguar, eis que a oiço falando sozinha “ah… corisco mal amanhado!” (uma expressão muito característica dela). Percebi, então, que não passava de um simples engano. Ela simplesmente confundia a maçaneta do autoclismo, que ficava pendurada ao lado do lavatório, com a luz do tecto que era logo à entrada, um interruptor normalíssimo. Aí, sozinha comigo mesma, não resisti à tentação e dei uma enorme gargalhada, porque eu própria já tinha cometido o mesmo erro, só que uma só vez, enquanto que ela repetia-o constantemente. 

 

Paciência, a Clara que se preparasse com a conta da água.