Os
meus nervos estavam em franja! Em menos de meia hora o autoclismo já tinha tido
pelo menos umas dez descargas. Que raio se passava ali que eu não estava a
perceber? Mas havia tanta coisa com ela que eu não entendia mesmo!... Por
exemplo, com metro e meio de altura, como tinha ela conseguido um emprego de
hospedeira da Sata e ainda por cima com o grave problema da fobia das “alturas”(?)…
enfim, só mesmo nos Açores.
À
custa dessa cena das “alturas” passaram-se episódios com os quais até hoje me rio
sozinha.
Uma
vez chegou ao porto de Ponta Delgada um navio no qual vinham “macanudos”, isto
é, radioamadores. E como os nossos homens eram radioamadores, lá fomos os
quatro passar uma tarde no navio, com direito a jantar a bordo, o que foi bem
divertido.
À chegada, a maré estava baixa e a escada do cais ao navio estava praticamente
na horizontal, com uma inclinação mínima. Não houve problema algum. O problema
foi na volta. Passamos tantas horas lá dentro que, na saída, a maré estava
cheia e o navio tinha subido. A escada estaria a cerca de quarenta e cinco
graus. Para mais, era noite cerrada e a iluminação do cais muito pobre. Eles
saíram à frente, depois eu e a seguir a Teca (Teresa). Isto, se ela tivesse
conseguido sair. Já eles iam no final da escada quando ela chegou à porta do
navio e se apercebeu da situação em que estava. Aí deu um grito enorme e
começou a chamar o marido. Ao ouvi-la chamar ele parou subitamente e voltou-se
para trás. Aliás, os dois viraram-se. E ela continuou a gritar “Oh José Manuel,
vem me buscar”, na sua bela pronúncia açoriana da ilha Terceira.
O
José Manuel que, em contraste com ela, era alto e espadaúdo, mais do que
habituado àquelas cenas, não deu muita corda. Disse-lhe que descesse, porque
não havia problema. Mas ela insistia para ele a ir buscar e levar ao colo,
porque ela não conseguia sair dali. O meu marido que era um gozão desgraçado e
gostava de castigar a fraqueza alheia, respondeu-lhe que podia ficar lá a
noite, caso não quisesse descer, e os dois desligaram literalmente, pondo-se na
alheta. Tal e qual. Sobrou para mim, claro está. A verdade é que ela tremia que
nem varas verdes e agarrava-se ao corrimão com todas as forças que tinha, o que
tornava tudo mais difícil. Então foi a minha vez de gritar pelos dois, mas eles
não quiseram saber. Pronto, aquela cena estava-me destinada. Missões
impossíveis eram sempre comigo.
Comecei
a fazê-la entender que eles se estavam borrifando e que ela tinha que me ajudar
para a tirar dali. Mas ela não queria saber de nada, não queria sair. Olhava lá
para baixo e dizia que morria e gritava, gritava e… um Deus nos acuda.
Finalmente tive uma ideia. Peguei num lenço que tinha ao pescoço, fiz uma venda
e coloquei nela, pedindo-lhe para fechar os olhos e se esquecer de onde estava.
Curiosamente, ou porque percebeu que não tinha alternativa, lá se
acalmou. Depois, disse-lhe que se segurasse a mim como quisesse, que eu
iria conduzi-la. E lá vinha ela, agarrada a mim com unhas e dentes, tremendo o
corpo todo, tremendo a voz, que apelava a todos os santinhos e mais alguns. Mas
passo por passo, degrau por degrau, lá conseguimos chegar à base, com imensa
dificuldade, porque ela levava todas as minhas forças. Quando lhe disse que
podia tirar a venda e abrir os olhos, certificando-se de que estava já no cais,
livre da altitude, olhou para cima, curvou-se e desatou a rir, a rir,
completamente histérica. Ela ria descontroladamente e eu assoprava por todos os
lados, da tensão de carregar com ela, que não tinha sido propriamente fácil.
Vamos embora, dizia-lhe eu, insistindo, porque já tínhamos perdido de vista os
homens e ela já não tinha a menor pressa. Apenas, à sua maneira, libertava-se
também da carga emocional a que tinha sido submetida.
Outra
vez… alguns anos depois, já nós tínhamos regressado ao Continente, veio a
Lisboa a uma consulta na maternidade Alfredo da Costa e depois foi ter comigo à
RTP para irmos para minha casa, onde ela ficava sempre que vinha. E foi à
maternidade sozinha. Tinha que apanhar o elevador para ir ao primeiro andar,
mas não conseguiu porque o elevador era muito aberto e via-se tudo e lá vinha o
problema das alturas. Então decidiu ir a pé. Só que, a meio, deu-lhe a
“travadinha” e lá veio novamente a questão. Ficou paralisada, sem saber o que
fazer e começou aos gritos. Passou um homem de bata branca e ela não fez mais
nada: agarrou-se ao homem com unhas e dentes. Com a voz entramelgada e
gaguejando por todos os lados, pediu-lhe muitas desculpas e só dizia “tire-me
daqui, tire-me daqui”… o homem de branco que, por acaso, era médico e por acaso
compreendeu a situação, pediu-lhe para se acalmar que ia tirá-la dali e lá
subiu as escadas agarrada a ele, devagar… o costume. Ela contava-me aquilo
rindo que nem uma doida e eu vendo a cena toda. Com um caraças!
Mas
depois, na RTP fez-me outra cena inesquecível. Até hoje, está-me devendo essa.
O
edifício da cinco de Outubro, que agora é o Hotel Zurik, era naquela altura a
sede da RTP. Com treze andares, o edifício tem vários elevadores. Do lado onde
eu trabalhava, sétimo andar, tinha dois elevadores que, por uma questão de
poupança de energia, paravam alternados, de dois em dois andares. A Teca foi
ter comigo até ao sétimo, sem problemas, porque os elevadores eram estanques,
não se via nada para fora. Chegou ao sétimo andar e foi ter à minha sala.
Então, quis ir tomar um cafezinho. Eu não tomava café, mas como ela queria,
claro, lá fui com ela. E agora começa a tourada. O sétimo andar não tinha
máquina de café porque também as máquinas de café eram de dois em dois pisos.
Que aconteceu então? Era preciso subir ou descer um andar. Os elevadores, neste
caso, não serviam, pelo que, toda a gente ia a pé. E ela não se opôs. Abri a
porta de acesso à escada, entrámos no patamar e quando íamos começar a subir a
escada ela joga-se ao corrimão e começa a gritar que vai cair. De repente, nem
me lembrava daquele problema, mas logo me veio à ideia a cena das alturas e
disse-lhe que só caía lá baixo se quisesse, porque nunca ninguém tinha caído.
Além disso, as escadas tinham largura suficiente para se encostar à parede e
comigo ao lado dela, do lado do corrimão, nem dava para ver a altura. Então, lá
se acalmou, encostando-se à parede, conforme lhe sugeri. E começámos,
aparentemente, subindo as escadas com calma e tranquilidade, mas quando eu
achava que não havia problema nenhum, ela desata outra vez aos gritos, agarrada
a mim, “ai que eu caio, ai que eu morro”… e dali não saíamos… e o pior é que eu
não queria de maneira nenhuma que, naquele preciso momento, aparecesse quem
quer que fosse e nos visse naquela cena. Aquele era o piso dos engenheiros e eu
não queria aquela cena. E enquanto olhava para a porta de cima e para a de
baixo, aflita, pedindo a Deus que não aparecesse ninguém, perguntei-lhe o que é
que se passava agora, mas antes que ela me respondesse, rapidamente percebi. A
parede tinha acabado e começava o envidraçado que acompanhava a escada desde a
raiz ao topo do edifício. Ou seja, o patamar entre os dois lances das escadas
era panorâmico. Inevitavelmente, ela olhava lá para baixo e ai Jesus que morro,
que caio, etc.
Imediatamente
a puxei dali, o que foi fácil - porque não tinha onde se agarrar -,
encaminhando-a para o segundo lance. E mais uma vez ela foi atraída para o
corrimão, onde se agarrava com quanta força tinha, naquela histeria toda,
olhando para baixo como se o mundo fosse acabar ali mesmo. Puxei-a para dentro
e atirei-a contra a parede, mas a minha preocupação continuava: o medo de que
alguém aparecesse. Aliás, só por sorte ainda não tinha aparecido ninguém e eu
já não sabia mais o que fazer com ela. Tentei que se acalmasse, apelando ao bom
senso que, claro, nestas alturas não funciona. Não tem como funcionar. O
irracional está à solta, sem comando. Tremia ela e tremia eu. E o pânico era
tanto, que se estendeu pelas escadas. Parecia uma cobra, agarrada aos degraus.
E quanto mais eu lhe dizia para não olhar para baixo, mais ela se sentia
atraída para o abismo. Comecei então a encorajá-la a rastejar, porque eram só
mais uns degraus. Olhando para cima, apercebeu-se de que eu estava certa e rastejando,
chegou ao patamar de cima. Recompondo-se, pôs-se de pé. Abri a porta que dava
para o interior do edifício e a escada já tinha ficado para trás. Fomos à
máquina do café e já com o café na mão, começámos as duas a rir, a rir que nem
duas tontas. Para mim, o mais importante é que não tinha aparecido ninguém. A
minha "reputação" estava salva.
Entretanto,
já tínhamos demorado tanto com aquela cena que eu lhe disse que viesse bebendo
o café pelo caminho. E ela já nem se lembrava que a tortura se ia repetir, até
eu abrir novamente a porta da área de serviço. Antes que ela começasse
novamente com os pânicos, falei-lhe com toda a seriedade para ter calma e não
olhar para lá. E fazendo um esforço, lá foi, empurrada por mim, começando a
descer a escada. Mas não durou muito o esforço. Lá se deitou novamente no chão,
só que agora havia mais o café, que tremia por todos os lados.
Sentei-me
ao pé dela, uma vez mais, aterrada, com medo que alguém viesse e pedi-lhe que
bebesse mais um gole de café, talvez ajudasse, pensei eu, que não bebo café.
Mas nem ela conseguia levar à boca o copo de plástico, nem ouvia nada do que eu
lhe dizia, só ai ai ai… ai ai ai… tirem-me daqui… que cena, que canseira! Eu
não sabia para que lado me virar. Era o café, era ela, era eu, era tudo fora de
controlo. Lá veio rastejando enquanto eu tentava tapar-lhe os olhos, evitando
piorar o que já estava o pior possível. E com um esforço terrível lá
conseguimos chegar. Pronto, porta fechada, escada para trás, ela ria que nem
uma perdida. E eu ria também, pois.
E
agora a cena do autoclismo que não parava. Eu estava provisoriamente numa casa
de uma das minhas irmãs, porque a minha casa estava em obras. O meu marido
estava nos Açores e eu estava com o meu filho na casa do Alto de S. João, uma
casa que ela alugava a estudantes, num prédio muito antigo, onde tudo era
antiquado. A casa de banho era espaçosa, mas tinha logo à entrada, do lado
direito, o lavatório e a seguir a sanita, com um autoclismo cuja descarga era
accionada por um cordão de metal que terminava numa maçaneta de madeira e que
caía mesmo ao lado do lavatório.
A
Teca estava a arranjar-se porque ia sair à noite. E pouco a pouco ia à casa de
banho. Até aí tudo bem. Porque é que de cada vez que ia à casa de banho puxava
o autoclismo, isso é que eu não conseguia entender! Primeiro, pensei que não
estivesse bem dos intestinos, mas depois percebi que não podia ser, porque
assim que entrava puxava logo a descarga. E quando eu já estava que não
aguentava mais aquilo e me dispunha a averiguar, eis que a oiço falando sozinha
“ah… corisco mal amanhado!” (uma expressão muito característica dela). Percebi,
então, que não passava de um simples engano. Ela simplesmente confundia a
maçaneta do autoclismo, que ficava pendurada ao lado do lavatório, com a luz do
tecto que era logo à entrada, um interruptor normalíssimo. Aí, sozinha comigo
mesma, não resisti à tentação e dei uma enorme gargalhada, porque eu própria já
tinha cometido o mesmo erro, só que uma só vez, enquanto que ela repetia-o
constantemente.
Paciência, a Clara que se preparasse com a conta da água.