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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Olá! - 65

 

Nos dias que correm nada acontece. Até a memória parece que se extinguiu, ao ponto de já nada me dar para me entreter. Tudo parado. Todos fechados em casa, por conta de uma pandemia que assolou o mundo, Covid 19, a única coisa que realmente domina a vida com as mortes e os infectados. Não há crianças a brincar na rua, nos parques, em lado nenhum. Não há passeios, ajuntamentos e muito menos festas e viagens. Ninguém pode estar com ninguém, nem mesmo com a família, pois cada um se tem que proteger o melhor possível para fugir à possibilidade de infecção.

Saí para ir à Farmácia comprar um medicamento que tomo para a tensão arterial. Já passava da uma hora da tarde, hora do confinamento, mas por isso mesmo decidi deixar a ida à Farmácia para essa altura, uma vez que a Farmácia é um dos poucos lugares onde se pode ir depois do horário do confinamento obrigatório. Obrigatório sim, mas são muitas horas, muitos dias, muito tempo de clausura. As pernas precisam de andar e a cabeça precisa de arejar. Para não falar em “respirar”…

Já tinha almoçado, já tinha feito as tarefas caseiras todas e mais algumas e decidi aproveitar a ida à Farmácia para dar movimento ao corpo e ao mesmo tempo mudar um pouco o registo visual que bem precisado estava. Nem aos vizinhos se pode ir, porque cada um tem a sua vida, os seus contactos, cada um é um universo diferente, com o seu próprio mundo e lamentavelmente nada confiável.

O medo domina-nos, persegue-nos para todo o lado. É preciso estar sempre de vigia. Fazer um desvio aqui, outro ali. Fingir que não, mas sim, contribuir para a não contaminação, uma vez que ninguém pode garantir que está inócuo, sem infecção, que pode muito bem ser silenciosa, sem voz e sem rosto, completamente invisível. Uma tragédia inconformável, infelizmente sem volta a dar, a não ser esperar, esperar.

E lá fui eu, pé ante pé, sem a menor pressa de nada e muito menos de voltar para casa, onde não há ninguém, a não ser a televisão e o telefone para quebrar o silêncio. Ah, o computador, claro. Pé ante pé no alcatrão e na calçada, nada nem ninguém. A única coisa que eu ouvia eram as minhas próprias passadas, de resto, mais nada. Um silêncio de cortar a alma. Um vazio intolerável. E a vida a passar-nos ao lado. Quanto tempo mais?

Ah, os pássaros! Esses sim, ouviam-se que era uma maravilha. Mais do nunca. A esses não há vírus ou outra coisa qualquer que lhes tire a liberdade. A liberdade que é das coisas que eu mais prezo no ser humano. Quanta inveja! Escutando melhor, havia o eco de tudo ao fundo. O eco dos poucos carros a circular ao longe, o eco de vozes talvez vindas de dentro das casas, tudo indefinido, tudo distante da realidade, distante do palpável.

E ao fim de dez minutos de andar num passo bem descontraído e tão lento quanto possível, chego à Farmácia. Aguardo um pouco cá fora, pois tem duas pessoas à minha frente, posicionadas com o distanciamento conveniente, para não falar das máscaras que nos tornam ainda mais distantes uns dos outros. Ninguém reconhece ninguém…

Mas chega a minha hora de entrar até que finalmente me encontro perante a farmacêutica que me vai atender. Uma garota muito nova, bonita, simpática e sorridente que como todos os outros nos atende sempre muito bem, com muito à vontade, até com um certo trato familiar que tão bem assenta e um pouco de conversa descontraída, para saber se está tudo bem, tudo nos conformes, sem problemas de maior. E já com o medicamento pago, saio da farmácia para dar lugar a outro que já está à espera para entrar.

De regresso a casa começo novamente a ouvir os meus passos na calçada. Mais uma tarde em casa, inventando e reinventando para a cabeça não dar um nó maior, um nó que não tenha saída. Tento sacudir os pensamentos negativos, valorizar o pouco de sol que nos visita no meio dos dias húmidos e tristes e continuo a minha caminhada, impondo a mim mesma uma persistente disciplina no que me vai no pensamento para não o deixar ir ao deus dará.

E mal começo a afastar-me da farmácia, ouço repentinamente vindo do nada, mas muito bem definido, nada tendo a ver com o eco da mistura de todos os outros sons dirpersos que se ouvem, um “olá(!)” tão espontâneo quanto delicioso. Olá, pensei eu. Um olá que em princípio nada tinha a ver comigo, com a minha pessoa. Em todo o caso, era agradável de ouvir. Viesse de onde viesse era bom ouvir. Soava bem e diferenciava o silêncio que era mais que muito. E em princípio não seria comigo, mas com quem mais poderia ser se não havia por ali mais ninguém?

Olhei vagarosamente em volta, como quem não quer nada, e de facto não havia ninguém para aquele surpreendente olá. Para quem seria então? E de repente ouço nas minhas costas, mas algures acima, uma voz sussurrando “não te ouviu”. Não te ouviu? E a voz repetiu com a mesma vivacidade e a mesma surpresa “olá(!)”. Não, agora eu tinha que me virar e verificar, porque alguma coisa me dizia que afinal poderia ser para mim e exclusivamente para mim, uma vez que não havia vivalma por perto.

Foi então que, sem querer perder mais tempo, me virei e do primeiro andar por cima da farmácia, exposto na varanda, vi uma pequeníssima criatura com um bracito esticado e a mãozinha toda aberta acenando e olhando para mim. Um garotinho aí de uns três anos, por trás do gradeamento da sua varanda voltou a dizer “olá”, olhando para mim na expectativa de que eu lhe devolvesse o olá que ele fazia tanta questão de exibir.

E como não? Não era possível ignorar aquele gesto tão simples, tão inesperado, tão carinhoso. Uma graça, pensei para comigo mesma. Fiquei parada a admirá-lo, também ele vítima da clausura, não tendo mais o que fazer, decidiu ir para a varanda descobrir algum transeunte com quem quebrar a sua monotonia caseira. Olá, dizia ele, acenando com a mãozinha pequena e fofa. E rapidamente lhe respondi “olá”, seguida de um beijo que lhe enviei com a minha mão, que o atirou na sua direcção, enquanto ficou a acenar-lhe com todo o entusiamo que aquele pequeno gesto me tinha transmitido.

Correspondendo ao meu beijo, com a sua mãozita pequena me enviou um, dois, três beijos rápidos, que voaram na minha direcção. Estava feliz, como pude perceber, por ter tido aquela simples recepção. E eu estava extasiada, também numa felicidade imensa, imparável, que por momentos me salvara dos pensamentos tristes e pesados que invadiam as minhas ideias. Não importava quem era aquela criança, da mesma maneira que ele tão pouco se importou com quem era eu. Eu era apenas eu, que por ali passou no momento em que precisou de ver alguém para ter a quem falar, a quem cumprimentar à sua maneira pueril e natural. Se não tivesse olhado para trás teria sido muito burra. E ali ficámos os dois a admirarmo-nos um ao outro, felizes, na nossa expontânea comunicação sem hora marcada. Era de lá os bracitos dele no ar e de cá os meus também, e as nossas mãos abanando, abanando, numa estreita cumplicidade amorosa sem igual, sem antes nem depois.

E parei para retomar o meu caminho de regresso a casa à minha habitual solidão, onde o conforto desconfortável me aguardava, agora porém com a alma renovada, iluminada e sem dúvida com um ânimo novo que me guiou o curto caminho, com um sorriso frescos nos lábios, para deixar de ouvir o eco do silêncio, do vazio, da vida parada, onde nada acontece a não ser as infecções e as mortes.