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quarta-feira, 19 de março de 2014

A mariscada - 2


Era uma vez quatro amigos, que se juntaram para fazer e comer marisco. E como um deles tinha um restaurante nos Açores, era um excelente cozinheiro.  Por isso, depois de terem ido ao mercado, pertinho da minha casa, enfiaram-se na minha cozinha, onde fizeram uma grande festa só para eles. Mas aí, cheguei eu... e... a festa quase acabou.

 

É claro que um deles era meu marido e os outros três açorianos, todos eles residentes nos Açores, por isso se reuniam em nossa casa, em Lisboa, onde faziam tudo o que lhes apetecia. Ou quase tudo. Como já disse, um, era dono de um restaurante, os outros, incluindo o meu marido, pessoal da RTP, como eu.

 

Numa bela tarde de verão, entro em casa, ouço chamar por mim e vou até à cozinha. Eh eh eh eh... que grande farra! Comiam que nem uns alarves. Mas que tinha bom aspecto, tinha, e que cheirava maravilhosamente bem, cheirava.

 

Naquela casa, antes de nós, tinha vivido o meu cunhado brasileiro, durante muitos anos em que fingiu que estudou medicina em Portugal e partilhava a casa com outros brasileiros nas mesmas condições que ele. Foi por essa altura que ele e a minha irmã se conheceram, namoraram e acabaram por ir para o Brasil onde casaram e foram muito felizes.

 

A questão é que aquela casa nessa altura estava sempre cheia de brasileiros e onde há brasileiros há feijoada. Então, todos os fins-de-semana se fazia uma tachada que dava para um batalhão. Aos fins-de-semana não se fazia outra coisa que não fosse comer, salvo um deles, que estava sempre sentado na varanda com o seu violão - tocando e cantarolando, para quem a música era mais importante que a feijoada - , todos os outros comiam e dormiam. Esse, o da música, era o "Djavan" que, nessa altura ainda não era famoso.

 

Aquelas célebres feijoadas eram cozinhadas num tacho especial. Um tacho de alumínio enorme, uma coisa monstra que por lá ficou, juntamente com outras coisas. Quando eles se foram embora e fomos para lá viver, na necessidade de fazer uma escolha, poupei aquele tacho porque me recordava aqueles tempos, embora o tacho não desse muito jeito para guardar, pelo facto de ser muito grande. Mas foi ficando por lá, por cima dos armários da cozinha, o único sítio onde cabia.

 

Mais tarde, decidi armar em tintureira e o dito cujo foi-me de extrema utilidade, porque era o único possível para fazer a mistura das tintas, tendo bastante espaço para puxar a roupa de um lado para o outro, quando eu decidia que já estava farta de uma determinada peça de roupa daquela cor e a mudava drasticamente. Grande tacho! Sem ele, nunca conseguiria fazer aquelas "caldeiradas" e brincadeiras com a roupa.

 

Ora bem, por conta disso, o tacho tinha várias marcas, posto que jamais me dei ao trabalho de o lavar no final de cada trabalho que fazia. Era só o que faltava! E assim, as marcas iam ficando, em altura e cor. No interior do tacho podiam-se ver claramente as marcas de várias cores.

 

Mas, voltando à mariscada dos quatro amigos, eles precisavam de um tacho e depois de rebuscarem tudo na minha cozinha, nem pensaram duas vezes. Era aquele mesmo que servia para o que pretendiam. E lá vai o marisco para o tacho da tinturaria. Claro que eles não viram nada, mesmo porque jamais passaria pela cabeça deles a que se destinava o tacho. Portanto, usaram-no e pronto.

 

Quando entrei na cozinha e os vi a comer com grande apetite, a babar com o marisco e eles a convidarem-me para me sentar com eles e comer, primeiro fiquei aflita, mas tinha que lhes dizer. E se apanhassem uma intoxicação? Podia acontecer?! Ah... mas talvez eles tivessem lavado o tacho... sim, só podia ser...que estupidez a minha. E, rapidamente, aproximei-me do tacho. Cravei o olhar no interior e que vejo: as marcas das tintas intactas!...

 

Era inacreditável. Aquelas criaturas não se deram ao trabalho de ver o estado do tacho, que estava exactamente como eu o tinha deixado. Eu olhava para as caras deles e via o olhar deles a começar a desconfiar de algo que não percebiam o que poderia ser. Mas a minha expressão de espanto, de um certo nojo e de muitas outras coisas era notória, porque simplesmente não conseguia esconder. E perguntei porque é que tinham ido buscar aquele tacho. Claro que a resposta era óbvia: "porque era grande, o maior"...

 

E continuei perguntando, com eles a comer: "e não viram as marcas da tinta?" Pararam. Olharam para dentro do tacho e eu apontei, dizendo: "olhem aqui, aqui, aqui..." Foi aí que se deram conta e continuei: "só uso este tacho para tingir roupa, por isso nunca o lavo". Pararam. Engasgaram-se, simularam ou não um vómito, ficaram entre a espada e a parede. E disse: "querem apanhar uma intoxicação?" Houve um vacilo de alguns segundos e depois veio a resposta: "o que não mata engorda!". 

 

E a mariscada continuou entre a boa disposição que redobrou e as gargalhadas e as piadas à boa maneira açoriana.

 

Já se passaram quarenta anos. Estão todos vivos. Só não sei se se lembram(?)...

 

terça-feira, 4 de março de 2014

O televisor - 1


À minha frente, uma escadaria que nunca mais acabava... eu era mais doida do que supunha.

 

A Lúcia tinha dito desde o início "amiga, podes trocar o televisor, mas quem fica a perder és tu e eu não vou conseguir dar-te grande ajuda"... mas eu aceitara a troca. Aliás, fui eu que pedi. Ninguém pede para trocar um televisor pequeno por um grande!?

 

Tudo começou quando, uma vez mais, decidi dar um visual novo à minha sala. E depois da mudança percebi que o meu televisor era muito grande para o novo espaço. Que fazer? A solução era um LCD, mas ainda eram muito caros e naquele momento não podia ser. Então, enquanto esperava, tinha que arranjar um televisor bem mais pequeno. E quem poderia fazer essa troca comigo? A Lúcia, claro.

 

Estava feito. Um dia, saímos as duas à mesma hora e fomos direitinhas à minha casa. E depois de ter estudado muito bem o plano, ela sempre acabou por me dar uma ajudinha. Abria e fechava as portas. A porta de casa, a porta do elevador, a porta do carro e também carregava uns fios eléctricos do televisor, que era um catramolho desgraçado e pesava para caramba. Mas eu não tinha lata para pedir a ninguém um favor daqueles. E depois, favores, pagam-se.

 

Mas o televisor lá entrou no carro, com um empurrão daqui, um empurrão dali, um "cuidado" daqui, cuidado dali, lá foi. Entrámos no carro e fui dirigindo da Póvoa de Stº Adrião até à Pontinha. Pelo caminho, a Lúcia buzinava nos meus ouvidos o tempo todo, que eu não podia levar o televisor até lá acima. Era muito pesado, era perigoso e eu não ia ter força suficiente para aquilo. Era coisa para um homem ou dois. Não dava jeito, etc, etc, etc. Eu sabia de tudo, mas tinha que ser e pronto. Garanti-lhe que o televisor ia chegar a casa dela.

 

Chegámos, andamos às voltas para arranjar o melhor estacionamento, o que não foi fácil. Mas estacionámos. Depois, era preciso atravessar a estrada para chegar ao outro lado da rua, ao prédio dela. Ela atravessou e ficou à minha espera, claro, toda nervosa. E eu lá fui, carregando o televisor, devagar, passo a passo, cada vez mais perto do final, mas cada vez mais perto do ponto crucial: a escadaria que dava acesso à base do prédio dela.

 

Com muito esforço cheguei ao outro lado da rua e a primeira coisa que fiz foi largar o televisor no chão, com o restinho de fôlego que me restava. Posto isto, respirei fundo e pensei "está quase, é só subir a escadaria"?!... E então, a Lúcia fugiu escadas acima, cheia de nervoso miudinho, sem saber o que fazer. Ela nem queria olhar. Mas o milagre tinha que acontecer e mais uma vez lhe disse que punha o televisor em casa dela, portanto, o problema era meu. E desapareceu prédio adentro.

 

Olhei para as escadas sem conseguir fazer uma previsão do tempo que levaria para carregar com aquilo e mais outras coisas, equilíbrio, etc... porque na verdade eu era apenas cinquenta quilos num metro e sessenta de altura. Tudo contava e tudo estava em jogo. Olhei mais uma vez e pensei que não havia alternativa e portanto, baixei-me para pegar no televisor. Agarrei-o firmemente e devagarinho fui-me levantando para não me desequilibrar.

 

Ao mesmo tempo que me levantava carregando o televisor, vi um policial fardado, um homem com um aspecto robusto, que me olhava fixamente, enquanto caminhava na minha direcção. No rosto dele percebi que interferia comigo. Seria proibido carregar televisores? Teria eu cara de quem tinha roubado um televisor? Iria pedir-me documentos? Talvez não fosse nada disso, apenas impressão minha.

 

E continuando na minha direcção, aproximou-se, dizendo: "uma senhora não pode carregar um televisor desse tamanho, dê cá que eu levo, é só dizer para onde o quer levar". Esperava tudo, menos aquela atitude. Mas apressei-me a dizer que era para levar até ao cimo da escada, insistindo que eu o podia carregar. O policial nem me deu mais tempo. Tirou-me o televisor e rapidamente subiu a escada, comigo atrás dele.

 

E continuou - "e agora?" - respondi que era naquela porta e que era fácil metê-lo no elevador. Então ele pediu para lhe abrir a porta e finalmente entrou no prédio, chamou o elevador e colocou o televisor lá dentro dizendo "está entregue". Agradeci, voltei a agradecer e ele foi-se.

 

Toquei à campainha da porta da Lúcia, mas a porta estava só encostada e ela logo apareceu. Abriu a porta toda e eu entrei, largando o televisor no primeiro pouso que encontrei. O televisor estava entregue, conforme o prometido e a Lúcia dizia: "Já?... Que força tu tens, amiga!? Bem dizias tu que conseguias. Tens tanta força como um homem?!...