Translate

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

A Carla - 54



Há dias encontrei um colega de trabalho e os dois começámos a tagarelar disto e daquilo, mais precisamente sobre a empresa, os colegas, alguns que já partiram, outros que também se reformaram e por aí adiante. Muitas novidades, outras nem tanto. Foi o caso.

 

De repente ele perguntou-me se me lembrava da Carla, uma colega do Serviço de Manutenção. Claro sim, respondi, a Carla da Drecção Técnica. “Ah, o filho dela é “gay”! E dizia isto com um ar de quem estava convencido de que eu iria ficar chocada ou pelo menos, muito admirada.

 

Convém esclarecer que em relação a este assunto não tenho nada contra, mas também não tenho nada a favor. Cada um é como cada qual. No caso em questão, quando ele me disse isto, não fiquei nada surpreendida. Ao contrário do que ele poderia pensar, para mim aquilo fazia todo o sentido. E porquê?

 

A Carla era uma mulher num sector que até então só tinha homens. Foi portanto, a primeira mulher a trabalhar em electrónica na empresa. Logo de seguida apareceu outra, mas essa outra era completamente diferente. Ambas eram casadas e com filhos. A Carla só tinha um, que por sinal era um rapaz. Lembro-me bem do garoto por lá, desde pequeno. Todos os funcionários, uma vez por outra, tinham necessidade de levar os filhos por não terem com quem ficar. E por tanto, assisti ao crescimento dele, como de muitas outras crianças. Aparentemente era um miúdo perfeitamente normal. Um menino, apenas isso.

 

Mas a Carla não era uma mulher na verdadeira acepção da palavra, isto é, não era uma mulher comum. Ela era diferente. E não era pelo facto de estar num sector de homens. A outra também estava nas mesmas condições e apesar de não me lembrar de alguma vez a ter visto maquilhada ou vestida de maneira mais sexy, nem por isso deixava de ser mulher, de ser feminina. Apenas era uma mulher bastante simples. A Carla não. A Carla era diferente. Não tenho como explicar de maneira lógica porque não era pelo facto, por exemplo, de usar o cabelo curto. Durante muitos anos usei o cabelo bem curto e as minhas amigas ficavam surpreendidas dizendo que quanto mais curto eu usava o cabelo mais feminina ficava. Portanto, não era por aí. Também não era o facto de nunca a ter visto de vestidos ou de saias. Usava sempre calças, mas quantas mulheres bem femininas só usam calças por se acharem mais sexys? A Carla, evidentemente, não se pintava, não se enfeitava, era estrictamente básica. Mas a outra colega também. No entanto, olhava-se para ambas e via-se a diferença. Uma era mulher sem margem para dúvidas, já a Carla não. Ela parecia sempre mais homem que mulher. Aliás, ela nunca parecia mulher. Até a voz dela, apesar de ser bastante suave e até meiga, não estava colocada na posição certa.

 

Portanto, não era possível dizer que era por isto ou por aquilo, mas qualquer pessoa olhava e no todo, via uma mulher diferente, apesar das formas avantajadas, apesar de tudo. Isto é tanto verdade que na distribuição dos trabalhos havia sempre o cuidado de, olhando a escala de quem estava de serviço, dependendo do trabalho em questão ser ou não adequado a uma mulher e se fosse o caso, e estivesse na vez da colega, a Leonor, o trabalho era imediatamente encaminhado para outro colega, um homem. Na vez da Carla, ninguém pensaria em dar o trabalho a outra pessoa. Ela bastava-se, não precisava de ser poupada à tarefa, qualquer que fosse. Era casada com um indivíduo bastante mais velho, bem parecido e tinha um colega também bastante mais velho que andava sempre a tentar seduzi-la. E em relação a isso ficou sempre a minha dúvida, ou ela não percebia ou fazia que não entendia.  Ela era uma mulher mas, insisto, não era uma mulher comum. O lado masculino nela era muito forte, muito acentuado.

 

E assim, quando o colega com quem eu conversava me contou que o filho dela era “gay”, usava até as unhas pintadas, etc… e havia gozação porque o preconceito sempre há-de existir, não fiquei nem um pouco surpreendida. Fazia todo o sentido. Aquilo era uma coisa genética e simplesmente tinha passado para o garoto. Nada a fazer. Compreendi perfeitamente que não se pode ir contra a própria natureza. As coisas são como são.


Sem comentários:

Enviar um comentário