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terça-feira, 29 de outubro de 2024

O dinheiro fala sempre mais alto - 80


Sim. Meu pai tinha três casas quando faleceu. Talvez porque tinha três filhas. Porém, as três casas ficaram para a minha meia irmã, a mais nova.

Isto foi algo que incomodou muita gente, muito mais do que a mim e à minha irmã. Jamais o questionámos sobre questões de herança. Era como se não tivesse nada. Nem nos lembrávamos disso. Sempre nos preocupámos bem mais com outras coisas, nomeadamente, a sua saúde e os seus problemas. E, quanto à herança, estava claro que a minha madrasta estava por trás de tudo, impondo as suas vontades. Quando casou com o meu pai, não tinha nada. Ao longo dos anos que viveram juntos e por ter tido uma filha com ele, sempre fez a cabeça dele, porque só pensava e queria tudo para a filha dela. Mas não foi só com o marido que ela teve esse comportamento egoísta e materialista. Fez o mesmo com a irmã, uma irmã que era solteirona e nunca teve filhos. No entanto, essa sim, tinha muito dinheiro, porque tinha lojas abertas e tudo o que ganhava era investido em propriedades. Como não tinha filhos, a minha madrasta conseguiu fazer com que ela deixasse todos os bens, que não eram poucos, para a sua querida filha, apesar de haver outros herdeiros, os primos, igualmente seus sobrinhos e que teriam tanto direito como ela.

Não me admira nada esta atitude da minha madrasta, admira-me sim, a minha irmã nunca ter aberto a boca para defender os primos, do lado da tia, por exemplo, que ela sabia perfeitamente que tinham tantos direitos como ela, ou as irmãs, por parte do pai, que estavam exactamente na mesma posição. O problema é que o dinheiro fala sempre mais alto.

Claro, sei como era a minha madrasta e sei que ela investia na filha conforme podia para a manipular, da mesma maneira que fazia com o nosso pai. Do lado da tia, até posso entender, porque ela e a irmã eram muito chegadas. Não é que, inicialmente, também não o fossem com o irmão. Mas o irmão casou, teve dois filhos, também tinha os seus negócios, mas não era tão colado às duas irmãs, que eram unha e carne uma com a outra, talvez por serem solteironas e não terem amigos, sendo muito sozinhas. A minha madrasta quando casou já tinha quarenta anos e a irmã era mais velha. Elas eram muito estranhas. E se o meu pai não conseguiu o elo de amor com a filha mais nova como conosco, em parte foi por culpa da minha madrasta. Quando éramos crianças, ainda a minha mãe era viva, sempre que o meu pai estava em casa, íamos com ele ao parque para brincar. Foi ele que nos ensinou a andar de trotinete, a andar de bicicleta, o isso era muito bom. Uma verdadeira felicidade. Era o nosso querido e amado pai. Com a minha irmã mais nova, isso nunca foi possível, simplesmente porque a minha madrasta não deixava de jeito nenhum. Ela dizia que era muito feio uma menina sair sozinha com o pai, imagine-se!

Voltando às heranças, se a mim e à minha irmã em nada incomodou o facto do nosso pai ter deixado tudo para a nossa outra irmã, a mais nova, já os primos do lado da mãe não foram nisso e quando a tia morreu impuseram-se, levando o caso a tribunal para a justiça fazer o seu trabalho.

Não. Nós jamais o faríamos. Porque somos parvas e somos isto e aquilo. Não importa. Nós apenas respeitámos o desejo do meu pai. Isso estava acima de qualquer coisa. Pouco antes de morrer, ele falou-me desse assunto, e da maneira mais simples possível, explicou que tinha feito o que fez porque a minha madrasta lhe chateava a cabeça com esse assunto, mas não só. Ele disse que nós, a minha irmã e eu, tínhamos capacidade total para enfrentar a vida, o mesmo não acontecendo com a outra filha, cuja mãe não soube preparar para a vida.

Escutei-o sempre em silêncio. Deixei-o à vontade para dizer o que precisava de ser dito. Jamais me passou pela cabeça contrariá-lo ou apontar-lhe o dedo, dizendo que não era justo, ou que não queria saber de nós, etc., etc., etc., pois o caminho não era esse. Se fosse com outras pessoas, talvez. Mas era o meu pai e eu. E o assunto ali não eram as heranças, ou o raio que o partissem… o assunto ali era outro: o amor. E disso ele nem precisava de falar.

Eu sempre fui a filha mais ligada a ele. Eu conhecia como ninguém, além da minha mãe, o pai que tinha, o ser humano especial que ele era. Tanto, que nem consigo ter palavras para o expressar. É impossível. Ele era uma pessoa única, um ser humano numa dimensão muito para além desta que conhecemos, onde tudo o que importa é o dinheiro. E até hoje podem continuar a achar-me uma idiota, uma tola, uma ingénua… o que quiserem, pois nada disso me afecta. Quando falei com a minha irmã e lhe contei esta minha conversa com ele e a sua intenção quanto à herança, fui bem clara na minha decisão de respeitar cem por cento a decisão dele e ponto final, no que ela concordou plenamente. Portanto, o assunto estava resolvido por natureza, o que foi muito bom.

Eu sabia a distância a que a minha meia irmã estava de nós em relação ao amor do meu pai pelas filhas do primeiro casamento, com a mulher que ele amou para a vida toda, sem a menor chance de ser destruído. Ele voltou a casar anos mais tarde, mas nada era o que era. Não havia a menor comparação possível. A minha mãe morreu quando eu tinha dez anos. Meu pai, militar de carreira, para sobreviver ao duro golpe que a vida lhe tinha dado, foi para Angola, a guerra de Angola… para a frente de batalha, onde passou grande parte da sua vida, nos anos que se seguiram. Nós ficámos com os avós, sendo que a minha irmã foi para um colégio interno. Não havia telemóveis, nem meio de nos comunicarmos como agora. A única maneira de saber dele era por meio dos aerogramas, um por semana, num dia certo, em que a minha ansiedade era mais que muita para a chegada do correio. Quando o aerograma caía na caixa eu tirava-o como se fosse uma pedra preciosa. E quando pegava nele e o lia, independentemente do que estava escrito, eu só sabia de uma coisa. Só uma coisa era certa. Que uma semana antes, o tempo que demorava para chegar, ele estava vivo. No momento em que o recebia, quem podia garantir? Tinha que esperar os próximos oito dias, para ficar a saber. Não era fácil. Tudo podia acontecer, a qualquer hora, a qualquer momento.

Ele sempre se preocupou conosco e com as nossas necessidades. Casei-me tive um filho, divorciei-me e fui vivendo como pude. A minha irmã casou muito nova, foi para o Brasil, onde os filhos nasceram e vinte anos depois regressou, também divorciada. Quase todos os dias falávamos com ele e não raro o mês ele fazia um depósito na minha conta, mesmo quando eu dizia que não precisava. Era uma importância pouca, mas significativa para mim. O mesmo fazia com a minha irmã. 

Nos últimos anos da sua vida orientei-o como pude e como devia, em relação aos médicos e à sua saúde. Acompanhava-o e estava a par de tudo. Não podia esperar isso de mais ninguém. Mas fiz tudo o que foi preciso e possível e com todo o amor que tinha por ele. Estivemos juntos até ao fim e enfrentei todos os seus receios e necessidades. Desabafou em paz tudo o que precisava de dizer. O amor que vinha à superfície era de uma imensa profundidade. Indescritível. Alguma vez lhe falei das casas ou de questões de dinheiro, herança!? Jamais. Havia uma coisa em jogo, muito, mas muito mais importante do que o dinheiro. Fui uma filha muito amada e isso estava acima de qualquer outra coisa. O amor que nos unia era tão grande, que não havia dinheiro que se sobrepusesse. E isso era realmente a única coisa que me importava de verdade. Infelizmente, a minha meia irmã ficou com o que foi possível: as casas. Sim. 


Ser mãe - 79

 

Juliana tinha duas filhas que ela amava muito. A mais velha tinha quinze anos quando a mais pequena nasceu, de um segundo casamento. Juliana era Cabo Verdiana e veio para Portugal à procura de uma vida melhor, como tantos outros o fazem, mas por esta altura ainda só tinha uma filha, que ficara em Cabo Verde com a tia, irmã de Juliana, que também tinha uma menina da mesma idade.

Sempre que lhe perguntávamos pela filha, dizia que estava bem, com a tia, em Cabo Verde. Falava muito com ela pelo telemóvel e de vez em quando mandava-lhe presentes. Frequentemente expressava a vontade de ter uma vida melhor para ela e para a filha. Arranjava trabalho, mas todos os que arranjava não duravam muito, porque chegava sempre uma altura em que dizia estar farta. E o que vinha a seguir nunca era melhor, do ponto de vista remuneratório, mas em contrapartida, segundo ela, mais suave, menos cansativo.

Conseguiu arrendar um apartamento no prédio onde vivo, por uma quantia irrisória comparada com os preços praticados no mercado e ainda alugava um quarto para ser ainda mais fácil. Como era uma rapariga muito agradável, simpática e afável, eu e outras vizinhas minhas amigas, reunimos forças para lhe arranjarmos mobílias e outras coisas para a casa, porque não tinha absolutamente nada, o que lhe deu muito jeito, tendo agradecido.

Convivia muito connosco, pelo que dizia sempre, que tinha sido muito bem recebida no prédio, porque estávamos sempre a ajudá-la em tudo o que podíamos. De facto, muito nos mobilizámos, facilitando-lhe todo o tipo de coisas, como podíamos.

O tempo foi passando e a certa altura Juliana conheceu um rapaz da terra dela, que também tinha vindo para cá à procura de uma vida melhor. Os dois começaram a namorar e ele veio viver para casa dela. Também tinha uma filha da idade da filha de Juliana, que também não estava com ele. Era a mesma situação de Juliana.

As amigas vizinhas falavam com ela e diziam-lhe abertamente que tivesse cuidado para não engravidar, uma vez que já tinha uma filha crescida e longe dela e agora que estava num novo relacionamento, deveria pensar em trazer a filha para junto dela. Vezes sem conta lhe falámos no assunto, que deveria ter o cuidado de não engravidar, porque não era bom ter filhos à toa. Ela ouvia e ria muito, quando tocávamos no assunto. Nós apenas queríamos o bem dela, porque ela própria dizia que tinha vindo à procura duma vida melhor. Portanto, uma coisa de cada vez.

O facto é que um dia em que estávamos todas juntas, uma das minhas vizinhas e amiga, me chamou a atenção para a barriga dela. Fiquei sem perceber. Se ela estivesse grávida, com toda a certeza eu seria a primeira a saber, porque eu era a mais chegada a ela e ela confiava muito em mim para tudo. Isto era o que ela dava a entender e me fazia acreditar.

Continuando com a conversa da minha amiga, não percebi muito bem o que ela estava insinuando, porque jamais me passou pela cabeça que ela estaria grávida. Grávida!? Impossível! Quando lhe falávamos nisso ela ria, mas concordava connosco que havia muita coisa a fazer, se realmente estava empenhada em ter uma vida diferente para melhor. Contudo, a minha amiga e vizinha foi perentória, afirmando que ela só podia estar grávida, pela barriga que tinha. Continuei sem acreditar, dizendo-lhe que não tinha reparado e talvez estivesse um pouco mais gordinha. Ela riu, afirmando categoricamente que ela estava grávida, sim.

Perguntei-lhe então se ela lhe tinha dito alguma coisa e ela logo respondeu um não prolongado, o que significava que nem pensar. De facto, ninguém do grupo sabia, o que significava que estava tudo no segredo dos deuses. Mas porque ela faria isso? Estar grávida e não nos dizer logo, para guardar segredo? Seria porque lhe estávamos sempre a dizer para ter cuidado com isso, que não devia, etc.? Mas a vida era dela e só ela tinha o direito de decidir o que quisesse. E nós, como ela mesma dizia, éramos uma família para ela. Então porquê esta atitude?

Naquele dia não tive oportunidade de lhe falar no assunto e porque fiquei pensativa. Porém, no dia seguinte, assim que a apanhei a jeito, fui directa ao ponto e fiz-lhe a pergunta directamente e sem rodeios. Ainda achava que ela ia dizer que não, que disparate, mas, para meu grande espanto, ela fez aquele arzinho de sonsa, de quem quer passar despercebida, mas como não tinha como esconder, sorrindo de mansinho, confirmou que sim, que estava grávida.

Fiquei passada. Como podia ela ter entrado por aquele caminho, se a outra filha ainda nem estava com ela. Para mim ela estava a pô-la completamente de parte. Fora da vida dela. Com esta gravidez, ela estava a repor na vida dela, a filha que estava distante. Mas porquê? O certo era trazê-la para junto dela e cuidar dela como uma mãe deve fazer. Agora com uma outra criança nova na vida dela, a outra corria o risco de ficar completamente de parte. Tudo bem, ela tinha o direito de decidir o que entendesse. E mais uma vez lá entrámos nós a ajudá-la em tudo o que foi possível, como sempre e a que ela já estava mais do que habituada.

A barriga ia crescendo e o dia certo chegou. Uma noite, por volta da meia noite, já eu tinha começado a dormir, o meu telemóvel tocou. Fiquei assustada, vi que era ela, mas atendi. Era para me dizer que estava com dores de parto e que tinha que ir imediatamente para o hospital. Eu estava meia ensonada e tinha sido apanhada completamente desprevenida. Ainda assim, percebi que ela estava a contar comigo para isso. Mas porquê? Ela tinha o homem ali do lado dela! Estava na hora de ir para o hospital? Pois, é claro, aquele dia havia de chegar, mas não foi comigo que ela fez o filho! Nem sequer tinha seguido os nossos conselhos! Contra tudo e todos, ela fez exactamente o que quis! Arranjou um homem e fez um filho. E eu é que tinha que ir levá-la para o hospital? Ele que fosse com ela, que não era senão o dever dele! Ah, porque ele tinha que se levantar cedo para ir trabalhar. Eu nem queria acreditar. E eu, não?! Ah, porque não tinham carro! E toda a gente tem carro? Então porque não pensaram em tudo isso? É só fazer filhos?!

Não. Sem pena nenhuma, disse-lhe que chamasse uma ambulância e fosse para o hospital. Uns pensam em tudo, até de mais. Outros não pensam em nada. E quando estão habituados a terem a vida facilitada, abusam, simplesmente. Eu gostava muito dela, mas tudo tem limites. E lá foram para o hospital resolver o problema.

Enfim, a menina nasceu, veio para casa, passou o tempo da licença de parto e Juliana não foi trabalhar. Passava a vida na sala, a ver televisão, com a filha do lado. Os meses continuaram a passar e nada de Juliana falar sequer em trabalho. Entre nós, perguntávamo-nos o que estaria a acontecer, mas ninguém sabia responder, porque ela não abria a boca acerca da sua vida. Fazia-se desentendida. Passou um ano e não me contive. Perguntei-lhe de que estava à espera para retomar a sua vida habitual. Muito a custo, respondeu que não podia ir trabalhar porque tinha que cuidar da filha. O pai que trabalhasse. Não sem espanto, logo percebi que aquela criança não tinha sido nenhum descuido, mas sim premeditada, pois era uma desculpa para ficar em casa a ser sustentada pelo pai da criança. E as outras mulheres, como fazem? Achas que ficam em casa, perguntei. Achas que alguém se pode dar ao luxo de ficar na situação em que te estás a colocar e deixar a responsabilidade de sustentar tudo ao pai da tua filha, que tem um emprego em que ganha uma miséria? Ouviu tudo o que lhe disse, mas encolheu os ombros, não querendo assumir responsabilidades e mais, mostrando que estava na posição que queria de não se ralar com nada.

Falámos umas com as outras e todas nos questionámos com o comportamento irresponsável que ela estava a ter. Era a vida dela, mas não era assim que ia conseguir ter uma vida melhor, nem pensar. Além de que o relacionamento dela com o pai da filha não estava a correr muito bem, conforme era de se esperar.

A pequenina começou a crescer, Juliana começou a ir trabalhar, mas a vida não estava a correr como ela queria, porque andava sempre muito cansada e as tarefas domésticas ficavam todas para trás. Aquela casa era uma verdadeira babilónia. Ele começou a ver o comportamento dela e também foi pelo mesmo caminho. Chegava a casa a meio de tarde, ia para o quarto e deitava-se. As coisas estavam feias de verdade.

Foi então que Juliana se lembrou que tinha uma filha já crescida em Cabo Verde e de repente deu-lhe umas saudades muito, muito grandes. Tão grandes que mandou buscar a filha para ficar com ela. Finalmente! Mas o que este finalmente tinha era uma outra intenção. Pois é. Susana veio de Cabo Verde, uma garota lindíssima, uma querida, só que a sua vinda tinha outra intenção além da mãe matar as saudades da filha, como todas acreditávamos que sim. É que Susana passou a ser a cuidadora da irmã e não só. A responsável pela mesma. Era ela que a levava e trazia da escola. Era ela que tomava conta dela. Era ela que arrumava a casa, limpava e cozinhava, para quando a mãe chegasse a casa se poder sentar no sofá de braços cruzados a dormir ou a ver televisão. Toda a responsabilidade foi passada para a filha mais velha. Até o pai da pequenina fazia o mesmo. Aquilo era inadmissível!

Contudo, quem ouvisse Juliana falar, a conversa era sempre a mesma, que queria muito dar uma vida diferente às filhas. Perguntávamo-nos nós, como é que isso iria acontecer? Nunca, jamais. Não sei se ela achava que a vida boa lhe ia cair do céu! Para termos o que queremos temos que investir e trabalhar nisso, caso contrário as coisas não têm como se realizar. De boas intenções está o mundo cheio…

Quantas vezes a alertei para o facto de incutir responsabilidades na filha mais velha, que não podia, não devia!? Quantas vezes lhe falei na necessidade da garota também ter a sua vida própria, de poder sair com as amiguinhas e não ser sacrificada com os trabalhos que a mãe não queria fazer? Ah, porque já chego a casa muito cansada… então porque é que fazem filhos?!...

Certa vez, estávamos a conversar no quarto dela, sentadas à beira da cama e comecei a pensar… a pensar… e disse-lhe que, no lugar dela, trocaria os quartos, ou seja, passava o quarto dela para o das meninas e as meninas para o quarto dela. Era só uma sugestão, conforme eu faria no caso dela, com toda a certeza. O quarto dela era maior, tinha uma janela e uma bela varanda, onde ela poderia pôr uma mesinha com cadeiras e uma espreguiçadeira e as coleguinhas seriam mais bem recebidas, já era uma adolescente e tinha necessidade de conviver, por isso aquele quarto adaptava-se melhor às filhas, até para a pequenina, que teria uma área para as suas brincadeiras. Já ela e o pai da pequenina, podiam perfeitamente ficar no outro quarto, porque não precisavam da varanda e um espaço ligeiramente mais pequeno era mais do que suficiente para eles.

Para mim era mais do que óbvio. Uma mãe quer sempre o melhor para os seus filhos!? Eu também sou mãe e avó e como não o melhor para as minhas crianças?! Aliás, para todas as crianças do mundo inteiro?! Contudo, para minha grande surpresa, Juliana, sempre com aquele sorriso esvanecido, meio amarelado, e que lhe era muito característico, como quem não está muito interessada na conversa, olhou para mim e deixando-me completamente sem chão, respondeu, sem qualquer hesitação: “Não. Eu gosto muito do meu quarto. Isso não!”

sexta-feira, 5 de julho de 2024

Lilly - 78

 

Faz agora um ano eu estava de regresso de uma longa viagem ao Bangladesh, onde estive dezoito dias. Uma viagem longa, com dois voos e muitas esperas nos aeroportos. Mas fui e vim e tudo correu bem. Tive uns probleminhas relacionados com a alimentação, por causa da sobrecarga de especiarias que eles usam e da insistência em se comer de tudo o que fazem e oferecem, tive até que ir ao Hospital onde fiquei internada uma noite com soro, mas a coisa foi pacífica.

Esta viagem fez-me voltar atrás no tempo, relembrando-me situações idênticas ou muito semelhantes. Antes de ir, fui bastante avisada daquilo que achava que nunca aconteceria, porque, na minha ótica, não tinha a menor razão de ser. Mas estava enganada. Eles sim, estavam certos. Diziam que viria gente, muita gente para me ver. E eu pensava, porquê(?). Achava que não havia nenhuma razão para isso. Contudo, reafirmo, eles estavam certos. Era a família, os amigos, os vizinhos… uma coisa inexplicável.

Ao contrário da Índia, o Bangladesh não tem turistas. A Índia vive infestada de turistas por todo o lado. O Bangladesh não. Deve haver, como por todo o mundo. Mas não é comum. E nos “sítios”, isto é, nos lugarejos fora das cidades, ainda muito menos. Aí, as pessoas nascem e morrem sem nunca terem visto um desigual a si mesmos. Aparecer num sítio desses é o mesmo que aparecer para nós um extraterrestre. Foi isso que me aconteceu. As pessoas acorriam em massa para ver uma mulher de pele branca, que nunca tinham visto ao vivo. Talvez na televisão, mas jamais na sua frente. Senti-me uma verdadeira estranha, uma intrusa, uma peça isolada de tudo o que me rodeava.

Não foi fácil lidar com isto. Sobretudo as mulheres, elas queriam tocar em mim, olhando-me de cima a baixo, na cor dos olhos, do cabelo, no tom de pele por todo o corpo… diziam que eu era muito bonita e eu não entendia porquê. Referiam que as minhas feições eram muito finas e por isso bonitas. Mas eu não conseguia entender. Por mim, eu achava-os bem interessantes, a começar pelo tom de pele bem morena. Eles, pelo menos, não precisavam de se castigar à torreira do sol para se bronzearem, porque já nasceram bronzeados. Não precisavam de gastar dinheiro com bronzeamentos artificiais, como um pouco por todo o mundo se faz hoje em dia. Eles não precisavam de injetar botox, ou seja lá o que for, para terem os lábios mais volumosos, porque os têm de seu natural. E tudo está ao contrário. Todos querem ser o que não são.

Em consequência deste padrão, apesar dos meus setenta anos, todos queriam estar comigo e levar-me aqui, levar-me ali, enfim… o caso é que foi muito interessante. Até no hospital, não sei quantas pessoas, homens e mulheres, consegui reunir à minha volta. Eles vinham saber se precisava de alguma coisa, se estava tudo bem e queriam saber coisas a meu respeito, bajulando-me sem razão aparente e tratando-me como uma verdadeira pedra preciosa, sempre fazendo questão de evidenciar a minha especial beleza, o que para mim era inconcebível, deixando-me sem reacção.

Quando saía do vilarejo e a multidão começava a aumentar - porque aquilo é uma imensa população, gente e gente que nunca mais acaba – e como o trânsito é muito, mas muito lento, por causa dos tucs, dos rickshaws, mas também por causa das estradas alagadas pelas monções, pela quantidade de carros, etc… o facto é que é tudo muito lento, muito devagar, muito parado e as pessoas olhavam para mim pensando, talvez, que tinham visto errado, por isso voltavam a olhar fixamente. Para os conseguir desviar e tranquilizar eu acenava com a cabeça em pose de cumprimento. Se fossem homens com os kufis na cabeça, como os mais velhos usam, além de cumprimentar com a cabeça e o olhar, fazia a postura das mãos unidas ao peito. O facto é que eles apreciavam esse gesto, reagindo muito positivamente, porque não só devolviam, como o seu ar se tornava muito mais leve, sinal de que me aceitavam e isso era muito bom.

Às mulheres eu cumprimentava com um sorriso ou também com as mãos unidas em frente do peito, conforme fosse. As crianças eu acenava-lhes com a mão, sorrindo, e elas ficavam muito felizes. Quando voltava ao sítio, toda a gente começava a sair de casa para virem na minha direção, rodeando-me, envaidecendo-me e admirando-me simplesmente. Era uma coisa incompreensível e inimaginável!

E nunca ninguém me perturbou pelo facto de eu não me vestir de acordo com os princípios deles. Eu continuava a usar calças curtas e blusas sem manga, o que para eles é impensável. O facto é que sempre me respeitaram como sou, da mesma forma que os respeito a eles e a quem quer que seja, por que motivo for. Decididamente, sou uma pessoa crente, mas sem religião. Todavia, respeito incondicionalmente cada um, com quaisquer que sejam as suas ideias, convicções, ideologias, etc. Cada um tem o direito de ser como quer ser. Nesta filosofia de vida sinto-me no direito de estar incluída.

No entanto, se fosse muito importante, eu seria capaz, enquanto lá estive, de usar as roupas delas sem problema nenhum, caso fosse muito, muito importante. Eu o faria sem me sentir obrigada a isso. Faria porque queria. Por uma questão de respeito. Só isso. Felizmente que essa questão não se pôs e assim eu me senti completamente em liberdade, tendo sido sempre eu, fiel a mim mesma, fazendo tudo o que me apeteceu e achei correto.

Posso dizer com toda a verdade que a minha empatia com eles foi excecional, não tendo havido nunca nada de estranho, nem o menor desconforto perante as diferenças, que são imensas, garantidamente. A minha passagem pelo Bangladesh foi uma coisa memorável que, enquanto viver, jamais esquecerei. Porque foi lindo, revestindo-se de uma beleza toda especial.

Isto fez-me andar para trás no tempo, recuando uns trinta e tal anos atrás, quando estive de férias na Grécia. Não tem comparação, porque a Grécia tem muito turismo, turismo que nunca mais acaba. Mas a situação tem algo de semelhante, muito embora aí, houvesse uma razão ou motivo especial. Eu era a mulher o Riaz, um paquistanês com quem tive um relacionamento de sete anos. Ele foi para lá trabalhar e como as saudades eram muitas, fui lá de férias duas semanas.

A Grécia tem muitos turistas, de todas as nacionalidades. O Verão é quente, com uma água de mar maravilhosa, acessível na questão de preços, por isso muita gente aproveita. No meu caso, eu fui lá por um motivo: estar com o Riaz. Mas também conhecer a Grécia, claro, no que não me arrependi. E fui mais que bem recebida. Sentia-me uma rainha. Puseram à minha disposição uma bela vivenda, com um jardim maravilhoso, à beira da estrada e do outro lado o mar, pronto para me receber a qualquer hora, especialmente quando o calor apertava.

Na Grécia tive que ir com o Riaz a muitas casas de pessoas com quem ele trabalhava e que o conheciam bem, porque queriam conhecer a mulher Portugália (portuguesa) do Riaz. Era uma coisa do outro mundo. Todos os dias a senhora da casa ia lá para regar o jardim e ver se eu precisava de alguma coisa. Os vizinhos iam levar frutas, legumes, tudo muito bom, muito fresco. Havia um hotel ali mesmo ao lado e estavam sempre a convidar-me para ir lá. Aonde quer que eu fosse, toda a gente me olhava com olhos de ver, de admirar. Perguntavam quantos vestidos eu tinha, etc… era muito estranho. E quando fui com o Riaz à advogada que tratava da papelada dele, ele entrou no gabinete dela e eu fiquei sentada no sofá da sala de espera, onde o ângulo de visão dava para ver a secretária dela. Espantosamente, ela desvalorizou completamente o assunto dele, para vir cá fora falar comigo. Dirigindo-se a mim, parecia que se tratava de outra pessoa que não eu, pela maneira superior e altiva com que ela me cumprimentou e me cortejou. Eu levava um vestido comprido, como todos os meus vestidos do dia a dia e um chapéu, como é muito normal em mim. Não sei se ela achou isso uma coisa especial, o facto é que estava encantada com a minha humilde presença, tendo feito uma longa conversa, onde me contava que já tinha estado em Portugal e tinha gostado muito, fazendo-me sentir uma pessoa muito importante, imagine-se!? Eu não conseguia entender.

Realmente, na Grécia, eu fui uma estrela na terra. Sentia-me uma deusa. Não tenho palavras para descrever tudo o que me aconteceu, nem todas as situações por que passei. Quando penso que até as crianças, numa noite de calor, enquanto comia um marisco dos deuses, dançaram o Zorba para mim, não consigo deixar de ficar emocionada. Foi lindo! Parecia que os deuses conspiravam para que eu me sentisse num verdadeiro paraíso.

Por outro lado, recuando ainda mais no tempo e talvez mais outros tantos anos, penso que quando nasci, em 1952, no antigo estado da Índia Portuguesa, eu era considerada uma criança especial. Segundo os meus pais faziam questão de me falar e “lembrar”, as crianças indianas rodeavam-me e adoravam-me, dizendo que eu era muito bonita, muito linda. Hoje, analisando todas estas situações, acredito que há em mim qualquer coisa como uma espécie de empatia por povos bem diferentes daquele que represento, qualquer coisa que me atrai e os atrai a eles também, qualquer coisa que nos liga e que eu entendo como uma coisa intrínseca ao meu eu mais profundo, que não sei de onde vem, mas que faz parte de mim, sem dúvida. Diria mesmo que é uma coisa espiritual, uma coisa inerente à alma humana e, portanto, impossível de decifrar.

Voltando ao Bangladesh, se fosse outra mulher branca que não eu, teria tido a mesma recepção? Talvez, mas não tanto. A questão é que, se eu os fiz despertar, por outro lado, eles fizeram com que eu me abrisse para eles a cem por cento e isso é recíproco. Só recebemos quando damos e nem todos estão receptivos a essa troca.

Na Grécia, com tantas mulheres bonitas de todas as nacionalidades, eu parecia que tinha sido escolhida de entre todas. Foi só a situação em si? Não. Eu estava aberta à receptividade, admirando todas as gentilezas que me proporcionavam, o que sem dúvida aumentou a fasquia de ambas as partes.

Na Índia, se eu tivesse sido uma criança chata e aborrecida, as crianças indianas teriam gostado de mim só por eu ser branquinha?! As crianças não são todas iguais. Há crianças comunicativas, outras nem tanto. É a alma de cada um que define a empatia com os outros, a qualidade de comunicação com o mundo, com o universo holístico.

E apesar de não ter sido registada com um nome indiano, como a minha mãe tanto queria, a vida logo se encarregou de resolver o assunto. O meu nome de batismo é Maria Luísa, porque quando o meu pai me foi registar, simplesmente se esqueceu do nome que a minha mãe queria e porque naquela altura não havia telemóveis, lembrou-se de me pôr o mesmo nome de uma sobrinha que tinha nascido recentemente e a minha mãe não teve outro remédio senão aceitar.

Mas logo ficou no esquecimento, porque as crianças me achavam tão bonita como uma flor que lhes é particularmente querida e que tem o nome de Lilly. Todas me tratavam por Lilly e todas me queriam pegar ao colo e brincar comigo, sem parar de comentar como eu era linda. Imagine-se!? Mas isso teve tanta repercussão que mudou completamente o meu nome de Maria Luisa, que rapidamente foi esquecido pelos meus pais e por toda a família, para ser única e exclusivamente até hoje: Lilly.


quarta-feira, 14 de junho de 2023

O "baptismo" de Sofia - 77

 

Sofia nasceu a 27 de Junho de 2011, o que fez com que 2011 tivesse sido um dos anos mais felizes e importantes da minha vida. E nasceu em Cambridge, porque o pai estava a trabalhar na Microsoft. É claro que isso fez com que os avós tivessem que se deslocar a Inglaterra, para verem de perto aquela miniatura de gente, pela primeira vez, o que não era pouca coisa. Era uma alegria e uma felicidade imensa. Por questões familiares, fui a última da lista e quando lá cheguei, Sofia estava com quinze dias de vida. Era mesmo uma coisinha pequenininha, tão pequenina, que eu não me lembrava mais, de como eram pequeninos os bebés quando nascem.

Quando cheguei perto dela, estava ao colinho da sua linda mommy, pois tinha acabado de mamar. Era uma grande felicidade, ver a minha pequenina pela primeira vez, ao vivo e a cores, sem ser através das câmaras. Era mesmo uma niquinha de gente. E eu pensava, meu deus, como vai esta coisinha vingar, crescer e ser gente!? Bem, gente já ela era, mesmo dentro da barriguinha da mãe, mas uma coisinha tão fofa e tão minúscula! Era uma emoção muito, muito grande.

Mas é assim que todos nascemos e vimos a este mundo!? Pequenos demais e completamente indefesos, esperando que cuidem de nós com todo o amor possível e com todos os cuidados necessários, para podermos enfrentar este mundo maléfico e medonho, onde há tanta ruindade, nomeadamente com as crianças, as nossas crianças, lindas e adoradas e às vezes tão maltratadas por esse mundo fora.

Aí, a minha tarefa começou: cuidar de tudo aos mínimos detalhes, para os pais se sentirem confortáveis e poderem ter um pouco de descanso. Porque não? Se pudermos fazer a diferença, porque não!? Apesar de já adultos e com um filho, são sempre as nossas crianças. Assim, a minha rotina estava traçada sendo que, de manhã à noite, havia sempre o que fazer. O pai ia para o trabalho e a mãe, que tinha ido de propósito para Inglaterra, para que a sua menina nascesse com o pai presente, ficava em casa cuidando dela.

Todos os dias eu fazia uma pequena limpeza à casa, interior e exterior, a fim de a manter sempre limpa. Todos os dias eu cozinhava, cuidava da roupa e saíamos para ir às compras. Compras no supermercado ou compras para a pequenina, com alguma coisa que sempre faltava e nos fazia ir, entre outras lojas, à Mothercare, onde havia de tudo para miniaturas de gente.

O bairro onde eles viviam era muito agradável. Os prédios eram todos individuais, em vez de colados uns nos outros. Todo o espaço em volta era cuidadosamente ajardinado e fiel ao estilo rústico, tão característico dos ingleses e de que eu tanto gosto. A varanda era enorme, onde havia uma mesa com cadeiras e ainda espreguiçadeiras para relaxar. Todos os dias de manhã passava um camião da Câmara, com grandes mangueiras, para limpar as varandas. Depois, era esperar que secassem e podermos fazer uso daquele tão aprazível espaço.

Estar naqueles apartamentos era como estar integrado na natureza, com todas as comodidades mínimas à nossa disposição. Tudo o que fazíamos era rodeado de ar puro, luz e beleza natural. Não havia cortinados. Todos os moradores tinham sempre tudo aberto, inclusive nos quartos. Também não havia “mirones”, é claro. Cada um preocupava-se consigo e nada mais. Se as pessoas se deitavam para dormir ou descansar, era problema deles. Se estavam na cozinha, era lá com eles. Fosse o que fosse que estivessem a fazer, não incomodavam nem eram incomodados, com toda a certeza, o que era fantástico e que eu tanto admirava, porque é o meu jeito de viver.

Sofia passava grande parte do tempo, quieta, dormindo e acordando entre as mamadas, embalada no seu baloiço da Mothercare, sem dar trabalho. Mas ao fim da tarde, a pequenina chorava. A essa hora já o pai estava em casa e os dois punham-na no carrinho e levavam a sua bebé para passear no jardim. Ela acalmava um pouco, mas logo recomeçava o choro muito intenso, muito incomodada e muito irritada. Ninguém sabia o que fazer para a calar, porque parecia que não queria nada, mas o facto é que fazia a sua birra.

Ao terceiro dia da minha estadia, pensei para comigo mesma que aquilo não podia ser e tinha que haver uma maneira de ultrapassar aquela cena da criança chorar tanto, sempre à mesma hora. E então, enquanto a mãe trocava a sua fraldinha, percebi que ainda não lhe davam banho. Lavavam-na apenas como se fosse uma recém-nascida. Mas porquê, se estava tudo bem com ela, se o umbigo estava óptimo, não havendo motivo para descartar uma boa banhoca!? Falei com a minha nora e disse-lhe que estava na hora da menina tomar banho de banheira, o que lhe faria muito bem e na certa a acalmaria, porque todos os bebés adoram a água. Ela ficou a olhar para mim, pensando e sem saber muito bem o que dizer.

Pensei… é isso, está mais do que na hora. E na presença da mãe e do pai, comecei a comandar as coisas para lhe dar banho, o que ao mesmo tempo serviria de aprendizagem para os dois. E foi bem interessante ver a ansiedade de ambos, querendo ver como segurar a menina, para não se afundar na água, como tê-la toda por inteiro e completamente segura apenas numa mão, para ter a outra livre e passar o sabonete, etc…

Por esta altura eu tinha os dois, pai e mãe, um de cada lado. A pequena banheira começou a encher e expliquei-lhes como saber se a temperatura da água estaria bem. No dia seguinte, compraríamos um medidor da temperatura da água, para ser mais fácil. Os dois estavam excitados e ao mesmo tempo maravilhados, pois era uma novidade que entrava na rotina de ambos: a hora do banho da sua bebé. A banheira ficou com o nível de água suficiente e a uma temperatura considerada ideal. Sofia continuava a chorar ou a berrar, enquanto a roupinha ia sendo tirada, e já o pai dizia que, no dia seguinte, seria ele a dar-lhe banho, enquanto eu esboçava um sorriso de felicidade.

Finalmente, toda nuazinha, segurei nela apoiada no meu braço direito, com o esquerdo a ajudar, fazendo-a entrar aos poucos, aos pouquinhos, muito lentamente. Assim que sentiu os pezinhos dentro da água quentinha, o choro dela, que por esta altura era ainda mais forte, talvez pelo facto de estar despida, embora a casa tivesse aquecimento, o seu corpinho deu sinal de algo diferente. Diferente, mas agradável. Continuei a mergulhá-la devagarinho, com os dois muito ansiosos, um de cada lado, e Sofia começou a acalmar. À medida que entrava na água e reconhecia o conforto de um banho quente, o seu ar de satisfação era notório. O seu rosto adquiria um sorriso esvaído, mas muito sentido, como quem diz: “mas o que é que me está a acontecer?” Na verdade, era a primeira vez que entrava na água para um banhinho. E aquela sensação não lhe passou despercebida, claro está. A sua sensibilidade estava a registar todo o bem-estar que aquilo produzia no seu minúsculo ser. Era como se nos dissesse: “é bom, é muito bom, podem continuar…”

Uma coisa indescritível. Os pais, não menos deliciados do que ela. E eu sentia a leveza de toda aquela situação, agradecendo à vida por me ter levado até lá, permitindo-me ser a primeira a “baptizar” a minha pequena Sofia que, agora, já completamente mergulhada na água, apenas com a cabecinha de fora, se deliciava, com toda a água à sua volta. O choro já tinha desaparecido. O seu rostinho de fúria e desagrado, dava agora lugar a um sorrisinho tão agradável e gostoso, que dava gosto ver. Sofia estava deliciada com a sua banhoca e respirava fundo, descontraída e relaxada. Sentia-se a felicidade dela em todo o seu ser, por todo o lado. Estávamos impregnados daquela energia que nos iluminava a todos, trazendo-nos imensa paz, amor e alegria. Sofia saboreava com prazer e deliciada, a sua nova experiência nesta vida: o seu primeiro banho.


sábado, 11 de março de 2023

O telemóvel - 76

 

A Lúcia e eu decidimos ir almoçar fora. Não tinha nada a ver com o que quer que fosse que o refeitório da RTP tivesse para aquele dia. Apenas, uma vez por outra, apetecia-nos espairecer na hora do almoço.

Decorriam as olimpíadas e todas as televisões dentro da empresa, num canal ou noutro, não falavam em outra coisa. E lá fomos nós em busca de um lugar diferente.

Saímos das instalações da Avenida 5 de Outubro e fomos até ao Chimarrão que nessa altura havia no Campo Pequeno, mesmo ao lado da Praça de Touros. Era um espaço gigante, onde acorria sempre muita gente que trabalhava ali naquelas redondezas e provavelmente outras pessoas vindas de outros lados. Para nós, estava óptimo. Eram meia dúzia de passos e lá estávamos nós.

Como era um espaço bem amplo, normalmente havia sempre lugar. E além de ser chimarrão, havia alternativas à ementa. Portanto, estava bem para qualquer um. A Lúcia sempre foi uma óptima companhia, porque estava sempre bem disposta. Tudo para ela era motivo de gargalhada e gozação. A descontração morava dentro dela, o que eu invejava grandemente, no bom sentido. Para ela nunca havia drama. Drama não ligava com a personalidade dela, de jeito nenhum. Nunca conheci ninguém assim.

Chegadas ao Chimarrão, procurámos uma mesa vaga e sentámo-nos. Na parede de fundo, lá estava um écran gigantesco e, como não podia deixar de ser, a transmitir os Jogos Olímpicos. Mas enfim, dado que estávamos fora do nosso local habitual, não nos afectava muito.

Logo de seguida chegaram dois indivíduos, que se sentaram numa mesa bem pertinho, logo a seguir à nossa. Lembro-me de que os dois chegaram, tiraram os respectivos casacos, ou sobretudos, puxaram das cadeiras e tomaram lugar à mesa. E é então que, sem querer, ouço um deles dizendo ao outro que o tinha chamado para irem ali almoçar, porque os dois tinham um assunto de trabalho para conversar e ele achava que seria mais proveitoso fora do local de trabalho, a fim de não serem interrompidos nem importunados com outros assuntos, etc, etc, etc, ao que o outro logo concordou, dizendo que estava plenamente de acordo e que tinha sido uma excelente ideia.

Ouvindo esta conversa, ainda que sem querer, pensei para comigo mesmo, que iam tratar de trabalho, o que não era o nosso caso. A Lúcia e eu íamos simplesmente espairecer. Talvez dizer disparates e falar de tudo menos de trabalho. Para isso não teríamos ido ali. Eu não queria de todo estar a ouvir a conversa dos dois, nem de ninguém. Mas eles estavam tão perto de nós, que era impossível não ouvir. Mesmo estando nós duas a falar uma com a outra, mesmo assim, ouvia-se, mesmo não querendo.

Dito isto, e enquanto tinham a ementa já nas mãos, eis que toca o telemóvel de um deles, que logo atende, dando início à conversação. Chegou o empregado, que o fez interromper a conversa ao telefone por uns instantes, mas logo recomeçou. O empregado retirou-se com ele ainda ao telemóvel e antes mesmo que a conversa terminasse, tocou o telemóvel do outro, que logo atendeu. Entretanto, o primeiro terminou, ficando em silêncio, pois o segundo estava agora a falar ao telemóvel.

A Lúcia e eu já tínhamos sido servidas e limitávamo-nos a saborear o nosso rico almoço, bem diferente do refeitório. E enquanto comíamos íamos conversando e parando, conversando e parando. Dizendo as nossas larachas e rindo das parvoeiras que íamos relembrando.

Entretanto os nossos amigos, parceiros de negócio, também já tinham iniciado o seu almoço. A diferença entre eles e nós, é que enquanto nós comíamos e conversávamos uma com a outra, eles comiam e falavam ao telemóvel. Acabava um, começava o outro. E às tantas eram os dois ao mesmo tempo. Que gente tão solicitada, pensava eu. Nem o almoço lhes dava o merecido prazer, porque ainda por cima as conversas eram longas. Longas a falar, longas a ouvir do lado de lá. E sempre que um começava a falar com o outro, por ausência de telefonemas, era certo que a conversa não ia para além de duas ou três palavras, pois eram logo interrompidos pelos telemóveis.

E nós na boa, descontraídas, carregando as baterias para mais uma tarde de trabalho e de olimpíadas, também, mas depois de uma boa e saborosa refeição.

Curiosamente o nosso almoço terminou mais ou menos ao mesmo tempo que o deles, pois quando chamámos o empregado para pagar, eles aproveitaram e fizeram o mesmo. E tal como nós, pediram a conta, pagaram, levantaram-se, voltaram a enfiar os casacos e guardaram os telemóveis nos respectivos bolsos.

Os dois tinham ido para uma conversa especial, segundo palavras deles, com uma certa importância. Tão importante que convinha ser fora do local de trabalho. Para quê? Para não serem importunados por nada nem ninguém.

Mas… !?


sábado, 19 de novembro de 2022

O vídeo - 75

 

As instalações estavam literalmente a meio gás, porque o número de trabalhadores, era visivelmente reduzido. Notava-se bem a ausência de movimento e a falta de barulho e, portanto, o silêncio era maior. Também não havia os habituais grupinhos do cafezinho nem do cigarrinho. Contrariamente ao que era habitual, reinava uma grande calmaria. Um estranho, talvez não desse por nada. Mas para quem lá estava há anos sem conta, era impossível não perceber o défice de pessoal e de tudo o mais.

Claro que havia uma razão. E a razão era um evento qualquer, que estava a decorrer não sei onde, porque já lá vão uns vinte anos e não tenho a menor ideia do que quer que era. Eram tantos os eventos, tantos os acontecimentos e outras coisas mais, que não tem como me lembrar. Impossível.

Nessa altura, eu era secretária da Direcção Técnica. Toda a estrutura estava dependente de mim, no que se referia a secretariado. Mesmo a parte administrativa, grande parte, era centralizada na minha pessoa. Eu encaminhava o que tinha que encaminhar, para onde tinha que seguir, e coisas mais específicas eram mesmo só comigo. Havia toda uma hierarquia que nunca mais acabava. Director, subdirectores, chefes de repartição, chefes de secção, responsáveis, etc…

Posso dizer, com toda a verdade, que a minha experiência naquela casa era mais que muita. Já tinha passado por tanta coisa e trabalhado com tanta gente! E, às vezes, era preciso ter muita paciência, mas muita mesmo. E mesmo com muita paciência, às vezes era difícil. Um, quer de uma maneira, outro, quer de outra; um quer fazer, outro não… o fim da picada. Depois, ainda havia os que eram “responsáveis” só de título e para ganharem dinheiro, mas responsabilidade nem sabiam o que isso era. E isso fazia com que sobrasse para quem não devia ou para quem não tinha nada que ver com o assunto. Era uma casa de loucos.

Num destes dias em que estava a decorrer esse tal evento, que deslocou meio mundo para lá, há uma colega que me liga, porque o vídeo do senhor doutor tal, com quem ela trabalhava, ou secretariava, não estava a funcionar. Segundo ela, ainda no dia anterior tinha estado a trabalhar, mas agora não dava sinal de vida. E como era urgente, queria uma pessoa para resolver o problema “já”.

Maravilha! Vinha mesmo a calhar. Sem pessoal, onde é que eu ia inventar alguém para lá ir? É que, até os próprios chefes, estavam para fora. Aquele assunto era para a manutenção. Mas não havia ninguém, eu sabia. Nem valia a pena passar a bola para ninguém, porque a resposta eu sabia qual era. E não precisava. Era um assunto para eu resolver. Em trinta e oito anos que trabalhei naquela casa, nunca ninguém me deu ordens, nem me disse o que eu tinha que fazer. Eu sabia perfeitamente o meu lugar, as minhas responsabilidades e o que estava a meu cargo. E neste caso, nem me ia dar ao trabalho de falar com quem quer que fosse, simplesmente porque não havia pessoal para mandar lá. Todos os técnicos estavam destacados no exterior. Numa situação normal, eu ligaria para a manutenção e perguntava se havia alguém livre para ir ver este ou aquele trabalho. Não precisava sequer de pedir ao chefe. Mas neste caso, nem uma coisa, nem outra. Era o que era.

A colega que me ligou era muito decidida e quando ela queria uma coisa, essa coisa tinha que ser. Eu sabia porque, muitas vezes tive que intervir, isto é, tive que servir de mediadora, precisamente porque ela queria o que queria e pronto. Neste caso, que era directamente comigo, não tinha como lhe resolver o problema. Mesmo que eu falasse com alguém mais acima, um subdirector técnico, por exemplo, ele dir-me-ía que não havia ninguém. Tinha que esperar. Só que eu não ia chegar a esse ponto, nem me ia expor, só porque era ela. Por isso, ouvi a questão, e disse-lhe que estava toda a gente para fora, mas ia ver o que podia fazer.

Quando desliguei o telefone, ciente de que não podia resolver o problema, ainda assim, pensei que tinha que fazer alguma coisa. Não valia a pena seguir as vias normais, porque era uma perda de tempo, mas apesar de tudo tinha que actuar. Tinha que ter uma reposta. E enquanto retomava o trabalho, a minha cabeça começou à procura de uma solução, que não havia. Ela tinha dito que o vídeo ainda no dia anterior tinha estado a trabalhar e naquele dia não trabalhava. Pois, hoje estamos vivos, amanhã, podemos não estar. As coisas estragam-se. O material técnico avaria-se. É a vida.

E a minha cabeça não parava de trabalhar, para ter uma ideia do que fazer. Ainda liguei para a manutenção, mas, claro, ninguém atendia, porque não estava lá ninguém. E, se por acaso, estivesse, mesmo assim, duvido que pudesse lá ir, porque estaria ocupado com algo do exterior, sem poder perder tempo com um vídeo que não funcionava, ainda que fosse de um membro da administração.

Passaram-se algumas horas e antes que ela voltasse a ligar, para evitar chatices, decidi que eu mesma iria lá. Para quê? Isso não sabia. Talvez para ganhar tempo, ou para que ela entendesse que não havia mesmo ninguém para resolver o problema. E milagres ninguém podia fazer. Por isso levantei-me, saí da minha sala, ou do meu open space, percorri todo o corredor até ao outro extremo do edifício principal, das instalações da RTP nos Olivais, apanhei o elevador até ao segundo piso e lá fui em direcção à sala da minha colega e amiga Sílvia.

Abri a porta, espreitei e lá estava ela sentada à secretária. Quando me viu, levantou-se, veio na minha direcção e cumprimentámo-nos precisamente no meio da sala. Sílvia, em ar de queixa, repetiu o que já me tinha dito ao telefone. O vídeo ontem estava a trabalhar. Hoje não trabalha. Já tentámos várias vezes e nada. Não sei se foram as mulheres da limpeza… não trabalha. E enquanto falava, apontava para a parede onde estava a televisão, com o vídeo numa prateleira por baixo. Enquanto ela falava eu ainda continuava a pensar no que é que eu tinha ido ali fazer. Perder tempo, só isso. Mas ao olhar para a direcção que ela apontava, vejo realmente a televisão e o vídeo por baixo. Lá estava ele, direitinho, bonitinho, e sem trabalhar, de facto.

Mas, de repente, a minha sensação de alívio foi indescritível. Sem querer, eu tinha mesmo resolvido o problema. A minha ida não tinha sido em vão e mandar lá um técnico tinha simplesmente sido uma total perda de tempo. Olho para ela, que estava com uma cara pouco agradável, embora não fosse nada comigo, mas estava com um ar chateado, e pensava para comigo mesmo, porquê? Sílvia, disse-lhe eu, o vídeo não trabalha porque está desligado, amiga. A ficha não está na tomada.

Ah!?... Pois… … …


segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Férias na quinta - 74

 

“Escuta, ó Senhor das águas misturadas!

O imóvel dispersa-se, e o movente permanece”

(Basavanna)

 

Dois dias depois de chegarmos aos Açores, para mais umas férias de Verão com a família do meu marido, o Padre Domingos decidiu que íamos todos para a quinta, a fim de mudar de ares e espairecer um pouco. Como com tudo era ele que mandava, as suas ordens eram sempre para cumprir. Assim, depois de ter feito duas viagens para levar algumas coisas que era importante ter lá, à terceira fomos todos enfiados no carro, rumo à quinta, que ficava a uns vinte quilómetros de Ponta Delgada.

A quinta estava há muito tempo desabitada. Por isso, tanto no interior como no exterior, estava tudo numa lástima. A minha sogra por lá andou a matar-se a fazer algumas limpezas essenciais, mas, ainda assim, estava tudo num deus nos acuda. Acontece que eu não ia de férias, propriamente, para andar metida em limpezas e, portanto, tive que me sujeitar. O meu marido, esse, ficou para trás, claro, porque não lhe apetecia ficar na quinta, longe de tudo e do seu passatempo, o trabalho, porque apesar de estarmos nos Açores, a RTP para ele continuava, de férias ou sem férias, uma vez que não sabia fazer outra coisa na vida e porque todos os seus amigos eram os colegas de trabalho.

Já eu, queria ter direito a férias e estar longe ou fora do trabalho, onde estava o ano inteiro. Se, para ele, a vida era só trabalhar, por dever e por gosto, para mim, havia muito mais coisas do que o trabalho. Havia a casa, o filho, a família, etc. Portanto, se alguém precisava mesmo de férias, esse alguém era eu, com toda a certeza. Só que, a bem da verdade, as férias nos Açores eram sempre um massacre. Ele chegava, pousava a bagagem, que incluía o filho e eu, e pirava-se imediatamente para fora, para onde lhe apetecia, para fazer apenas e somente o que queria e lhe convinha. Era eu que tinha que ficar em casa com o filho e toda a família, sem reclamar ou refilar.

Na quinta, tudo era poeira e teias de aranha. No piso de baixo havia uma enorme cozinha e uma sala de jantar bem grande, assim como uma sala de estar que era um autêntico salão. No piso de cima eram os quartos. A casa era muito bonita e enorme, mas no estado de completo abandono em que estava, passava completamente despercebida. Era difícil esquecer toda a lixeira e bagunça para a poder apreciar devidamente. Havia um espaço enorme no exterior, totalmente desaproveitado. Ali, em tempos idos, existia uma hortinha razoável e um pomar, onde ainda havia árvores de pé. À volta da casa tinha um espaço para lazer, outrora muito bem ajardinado, onde as flores teimavam em desabrochar, no meio de toda a erva daninha.

O meu cunhado e a mulher, esses, despacharam os filhos, de imediato, para a quinta, para estarem com a avó, uma vez que o primo, o meu filho, estava lá. Mas a questão não era essa, estarem com o primo. A verdadeira razão é que eles tinham um medo e um ciúme desgraçado de que a avó se apegasse mais ao meu filho do que aos deles, por ele só ir lá de férias no Verão e no Natal. Como se isso fosse possível!? Aquelas crianças, a Catarina, com mais um ano e o André com menos um, passavam tanto tempo com a avó, porque a mãe não tinha paciência para os aturar, que era impossível a minha sogra vir a gostar mais do meu filho do que dos deles.

Com tudo isto, eu acabava sempre por ter três em vez de um, sendo que era bem mais difícil aturar os outros que o meu. É a vida. Para o meu marido, tudo isto passava ao lado. Se lhe falasse nisso ou se tivesse algum desabafo com ele, logo diria que era até muito bom, para que o Henrique tivesse convivência com os primos e tal e coisa. Não é que não tivesse razão, porém, quem aguentava com tudo em cima era eu. E tinha mesmo que ser assim, caso não fosse, a minha sogra não suportaria toda a carga que sempre tinha em cima dela. Ela aguentava coisas que eu não compreendia porquê. O facto de aceitar ir para ali já era um sinal disso. Era muito mais fácil para ela ficar em casa. Era, no mínimo, mais sossego, mais descanso. Ela sempre tinha uma barra pesada, onde quer que estivesse, mas em casa dela, pelo menos, tinha tudo organizado, sem precisar de mais esse adicional.

E pronto, lá estávamos, a aguentar as férias ou o que quer que fosse. Eu já sabia que só ia descansar quando voltasse ao continente, à minha casa e, a bem dizer, à minha rotina. Mas não tinha outro remédio. Cada um tem a vida que merece. É complicado quando uns podem fazer tudo o que querem e nunca o que não querem e outros têm sempre que fazer apenas e somente o que não querem.

Num sábado à noite, quando entrei na cozinha, onde a minha sogra passava a maior parte do tempo, porque ainda por cima a culinária dela não era propriamente simples e muito menos rápida, percebi que, em cima da gigantesca mesa de jantar, estava alguma loiça que pensei que seria para pôr na mesa. Quando lhe perguntei, respondeu que o Domingos queria comer lá fora. Se ele queria comer lá fora, queria isso dizer que todos iríamos jantar lá fora. Era uma ordem. Mais uma. Mas lá fora porquê? Aquilo iria dar um trabalho desgraçado. Claro que isso para ele não importava nada. Mas era comodista ao ponto de querer lá fora apenas para não ter de levantar o rabinho dali.

Sempre a seguir ao almoço ele batia uma sorna, fosse ou não para a igreja. Primeiro, tinha que arranjar tempo para a sua soneca. E naquele dia não foi diferente. Mas depois disso, levantou-se e foi lá para fora, sempre com o seu precioso missal, sentando-se à mesa de pedra que havia debaixo de uma árvore, que tinha uma copa enorme, e onde se ficava resguardado do sol. Sentado no banco de pedra com o missal aberto em cima da mesa, ali ficou a tarde toda, compenetradíssimo no que estava a ler.

Então, a minha sogra explicou-me que ele lhe tinha dito que queria comer lá fora, porque não se queria levantar dali. Isso foi logo o que pensei, mas aquilo era o cúmulo. Como podia ser?! Mas ele era assim mesmo. A mesa não ficava longe da cozinha para ir andando a pé. Mas para comer lá fora, era uma grande maçada para a pobre da minha sogra, que não ia ter sossego. Enquanto ele ia ficar ali refastelado, a ser servido de toda a maneira e feitio, a coitada não ia parar de andar para fora e para dentro, carregando com tudo. Não, não podia ser. Achei que aquilo não era tolerável de maneira nenhuma e fiquei muito incomodada.

Então pensei para comigo mesma que desta vez, pelo menos desta vez, as coisas iam ser diferentes e não iam ser do jeito dele. Por isso disse à minha sogra que não se preocupasse que eu resolvia por minha conta e risco. Fiz de conta que não sabia da imposição dele e comecei a pôr a mesa dentro de casa. A minha sogra percebeu imediatamente o meu plano e embora receosa, não se manifestou nem me contrariou, aceitando tudo o que eu estava a fazer.

Quando tudo estava pronto para o jantar, chamei as crianças para a mesa e fui lá fora ao encontro do Padre Domingos, que continuava imperturbável, agarrado à sua importantíssima leitura. Aproximei-me calmamente, dizendo-lhe, simplesmente, que a mesa estava posta e estávamos todos à espera dele, pelo que agradecia que viesse para dentro.

Vagarosamente, parou a leitura e levantou um pouco a cabeça, enquanto com um ar extremamente calmo e apenas com uma ligeira admiração, perguntou se não jantávamos ali. Do mesmo jeito calmo e tranquilo, respondi que não, que a mesa estava posta lá dentro, enquanto me fui desviando, propositadamente, de retorno a casa, para não lhe dar oportunidade de questionar fosse o que fosse, nem fazer comentários que não me interessavam de todo.

Para meu espanto, percebi que se moveu lentamente, fechando o livro e levantando-se com todo o vagar, seguiu-me em direcção a casa, onde entrou e sem reclamar absolutamente de nada, sentou-se à mesa para o jantar. Pensei para comigo mesma, “tudo em ordem, tudo na boa”. Pelo menos desta vez, só por uma vez, ele teve um comportamento aceitável e adequado, rem refilar, sem reclamar. Só por esta vez, a minha sogra ficou um pouco mais aliviada e tudo correu na perfeição. Às vezes temos que ter a coragem para fazer a diferença.

 

“O imóvel dispersa-se, e o movente permanece”