Era mais um fim de semana em Vila
Real, onde vamos de vez em quando, para estar com parte da família do Carlos, o
irmão que vive lá com a respectiva família. O Carlos viveu a vida toda fora de
Portugal, agora que finalmente reside cá, volta e meia vamos estrada fora,
visitar os irmãos que vivem em zonas diferentes do norte do país.
Vila Real é uma cidade simpática,
relativamente pequena, mas agradável. O irmão e a cunhada são médicos, já
reformados e têm uma casa grande na avenida, onde de vez em quando há corridas:
corridas de carros, de motos, de bicicleta e em que o trânsito fica
completamente cortado para o efeito. É interessante assistir às corridas,
confortavelmente sentados naquela bela varanda do primeiro andar ou noutro
ponto qualquer da casa ou do jardim.
Algumas vezes o meu passatempo é
entreter-me a limpar o jardim, que tem uma vasta e variada abundância de
plantas de todo o género. Os gatos vadios também gostam de se chegar e
pedinchar, porque sabem que são bem acolhidos, sem perderem a sua liberdade. A
porta da cozinha está quase sempre aberta e a Manuela, a cunhada do Carlos,
deixa-os entrar e andarem pela casa toda, como sendo da família. Assim, eles
entram e saem para fazerem o que lhes apetece sem ninguém os incomodar. Além
disso, têm sempre comida de luxo, que a Manuela tem o cuidado de lhes preparar.
Vila Real é uma cidade simpática
e apesar de não sairmos muito, há um lugar que sempre visitamos: o mercado. O
Carlos gosta de uns produtos muito específicos, difíceis de encontrar e ali é
um dos lugares onde consegue encontrar aquilo que quer. Por isso, podemos não ir a
mais lado nenhum, mas ao mercado, não falha. E eu adoro mercados, quaisquer que
sejam, onde quer que sejam.
Mercados lembram-me a minha
infância em África. A minha irmã ainda era bebé e a minha mãe tinha que ficar em
casa com ela, por isso mandava sempre um faxina ao mercado e eu ia sempre com
ele, porque adorava toda aquela bagunça. Era uma festa para mim. África era um
verdadeiro paraíso. Não havia nada ali que fosse monótono. Tudo tinha uma vida
muito própria. Havia cor, movimento, muita gente: adultos e crianças. A roupa
deles era muito folclórica e divertida. Toda aquela energia em tudo se
coadunava com a necessidade da minha alma.
A metrópole era um vazio enorme.
Adaptar-me a viver no Portugal metropolitano era difícil. Também ia ao mercado
com a minha avó e gostava, mas não era o mesmo. Quando vínhamos embora, parava
numa banca de fruta e dizia-me para escolher uma peça de fruta. Eu escolhia
sempre a mesma: um tomate bem vermelhinho, o que deixava a minha avó
surpreendida e não era pouco, dizendo que eu era uma criança muito estranha.
Mas a verdade é que o que eu encontrava mais semelhante às frutas tropicais,
era o tomate, que comia com gosto e que a minha avó não entendia mesmo.
Foi difícil aceitarem-me na
família. Para além dos meus pais, os únicos que me conheciam, me entendiam e me
amavam incondicionalmente, o resto da família só queria modificar-me, para que
eu tivesse “termos”, educação e modos de gente civilizada, como convinha. Ninguém
percebia que eu tinha tido uma vivência diferente, onde nada era como aqui. Já
para os meus pais, eu era perfeita. Estranho!?
Mas continuando no mercado, a
minha memória sobre os mercados em África, os primeiros de que me lembro na
minha existência desta vida, eram realmente um espectáculo. Uma grande
agitação, além de que eu não entendia nada do que falavam. Mas isso também não
tinha importância. Quem fazia as compras era o faxina e eu só o seguia. E às
vezes nem isso. Ele chegava a um determinado sítio e dizia-me para me sentar
num lugar que ele entendia e não sair dali até ele voltar. Provavelmente tinha
medo de me perder, julgo eu. Eu cumpria rigorosamente as ordens dele. De
qualquer modo, só o estar ali sentada já era muito bom. Eu via passar as pessoas
e assistia a todo o movimento de quem vendia e de quem comprava. Ouvia-os a
falar. Enfim, era muito gostoso. Depois, as bancadas com todo o seu colorido, e
muitos produtos que desconhecia completamente. Era África!
Por isso, como já disse, até hoje, os mercados me encantam e me fascinam. Gosto de inspecionar tudo e bisbilhotar.
Posso até nem comprar nada, mas gosto sempre de ver.
Numa das vezes que fomos ao
mercado em Vila Real, estava uma cigana à porta. Os três entrámos a conversar, pelo
que não dei muita atenção. Ela estava a pedir, embora não com muita
insistência e também não tinha muito mau aspecto. Se não estivesse a pedir,
talvez passasse despercebida.
Mas entrámos passando por ela,
que continuou no mesmo lugar. Andámos pelo mercado, parando aqui, parando ali e
parámos num espaço que tinha lojas em toda a volta. Havia um talho e o Carlos
foi ver qualquer coisa. A Manuela estava mais perto dele do que eu, que estava
ligeiramente afastada. De repente, apercebo-me da presença da cigana que estava
lá na entrada, de mão estendida a pedinchar. Perguntei-lhe o que queria. Disse
que não tinha dinheiro para comprar comida e levar para a família. Comecei a
abrir a mala a ver se tinha algum dinheiro para lhe dar uma esmola, mas ela logo
interrompeu, para me dizer que não queria dinheiro, apontando para a montra do
talho. Não quer dinheiro, pensei para comigo mesma. Quer que lhe compre carne?!
Fazer o quê? Ela estava ali diante de mim, em pessoa, de carne e osso e eu não
tinha como fugir. Por outro lado, se ela queria carne. Tinha esse direito! As
outras pessoas também estavam a comprar. Ela não era diferente dos outros.
Porque não?
Cheguei-me à frente e quando um
dos empregados ficou livre pedi-lhe umas pernas de frango, fazendo-lhe sinal
que era para a cigana. Mas a cigana logo interrompeu para dizer que queria um
frango inteiro. Um frango inteiro, repeti para mim mesma. Mas logo caí na
realidade, pensando, porque não? Ela também tem direito a um frango inteiro,
porque não? Fiquei na dúvida, se sim, se não, mas não sem sentir um pouco de
constrangimento e vergonha de mim mesma, pelo ser humano que me estava a
revelar, perante as necessidades dos outros. Não sei se ela estava habituada a
pedir assim às pessoas à volta dela, mas naquele momento era eu que estava em
cheque. Fazer o quê?
Pois sim, pedi ao homem do talho
que visse um frango inteiro para ela e o homem assim o fez, embora me tenha
dado a impressão de que parecia contrariado. Mas talvez fosse impressão minha.
Ele só tinha que vender, mais nada, fosse a quem fosse. O homem pegou no frango,
para logo o colocar na balança, mas, uma vez mais, ela interrompeu, para dizer
que não era aquele que queria, deixando-me a mim e ao homem, completamente
estupefactos, enquanto ela continuava apontando para os outros. Os outros que
estavam ao lado, na verdade, eram maiores e eu nem tinha reparado neles. Mas
ela insistia que era daqueles que ela queria, porque eram frangos do campo… e
eu fiquei… sinceramente, fiquei aparvalhada, apenas porque nunca tinha assistido
a uma cena daquelas. Uma pessoa a pedir com tantas exigências e tantos itens,
deixava-me completamente perplexa e verdadeiramente embaraçada, sem saber o que
pensar e o que fazer.
Entretanto, o homem do talho,
estava de frango na mão, e agora sim, era notório, com cara de contrariado,
talvez pela incerteza do que se queria, penso eu. A cigana, impávida e serena,
perfeitamente bem, dizia que era aquele que ela queria. Eu, que já estava a
perder a paciência, sem o querer admitir, respondi rapidamente que sim, podia
dar-lhe um daqueles. Contudo, eu não cabia em mim de espanto comigo mesma. Como
é que eu tinha deixado as coisas chegarem àquele ponto? E o homem também estava
com uma cara de chateado com aquela cena. Talvez ele já tivesse assistido ao
mesmo outras vezes, ou talvez não, não sei. Só para me livrar daquilo, disse
que sim, perguntando quanto era. Mas antes que o homem tivesse tempo de falar
em custos, para meu grande, grande espanto, eis que a cigana “atrevida”,
interrompe, para dizer que queria mais coisas… o chouriço….
Chega, interrompi eu. Aquilo já
tinha ultrapassado todos os limites e toda a minha paciência. Ela só podia
estar a gozar comigo. Eu nunca tinha assistido a uma coisa daquelas. Tudo
aquilo era surreal. O estranho é que o homem parecia ter ficado aliviado quando
lhe disse firmemente: desculpe, não quero nada, obrigada.
Quem tudo quer, tudo perde.