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terça-feira, 29 de abril de 2025

A cigana de Vila Real - 83

 

Era mais um fim de semana em Vila Real, onde vamos de vez em quando, para estar com parte da família do Carlos, o irmão que vive lá com a respectiva família. O Carlos viveu a vida toda fora de Portugal, agora que finalmente reside cá, volta e meia vamos estrada fora, visitar os irmãos que vivem em zonas diferentes do norte do país.

Vila Real é uma cidade simpática, relativamente pequena, mas agradável. O irmão e a cunhada são médicos, já reformados e têm uma casa grande na avenida, onde de vez em quando há corridas: corridas de carros, de motos, de bicicleta e em que o trânsito fica completamente cortado para o efeito. É interessante assistir às corridas, confortavelmente sentados naquela bela varanda do primeiro andar ou noutro ponto qualquer da casa ou do jardim.

Algumas vezes o meu passatempo é entreter-me a limpar o jardim, que tem uma vasta e variada abundância de plantas de todo o género. Os gatos vadios também gostam de se chegar e pedinchar, porque sabem que são bem acolhidos, sem perderem a sua liberdade. A porta da cozinha está quase sempre aberta e a Manuela, a cunhada do Carlos, deixa-os entrar e andarem pela casa toda, como sendo da família. Assim, eles entram e saem para fazerem o que lhes apetece sem ninguém os incomodar. Além disso, têm sempre comida de luxo, que a Manuela tem o cuidado de lhes preparar.

Vila Real é uma cidade simpática e apesar de não sairmos muito, há um lugar que sempre visitamos: o mercado. O Carlos gosta de uns produtos muito específicos, difíceis de encontrar e ali é um dos lugares onde consegue encontrar aquilo que quer. Por isso, podemos não ir a mais lado nenhum, mas ao mercado, não falha. E eu adoro mercados, quaisquer que sejam, onde quer que sejam.

Mercados lembram-me a minha infância em África. A minha irmã ainda era bebé e a minha mãe tinha que ficar em casa com ela, por isso mandava sempre um faxina ao mercado e eu ia sempre com ele, porque adorava toda aquela bagunça. Era uma festa para mim. África era um verdadeiro paraíso. Não havia nada ali que fosse monótono. Tudo tinha uma vida muito própria. Havia cor, movimento, muita gente: adultos e crianças. A roupa deles era muito folclórica e divertida. Toda aquela energia em tudo se coadunava com a necessidade da minha alma.

A metrópole era um vazio enorme. Adaptar-me a viver no Portugal metropolitano era difícil. Também ia ao mercado com a minha avó e gostava, mas não era o mesmo. Quando vínhamos embora, parava numa banca de fruta e dizia-me para escolher uma peça de fruta. Eu escolhia sempre a mesma: um tomate bem vermelhinho, o que deixava a minha avó surpreendida e não era pouco, dizendo que eu era uma criança muito estranha. Mas a verdade é que o que eu encontrava mais semelhante às frutas tropicais, era o tomate, que comia com gosto e que a minha avó não entendia mesmo.

Foi difícil aceitarem-me na família. Para além dos meus pais, os únicos que me conheciam, me entendiam e me amavam incondicionalmente, o resto da família só queria modificar-me, para que eu tivesse “termos”, educação e modos de gente civilizada, como convinha. Ninguém percebia que eu tinha tido uma vivência diferente, onde nada era como aqui. Já para os meus pais, eu era perfeita. Estranho!?

Mas continuando no mercado, a minha memória sobre os mercados em África, os primeiros de que me lembro na minha existência desta vida, eram realmente um espectáculo. Uma grande agitação, além de que eu não entendia nada do que falavam. Mas isso também não tinha importância. Quem fazia as compras era o faxina e eu só o seguia. E às vezes nem isso. Ele chegava a um determinado sítio e dizia-me para me sentar num lugar que ele entendia e não sair dali até ele voltar. Provavelmente tinha medo de me perder, julgo eu. Eu cumpria rigorosamente as ordens dele. De qualquer modo, só o estar ali sentada já era muito bom. Eu via passar as pessoas e assistia a todo o movimento de quem vendia e de quem comprava. Ouvia-os a falar. Enfim, era muito gostoso. Depois, as bancadas com todo o seu colorido, e muitos produtos que desconhecia completamente. Era África!

Por isso, como já disse, até hoje, os mercados me encantam e me fascinam. Gosto de inspecionar tudo e bisbilhotar. Posso até nem comprar nada, mas gosto sempre de ver.

Numa das vezes que fomos ao mercado em Vila Real, estava uma cigana à porta. Os três entrámos a conversar, pelo que não dei muita atenção. Ela estava a pedir, embora não com muita insistência e também não tinha muito mau aspecto. Se não estivesse a pedir, talvez passasse despercebida.

Mas entrámos passando por ela, que continuou no mesmo lugar. Andámos pelo mercado, parando aqui, parando ali e parámos num espaço que tinha lojas em toda a volta. Havia um talho e o Carlos foi ver qualquer coisa. A Manuela estava mais perto dele do que eu, que estava ligeiramente afastada. De repente, apercebo-me da presença da cigana que estava lá na entrada, de mão estendida a pedinchar. Perguntei-lhe o que queria. Disse que não tinha dinheiro para comprar comida e levar para a família. Comecei a abrir a mala a ver se tinha algum dinheiro para lhe dar uma esmola, mas ela logo interrompeu, para me dizer que não queria dinheiro, apontando para a montra do talho. Não quer dinheiro, pensei para comigo mesma. Quer que lhe compre carne?! Fazer o quê? Ela estava ali diante de mim, em pessoa, de carne e osso e eu não tinha como fugir. Por outro lado, se ela queria carne. Tinha esse direito! As outras pessoas também estavam a comprar. Ela não era diferente dos outros. Porque não?

Cheguei-me à frente e quando um dos empregados ficou livre pedi-lhe umas pernas de frango, fazendo-lhe sinal que era para a cigana. Mas a cigana logo interrompeu para dizer que queria um frango inteiro. Um frango inteiro, repeti para mim mesma. Mas logo caí na realidade, pensando, porque não? Ela também tem direito a um frango inteiro, porque não? Fiquei na dúvida, se sim, se não, mas não sem sentir um pouco de constrangimento e vergonha de mim mesma, pelo ser humano que me estava a revelar, perante as necessidades dos outros. Não sei se ela estava habituada a pedir assim às pessoas à volta dela, mas naquele momento era eu que estava em cheque. Fazer o quê?

Pois sim, pedi ao homem do talho que visse um frango inteiro para ela e o homem assim o fez, embora me tenha dado a impressão de que parecia contrariado. Mas talvez fosse impressão minha. Ele só tinha que vender, mais nada, fosse a quem fosse. O homem pegou no frango, para logo o colocar na balança, mas, uma vez mais, ela interrompeu, para dizer que não era aquele que queria, deixando-me a mim e ao homem, completamente estupefactos, enquanto ela continuava apontando para os outros. Os outros que estavam ao lado, na verdade, eram maiores e eu nem tinha reparado neles. Mas ela insistia que era daqueles que ela queria, porque eram frangos do campo… e eu fiquei… sinceramente, fiquei aparvalhada, apenas porque nunca tinha assistido a uma cena daquelas. Uma pessoa a pedir com tantas exigências e tantos itens, deixava-me completamente perplexa e verdadeiramente embaraçada, sem saber o que pensar e o que fazer.

Entretanto, o homem do talho, estava de frango na mão, e agora sim, era notório, com cara de contrariado, talvez pela incerteza do que se queria, penso eu. A cigana, impávida e serena, perfeitamente bem, dizia que era aquele que ela queria. Eu, que já estava a perder a paciência, sem o querer admitir, respondi rapidamente que sim, podia dar-lhe um daqueles. Contudo, eu não cabia em mim de espanto comigo mesma. Como é que eu tinha deixado as coisas chegarem àquele ponto? E o homem também estava com uma cara de chateado com aquela cena. Talvez ele já tivesse assistido ao mesmo outras vezes, ou talvez não, não sei. Só para me livrar daquilo, disse que sim, perguntando quanto era. Mas antes que o homem tivesse tempo de falar em custos, para meu grande, grande espanto, eis que a cigana “atrevida”, interrompe, para dizer que queria mais coisas… o chouriço….

Chega, interrompi eu. Aquilo já tinha ultrapassado todos os limites e toda a minha paciência. Ela só podia estar a gozar comigo. Eu nunca tinha assistido a uma coisa daquelas. Tudo aquilo era surreal. O estranho é que o homem parecia ter ficado aliviado quando lhe disse firmemente: desculpe, não quero nada, obrigada.

Quem tudo quer, tudo perde.


quinta-feira, 24 de abril de 2025

O Joaquim - 82

 

Joaquim é um vizinho meu, uma pessoa não muito fácil de lidar. Frequentemente há problemas com ele, na vizinhança, porque ele é um bocado complicado. Também já tive alguns incómodos com a pessoa dele, mas consegui dar a volta ao texto.

Nesta vida, não podemos agradar a todos, é certo. Com efeito, ele é uma pessoa com quem é preciso aprender a lidar, mas nem toda a gente pensa assim. Se estiverem à espera que seja ele a entender os outros, podem esquecer. Ele gosta de falar, fazer ver os seus pontos de vista, mas não dá a mesma oportunidade, sobretudo se não estiverem de acordo com ele. Não é fácil, mas temos que aprender que faz parte do nosso crescimento espiritual, ser mais paciente com aqueles que precisam e facilitarmos as vias de comunicação, quaisquer que elas sejam, em vez de as complicarmos e as tornarmos até impossíveis.

Nesse contexto, há uns anos atrás, na ordem das coisas, ele seria um dos administradores do condomínio, no período de dois anos, conforme está estabelecido. Ele e outro. Houve muitos problemas, porque ninguém queria ser administrador com o Joaquim. E não era preciso perguntar porquê. Toda a gente sabia a razão disso. O Joaquim arranjava muitos problemas, complicava muito as coisas e tudo tinha que ser como ele dizia. Ter uma opinião diferente da dele era complicação na certa.

Foi então que decidi actuar, tomando a difícil decisão que ninguém queria para si, ficar na administração com o Joaquim. Aquilo seria um enorme desafio, mas eu queria, mais do que tudo, mostrar a todos que também parte de nós, de cada um de nós, ir ao encontro dos outros e fazer um esforço de aproximação. Era uma experiência realmente desafiadora, mas para mim, muito importante. Enquanto os outros apenas queriam mostrar a sua incompatibilidade com aquela pessoa, eu gostaria de provar que podiam estar enganados e que, sim, era possível fazer equipa com ele. E assim fiz. Problema resolvido para o condomínio.

Não posso dizer que foi fácil, porque não foi. Estaria a mentir se dissesse o contrário e eu já estava à espera disso. Mas ninguém me obrigou, fui eu que tomei a iniciativa, fui eu que aceitei por minha expressa e consciente vontade. Foram dois anos muito complicados, em que algumas vezes até passei mal. E não foi só por ele. Foi também por outras pessoas. Quando se toma uma decisão em reunião, sobre um determinado assunto que foi a votação, tem que ser cumprido, caso contrário estamos todos a brincar e isso não faz sentido. Se a maioria vota uma coisa, essa coisa tem que ser aceite por quem votou contra. Vivemos em democracia e para tudo é assim a vida. Mas há pessoas que não aceitam e querem que seja como elas dizem, recusando-se a aceitar a voz da maioria. Fica complicado.

Prevendo que coisas desta natureza iriam acontecer, logo no início do nosso mandato, fiz um pacto com o Joaquim, que seria, independentemente do que acontecesse, jamais nos incompatibilizaríamos um com o outro, no que o Joaquim concordou plenamente. E chamei-o bem a atenção para isso, lembrando-o de que teríamos de enfrentar situações embaraçosas, mas que o importante era ficarmos sempre unidos. Ele concordou sem problema nenhum, o que já foi muito bom, pois dar-lhe-ia mais consciência de tudo, etc.

E assim enfrentámos tudo o que veio e não foi pouca coisa. Trocávamos opiniões um com o outro, como tinha que ser e conseguimos levar as coisas adiante e chegar ao fim. Foi até interessante porque, apesar de todos os “apesares”, ficámos amigos, numa amizade mais sólida, mais firme, mais harmoniosa. O Joaquim viu em mim alguém em quem podia confiar, alguém com quem ele podia desabafar sem se chatear, com a paciência que os outros não sabem ter, porque às vezes ele até chega a ter piada.

Um dia, na entrada do prédio, um saindo e o outro entrando, cumprimentámo-nos como de costume e entre nós passou rapidamente um casal que tem dois filhos. Cumprimentámo-nos todos, sendo que eles são pessoas muito educadas e simpáticas. Ele mais sério, ela sempre toda sorridente. E depois de seguirem o seu caminho, o Joaquim começa a falar comigo, de uma forma meio codificada, com uns gestos e umas caras, enquanto eu aguardava uma maior precisão da parte dele. E começou a explicar-se. O que ele queria dizer, é que ela, a vizinha que tinha acabado de passar, nem sempre tinha o mesmo comportamento. Quando ele disse isto, fiquei à espera de mais, para não ter que lhe fazer perguntas.

Ela é simpática, dizia-me ele. Respondi-lhe que sim, muito simpática, sempre muito bem-disposta. Pois é, dizia ele, mas… e ficou em silêncio. Repeti, mas… e ele continuou. Mas tem dias. Tem dias, como assim, perguntei. Às vezes não é, sabe… dizia. Às vezes passa por mim e parece que nem me conhece, dizia ele muito injuriado, estranhando muito o facto de ela alternar o comportamento. Mas é só às vezes. E comecei a rir, a rir com gosto, vendo o olhar dele intrigadíssimo pela minha reacção, que ele não entendia nem esperava.

Uma vez, eu entrei no “take away”, do outro lado da rua, fora da nossa Praceta e no meio das pessoas que lá estavam, estavam eles, o casal com os dois filhos. Só que o marido não era o dela e os filhos também não. Eram outros. E quando ela de repente se virou e confirmei que era ela, sorrindo para a cumprimentar, ela nem reparou, ou ignorou, ou não viu, parecendo que não me conhecia. Coloquei-me em posição de a ver melhor e era ela, mas não. Só podia ser uma irmã gémea. Isso explicava que eu também já a tivesse visto entrar ou sair do prédio, sozinha, sem que ela me falasse.

Quando o Joaquim veio com essa conversa de nem sempre ela falar, percebi imediatamente que ele também não sabia da existência da irmã gémea, como eu não sabia, se não tivesse presenciado essa cena.

Como o Joaquim gosta de ter sempre razão, ao explicar-lhe que ela tinha a tal irmã gémea, simplesmente ficou desconcertado, sem jeito, pensativo, balbuciando “irmã gémea”… e talvez pensando que eu o estava a enganar. Nunca se sabe.

O facto é que ele ficou sem palavras, porque não estava à espera daquele desfecho. Era difícil para ele admitir que todo o tempo tinha estado enganado, tirando conclusões precipitadas que facilmente levam ao engano.

Mas por esta vez, talvez só por esta vez ou talvez por outras vezes, o Joaquim não tinha o que argumentar, restando-lhe apenas e somente o facto de que estava redondamente enganado. Ponto final.

 

domingo, 20 de abril de 2025

Um cruzeiro - 81

 

Como é bom fazer um cruzeiro pelo mediterrâneo fora, com tudo de bom à nossa disposição! Boa comida, boa companhia, bons programas para distrair a tripulação, além de outras coisas maravilhosas que uma viagem destas nos proporciona. Mar azul, céu azul! É muito bom.

E enquanto o barco anda durante a noite em que podemos dormir um sono tranquilo, relaxado, acordar num novo porto, um lugar diferente para visitar, oh vida boa!...

Foi há cerca de quarenta anos que embarquei no primeiro cruzeiro, integrada num grupo de funcionários da RTP. Por essa altura o meu casamento já estava bastante mal e decidi que seria bom para ambos fazer um cruzeiro, no que o meu marido concordou.

Não queríamos gastar muito dinheiro, por isso ficámos num camarote de três, com uma colega açoriana, que tinha trabalhado connosco na Delegação dos Açores, e que veio para Lisboa um pouco depois de nós. Ela era muito nossa amiga e tínhamos bastante intimidade, por isso, era a pessoa certa para ficar connosco. Era solteira, não queria pagar um camarote individual porque era muito caro também para ela e pronto, tudo se ajustou. Ela fazia a vida dela e nós a nossa, sendo que cada um dos três tinha o seu beliche. Foi óptimo.

Era um grande grupo da RTP, praticamente todos conhecidos, mais intimidade com uns do que com outros, enfim, eram férias e as condições eram propícias para nos conhecermos todos melhor, o que é sempre muito proveitoso.

A Conceição era uma pessoa engraçada, sempre bem-disposta e sempre pronta a rir por tudo e por nada. Era muito castiça, porque tinha aquela bela pronúncia açoriana da ilha Terceira, que é diferente de S. Miguel. Pronuncia que ela, apesar de fora da ilha há alguns anos, ainda não tinha perdido.

Com o divórcio em perspectiva, eu andava com os nervos muito desequilibrados e com ansiolíticos para atenuar a ansiedade. Um dia depois do almoço fui para o camarote para me deitar um pouco e descansar. Havia uma janela que ficava mesmo a meio do meio beliche e quando estava deitada, era como se estivesse submersa num aquário gigante, porque os camarotes ficavam abaixo do nível da água. E eu olhava pela janela redonda e via a água e tudo o que ela continha. Era relaxante e ajudava-me a adormecer tranquilamente.

A certa altura, quando eu já estava a entrar no sono, mas um sono leve, apercebi-me de que a São tinha entrado e andava por lá. Lembrava-me ou tinha a sensação de a ter ouvido dizer, talvez falando consigo mesma ou pensando que eu a estava a ouvir, que ia ao cabeleireiro, já tinha feito a marcação e queria muito arranjar o cabelo para estar bonita e bem arranjada para a noite, porque era uma noite especial qualquer. Coisas próprias dos cruzeiros e que alguns levam muito a sério. Sei que pouco depois, fiquei novamente sozinha e entrei no sono, um sono ainda leve, mas um pouco mais profundo.

Devo ter dormitado algum tempo e depois de ver as horas apeteceu-me levantar e ir até lá fora, ver o que se estaria a passar. Mas pouco tempo depois, antes de ter tempo de sair, entrou o meu marido, que se sentou na borda do meu beliche, dizendo-me para não sair do camarote e nem tão pouco me aproximar da zona da piscina, porque estava cheia de colegas da RTP e cada pessoa que aparecia, era tomada de assalto e atirada para dentro da piscina, sem mais nem menos.

Olhei espantada para ele, porque não queria acreditar. Mas ele não continuou falando e relatando o nome de colegas que já tinham caído na emboscada. Achei aquilo uma chatice e agradeci-lhe o aviso, porque não me agradava nada ser atirada à força para dentro de água. Ele voltou a sair e eu fiquei sozinha. Num impulso, decidi vestir-me e sair também, para indagar por mim mesma.

Assim pensei, assim fiz. Abro a porta do camarote e saio. Dou três ou quatro passos, dobro uma esquina e passa por mim a correr, completamente enlouquecida, a Drª Rosa, desvairada de todo, olhando para trás, nitidamente a fugir de alguém. Percebi imediatamente que estava na mira dos que a queriam atirar para a piscina, por isso ela fugia como o diabo da cruz.

Bom, depois desta cena, decidi voltar imediatamente para o camarote, pois já tinha sido avisada pelo meu marido e aquela cena que tinha acabado de ver, estava mais do que explicada, era mais do que evidente. Nem conseguia imaginar o turbilhão que ia na piscina e à volta dela.

Regressei ao camarote e voltei a deitar-me, para dar mais tempo a que tudo aquilo acalmasse. Não me agradava mesmo nada ser atirada para a piscina. Deitei-me e continuei e fixar-me na minha janela redonda de claraboia, que tanto me encantava. E neste dolce far niente, sem me aperceber, voltei a adormecer outra vez.

Entretanto, a São entra novamente e acordo lentamente, com ela sentada à frente do toucador, olhando-se no espelho e resmungando entre dentes. Mas o resmungar era estranho porque, ora resmungava ora ria. Pensei que estava a sonhar, por isso abri os olhos. Ao abrir os olhos vejo-a realmente sentada em frente do espelho e percebi que não estava a sonhar.

Contudo, alguma coisa não batia muito certo na minha cabeça. Aquilo que eu via era a São toda encharcada dos pés à cabeça e com uma toalha enxugando os cabelos. Mas eu ia jurar que a tinha ouvido dizer que ia ao cabeleireiro. Afinal tinha estado a lavar a cabeça!? Que confusão. E concluí que era tudo um sonho maluco dos meus. Voltei a fechar os olhos para me distanciar das minhas “doideiras”.

Mas ela continuava a barafustar, ora rindo, ora chateada não sei com quê, porque barafustava sozinha, para cair novamente na risada e tudo isto completamente sozinha, porque não havia mais ninguém no camarote. E eu não conseguia deixar de pensar que podia jurar que a tinha ouvido dizer que ia ao cabeleireiro! Mas afinal estava ali com o cabelo todo numa sopa!? A minha cabeça não estava mesmo boa. Tudo isto por conta do sonho, com certeza. Mas afinal ela ia ou não ao cabeleireiro?

Decidi levantar-me para ir espreitar o meu marido e o que ele e os outros andavam a fazer. Sento-me no beliche e olho para a São, através do espelho. Ela vira-se de frente para mim e pergunto imediatamente: “mas então, achei que tinhas ido ao cabeleireiro!?”. Resposta dela, ao mesmo tempo que desatava a rir e a choramingar: “e fui…”. "E foste?”, voltei a perguntar. Sim, disse ela, mas quando saí, queria-me sentar a apanhar sol à beira da piscina e eles meteram-me à força dentro de água, depois de ter gasto um dinheirão no cabeleireiro!? ...


quarta-feira, 16 de abril de 2025

O "Henrique" - 80

 

De todos os lugares da terra que já visitei, e não foram assim tão poucos, há três cidades que me deslumbraram completamente. Em terceiro lugar, Istambul, capital da Turquia; em segundo, Rio de Janeiro, Brasil e em primeiro, Nova Iorque.

Sei que para a grande maioria das pessoas Paris é isto, é aquilo, mas, muito sinceramente, não me diz nada. É só mais uma, igual a tantas outras. Para mim passou totalmente despercebida. O que é Paris comparando com Roma, por exemplo. Roma é um fascínio! Roma está cheia de mistério, cheia de mensagens codificadas aqui e ali, ao virar da esquina, em todos os monumentos e em todas as ruas a história fala a olhos vistos e os segredos descobrem-se como se tudo tivesse uma voz própria, que cada um pode ouvir e que para cada um é diferente.

É mística, é doida, calorosa, é o máximo. Ali, o passado tem uma força esmagadora. É impossível descartar. Mas no meio deste tumultuado caminho de emoções há uma dor profunda. Roma é Itália! É vida e morte, tudo ao mesmo tempo e às vezes eu ficava com a sensação de que estava lá e não cá. O passado que eu não vivi entrava no meu presente, quase que baralhando a minha cabeça e o meu espírito.

E como Itália, outros países do mundo me fascinaram, por este ou aquele motivo. Em todos os lugares há uma energia muito própria, muito surreal, que é preciso viver para sentir. Não podemos viajar com a mente fechada. Temos que abrir as portas do nosso eu para passar à experiência, naquilo que vemos, sentimos, absorver a comunicação com os demais, o que eles nos passam, os seus ditames, o que os cobre, a maneira como se vestem, deliciarmo-nos com o que nos dão a comer, certamente diferente dos nossos hábitos, mas para tudo precisamos de abrir fronteiras, ou arriscamo-nos a ficar fora de tudo, da essência vida.

Com efeito, alguma coisa muito especial chamou a minha atenção para estas três cidades que já mencionei, fazendo com que a minha pontuação caísse sobre elas e não noutras. A terceira, Istambul, é uma cidade maravilhosa, cheia de história, com tanta coisa para visitar, como tantas outras cidades ou lugares, é certo, mas, mais do que tudo, no meio daquela barafunda toda, uma cidade muçulmana onde as mulheres e os homens se vestem quase todos de maneira muito própria e para além daquela divisão entre Europa e Ásia, uma coisa me deixou completamente extasiada, o chamamento à mesquita ou à oração, aquela lengalenga que eu não sabia sequer o que diziam, mas que entoada do jeito deles, fica entre a música e o choro, é um som delicioso, que convida de facto ao silêncio e nos faz recolher ao nosso interior elevando o espírito para outras dimensões.

Aquela música chorada é linda, linda, uma coisa do outro mundo, sempre às mesmas horas, parece que o mundo inteiro pára para ouvir aquilo, deixando-nos extasiados e na mesma e única sintonia, que ultrapassa os limites humanos. É realmente de uma beleza impressionante. E não é que não tenha ouvido o mesmo, por exemplo, no Bangladesh, mas nem por sombras se assemelha à Turquia. No Bangladesh é um ruído assustador, uma coisa medonha que apetece fugir. Na Turquia é a coisa mais maravilhosa que já ouvi. Lindo! Lindo!...

Depois, em segundo, O Rio de Janeiro. O Rio é o lugar onde eu viveria por puro prazer. Ali encontrei tudo aquilo que tive em criança e perdi. Ali encontrei o meu sol, o meu calor tropical, gente de todas as cores, onde cada um veste o que quer e lhe apetece, onde a fruta salta aos nossos olhos, é o Brasil. Mas o Rio de Janeiro é especial. Eu nem sei o que salientar, porque tudo ali é bom. É uma pena ser tão mal aproveitado e não vou falar disso porque não vem ao caso.

E em primeiro lugar, como já referi, Nova Iorque, “a cidade que nunca dorme”. Com efeito. Nova Iorque é Nova Iorque e uma sensação de liberdade incrível. Não consigo expressar por palavras o que sinto por aquela cidade. É uma loucura atrás da outra.

Mas numa destas três cidades que me marcaram de modo especial, há uma historinha engraçada que aconteceu no Rio de Janeiro, precisamente em Copa Cabana.

Estávamos a passear, O Carlos e eu, quando decidimos alugar uma motinha. Eram as mais pequenas de todas. Uma graça! Só de olhar para elas já apetecia montar e fugir. Eram eléctricas e óptimas para passearmos pelo Rio, que é grande que nunca mais acaba, como todo o Brasil. E como andávamos muito a pé, aquilo seria uma grande ajuda e ao mesmo tempo um enorme prazer. Por isso decidimos aproximarmo-nos dos lugares de aluguer e sabermos como era.

Fomos caminhando, olhando, ao mesmo tempo que apreciávamos toda aquela beleza à nossa volta, pela calçada ou pela praia, até que decidimos ir a um rapaz que tinha várias motinhas das que queríamos. O Carlos, que é entendido no assunto, começou a falar com o rapaz que alugava as motos. Começou a fazer perguntas e enquanto eles falavam eu reparei que o rapaz era bonito e tinha olhos verdes.

O Carlos olhou, viu esta, aquela, a outra, falou, perguntou, ouvimos o que o rapaz dizia e ao mesmo tempo íamos falando um com o outro. Vinha outra pessoa que também estava interessada, e outra, olhávamos o mar, a praia, sob um sol radioso e lindo demais, as pessoas aproveitando a vida, calculávamos o tempo de energia que a moto oferecia e fazíamos cálculos para os nossos próximos passeio e o tempo ia passando, calma e tranquilamente, com todo o prazer que tudo aquilo nos proporcionava e que é preciso agradecer à vida, ao universo que tudo rege e comanda.

E então o Carlos interrompe tudo para me fazer a observação de que o rapaz se parecia muito com o Henrique, o meu filho querido. É bonito, tem olhos verdes, é muito parecido com o teu filho, dizia ele. Sim, respondi, enquanto acenava com a cabeça em sinal afirmativo. Coincidência, podia ser irmão, primo… tinha graça. E, sem querer, comecei a divagar. Ele tinha família completamente desconhecida no Brasil, isso sim. O avô paterno tinha emigrado para o Brasil e formado outra família, deixando a mulher e os filhos nos Açores, quando o pai dele, do meu filho, tinha apenas dois anos. Motivos de desentendimento entre o casal o levaram a isso. É a vida. E nunca mais ninguém soube dele. Mas isso era só eu a divagar, claro. As coincidências da vida, que às vezes não passam mesmo de coincidência, nada tendo a ver com a realidade.

Decidimos que ficaríamos ali naquele posto com o “Henrique” e fizemos a marcação para o dia seguinte. Tudo certo. Foi então que o Carlos, para ter a certeza de que encontrava o rapaz, perguntou “o seu nome, por favor”. Resposta dele: “Henrique”.


terça-feira, 29 de outubro de 2024

O dinheiro fala sempre mais alto - 79


Sim. Meu pai tinha três casas quando faleceu. Talvez porque tinha três filhas. Porém, as três casas ficaram para a minha meia irmã, a mais nova.

Isto foi algo que incomodou muita gente, muito mais do que a mim e à minha irmã. Jamais o questionámos sobre questões de herança. Era como se não tivesse nada. Nem nos lembrávamos disso. Sempre nos preocupámos bem mais com outras coisas, nomeadamente, a sua saúde e os seus problemas. E, quanto à herança, estava claro que a minha madrasta estava por trás de tudo, impondo as suas vontades. Quando casou com o meu pai, não tinha nada. Ao longo dos anos que viveram juntos e por ter tido uma filha com ele, sempre fez a cabeça dele, porque só pensava e queria tudo para a filha dela. Mas não foi só com o marido que ela teve esse comportamento egoísta e materialista. Fez o mesmo com a irmã, uma irmã que era solteirona e nunca teve filhos. No entanto, essa sim, tinha muito dinheiro, porque tinha lojas abertas e tudo o que ganhava era investido em propriedades. Como não tinha filhos, a minha madrasta conseguiu fazer com que ela deixasse todos os bens, que não eram poucos, para a sua querida filha, apesar de haver outros herdeiros, os primos, igualmente seus sobrinhos e que teriam tanto direito como ela.

Não me admira nada esta atitude da minha madrasta, admira-me sim, a minha irmã nunca ter aberto a boca para defender os primos, do lado da tia, por exemplo, que ela sabia perfeitamente que tinham tantos direitos como ela, ou as irmãs, por parte do pai, que estavam exactamente na mesma posição. O problema é que o dinheiro fala sempre mais alto.

Claro, sei como era a minha madrasta e sei que ela investia na filha conforme podia para a manipular, da mesma maneira que fazia com o nosso pai. Do lado da tia, até posso entender, porque ela e a irmã eram muito chegadas. Não é que, inicialmente, também não o fossem com o irmão. Mas o irmão casou, teve dois filhos, também tinha os seus negócios, mas não era tão colado às duas irmãs, que eram unha e carne uma com a outra, talvez por serem solteironas e não terem amigos, sendo muito sozinhas. A minha madrasta quando casou já tinha quarenta anos e a irmã era mais velha. Elas eram muito estranhas. E se o meu pai não conseguiu o elo de amor com a filha mais nova como conosco, em parte foi por culpa da minha madrasta. Quando éramos crianças, ainda a minha mãe era viva, sempre que o meu pai estava em casa, íamos com ele ao parque para brincar. Foi ele que nos ensinou a andar de trotinete, a andar de bicicleta, o isso era muito bom. Uma verdadeira felicidade. Era o nosso querido e amado pai. Com a minha irmã mais nova, isso nunca foi possível, simplesmente porque a minha madrasta não deixava de jeito nenhum. Ela dizia que era muito feio uma menina sair sozinha com o pai, imagine-se!

Voltando às heranças, se a mim e à minha irmã em nada incomodou o facto do nosso pai ter deixado tudo para a nossa outra irmã, a mais nova, já os primos do lado da mãe não foram nisso e quando a tia morreu impuseram-se, levando o caso a tribunal para a justiça fazer o seu trabalho.

Não. Nós jamais o faríamos. Porque somos parvas e somos isto e aquilo. Não importa. Nós apenas respeitámos o desejo do meu pai. Isso estava acima de qualquer coisa. Pouco antes de morrer, ele falou-me desse assunto, e da maneira mais simples possível, explicou que tinha feito o que fez porque a minha madrasta lhe chateava a cabeça com esse assunto, mas não só. Ele disse que nós, a minha irmã e eu, tínhamos capacidade total para enfrentar a vida, o mesmo não acontecendo com a outra filha, cuja mãe não soube preparar para a vida.

Escutei-o sempre em silêncio. Deixei-o à vontade para dizer o que precisava de ser dito. Jamais me passou pela cabeça contrariá-lo ou apontar-lhe o dedo, dizendo que não era justo, ou que não queria saber de nós, etc., etc., etc., pois o caminho não era esse. Se fosse com outras pessoas, talvez. Mas era o meu pai e eu. E o assunto ali não eram as heranças, ou o raio que o partissem… o assunto ali era outro: o amor. E disso ele nem precisava de falar.

Eu sempre fui a filha mais ligada a ele. Eu conhecia como ninguém, além da minha mãe, o pai que tinha, o ser humano especial que ele era. Tanto, que nem consigo ter palavras para o expressar. É impossível. Ele era uma pessoa única, um ser humano numa dimensão muito para além desta que conhecemos, onde tudo o que importa é o dinheiro. E até hoje podem continuar a achar-me uma idiota, uma tola, uma ingénua… o que quiserem, pois nada disso me afecta. Quando falei com a minha irmã e lhe contei esta minha conversa com ele e a sua intenção quanto à herança, fui bem clara na minha decisão de respeitar cem por cento a decisão dele e ponto final, no que ela concordou plenamente. Portanto, o assunto estava resolvido por natureza, o que foi muito bom.

Eu sabia a distância a que a minha meia irmã estava de nós em relação ao amor do meu pai pelas filhas do primeiro casamento, com a mulher que ele amou para a vida toda, sem a menor chance de ser destruído. Ele voltou a casar anos mais tarde, mas nada era o que era. Não havia a menor comparação possível. A minha mãe morreu quando eu tinha dez anos. Meu pai, militar de carreira, para sobreviver ao duro golpe que a vida lhe tinha dado, foi para Angola, a guerra de Angola… para a frente de batalha, onde passou grande parte da sua vida, nos anos que se seguiram. Nós ficámos com os avós, sendo que a minha irmã foi para um colégio interno. Não havia telemóveis, nem meio de nos comunicarmos como agora. A única maneira de saber dele era por meio dos aerogramas, um por semana, num dia certo, em que a minha ansiedade era mais que muita para a chegada do correio. Quando o aerograma caía na caixa eu tirava-o como se fosse uma pedra preciosa. E quando pegava nele e o lia, independentemente do que estava escrito, eu só sabia de uma coisa. Só uma coisa era certa. Que uma semana antes, o tempo que demorava para chegar, ele estava vivo. No momento em que o recebia, quem podia garantir? Tinha que esperar os próximos oito dias, para ficar a saber. Não era fácil. Tudo podia acontecer, a qualquer hora, a qualquer momento.

Ele sempre se preocupou conosco e com as nossas necessidades. Casei-me tive um filho, divorciei-me e fui vivendo como pude. A minha irmã casou muito nova, foi para o Brasil, onde os filhos nasceram e vinte anos depois regressou, também divorciada. Quase todos os dias falávamos com ele e não raro o mês ele fazia um depósito na minha conta, mesmo quando eu dizia que não precisava. Era uma importância pouca, mas significativa para mim. O mesmo fazia com a minha irmã. 

Nos últimos anos da sua vida orientei-o como pude e como devia, em relação aos médicos e à sua saúde. Acompanhava-o e estava a par de tudo. Não podia esperar isso de mais ninguém. Mas fiz tudo o que foi preciso e possível e com todo o amor que tinha por ele. Estivemos juntos até ao fim e enfrentei todos os seus receios e necessidades. Desabafou em paz tudo o que precisava de dizer. O amor que vinha à superfície era de uma imensa profundidade. Indescritível. Alguma vez lhe falei das casas ou de questões de dinheiro, herança!? Jamais. Havia uma coisa em jogo, muito, mas muito mais importante do que o dinheiro. Fui uma filha muito amada e isso estava acima de qualquer outra coisa. O amor que nos unia era tão grande, que não havia dinheiro que se sobrepusesse. E isso era realmente a única coisa que me importava de verdade. Infelizmente, a minha meia irmã ficou com o que foi possível: as casas. Sim. 


Ser mãe - 78

 

Juliana tinha duas filhas que ela amava muito. A mais velha tinha quinze anos quando a mais pequena nasceu, de um segundo casamento. Juliana era Cabo Verdiana e veio para Portugal à procura de uma vida melhor, como tantos outros o fazem, mas por esta altura ainda só tinha uma filha, que ficara em Cabo Verde com a tia, irmã de Juliana, que também tinha uma menina da mesma idade.

Sempre que lhe perguntávamos pela filha, dizia que estava bem, com a tia, em Cabo Verde. Falava muito com ela pelo telemóvel e de vez em quando mandava-lhe presentes. Frequentemente expressava a vontade de ter uma vida melhor para ela e para a filha. Arranjava trabalho, mas todos os que arranjava não duravam muito, porque chegava sempre uma altura em que dizia estar farta. E o que vinha a seguir nunca era melhor, do ponto de vista remuneratório, mas em contrapartida, segundo ela, mais suave, menos cansativo.

Conseguiu arrendar um apartamento no prédio onde vivo, por uma quantia irrisória comparada com os preços praticados no mercado e ainda alugava um quarto para ser ainda mais fácil. Como era uma rapariga muito agradável, simpática e afável, eu e outras vizinhas minhas amigas, reunimos forças para lhe arranjarmos mobílias e outras coisas para a casa, porque não tinha absolutamente nada, o que lhe deu muito jeito, tendo agradecido.

Convivia muito connosco, pelo que dizia sempre, que tinha sido muito bem recebida no prédio, porque estávamos sempre a ajudá-la em tudo o que podíamos. De facto, muito nos mobilizámos, facilitando-lhe todo o tipo de coisas, como podíamos.

O tempo foi passando e a certa altura Juliana conheceu um rapaz da terra dela, que também tinha vindo para cá à procura de uma vida melhor. Os dois começaram a namorar e ele veio viver para casa dela. Também tinha uma filha da idade da filha de Juliana, que também não estava com ele. Era a mesma situação de Juliana.

As amigas vizinhas falavam com ela e diziam-lhe abertamente que tivesse cuidado para não engravidar, uma vez que já tinha uma filha crescida e longe dela e agora que estava num novo relacionamento, deveria pensar em trazer a filha para junto dela. Vezes sem conta lhe falámos no assunto, que deveria ter o cuidado de não engravidar, porque não era bom ter filhos à toa. Ela ouvia e ria muito, quando tocávamos no assunto. Nós apenas queríamos o bem dela, porque ela própria dizia que tinha vindo à procura duma vida melhor. Portanto, uma coisa de cada vez.

O facto é que um dia em que estávamos todas juntas, uma das minhas vizinhas e amiga, me chamou a atenção para a barriga dela. Fiquei sem perceber. Se ela estivesse grávida, com toda a certeza eu seria a primeira a saber, porque eu era a mais chegada a ela e ela confiava muito em mim para tudo. Isto era o que ela dava a entender e me fazia acreditar.

Continuando com a conversa da minha amiga, não percebi muito bem o que ela estava insinuando, porque jamais me passou pela cabeça que ela estaria grávida. Grávida!? Impossível! Quando lhe falávamos nisso ela ria, mas concordava connosco que havia muita coisa a fazer, se realmente estava empenhada em ter uma vida diferente para melhor. Contudo, a minha amiga e vizinha foi perentória, afirmando que ela só podia estar grávida, pela barriga que tinha. Continuei sem acreditar, dizendo-lhe que não tinha reparado e talvez estivesse um pouco mais gordinha. Ela riu, afirmando categoricamente que ela estava grávida, sim.

Perguntei-lhe então se ela lhe tinha dito alguma coisa e ela logo respondeu um não prolongado, o que significava que nem pensar. De facto, ninguém do grupo sabia, o que significava que estava tudo no segredo dos deuses. Mas porque ela faria isso? Estar grávida e não nos dizer logo, para guardar segredo? Seria porque lhe estávamos sempre a dizer para ter cuidado com isso, que não devia, etc.? Mas a vida era dela e só ela tinha o direito de decidir o que quisesse. E nós, como ela mesma dizia, éramos uma família para ela. Então porquê esta atitude?

Naquele dia não tive oportunidade de lhe falar no assunto e porque fiquei pensativa. Porém, no dia seguinte, assim que a apanhei a jeito, fui directa ao ponto e fiz-lhe a pergunta directamente e sem rodeios. Ainda achava que ela ia dizer que não, que disparate, mas, para meu grande espanto, ela fez aquele arzinho de sonsa, de quem quer passar despercebida, mas como não tinha como esconder, sorrindo de mansinho, confirmou que sim, que estava grávida.

Fiquei passada. Como podia ela ter entrado por aquele caminho, se a outra filha ainda nem estava com ela. Para mim ela estava a pô-la completamente de parte. Fora da vida dela. Com esta gravidez, ela estava a repor na vida dela, a filha que estava distante. Mas porquê? O certo era trazê-la para junto dela e cuidar dela como uma mãe deve fazer. Agora com uma outra criança nova na vida dela, a outra corria o risco de ficar completamente de parte. Tudo bem, ela tinha o direito de decidir o que entendesse. E mais uma vez lá entrámos nós a ajudá-la em tudo o que foi possível, como sempre e a que ela já estava mais do que habituada.

A barriga ia crescendo e o dia certo chegou. Uma noite, por volta da meia noite, já eu tinha começado a dormir, o meu telemóvel tocou. Fiquei assustada, vi que era ela, mas atendi. Era para me dizer que estava com dores de parto e que tinha que ir imediatamente para o hospital. Eu estava meia ensonada e tinha sido apanhada completamente desprevenida. Ainda assim, percebi que ela estava a contar comigo para isso. Mas porquê? Ela tinha o homem ali do lado dela! Estava na hora de ir para o hospital? Pois, é claro, aquele dia havia de chegar, mas não foi comigo que ela fez o filho! Nem sequer tinha seguido os nossos conselhos! Contra tudo e todos, ela fez exactamente o que quis! Arranjou um homem e fez um filho. E eu é que tinha que ir levá-la para o hospital? Ele que fosse com ela, que não era senão o dever dele! Ah, porque ele tinha que se levantar cedo para ir trabalhar. Eu nem queria acreditar. E eu, não?! Ah, porque não tinham carro! E toda a gente tem carro? Então porque não pensaram em tudo isso? É só fazer filhos?!

Não. Sem pena nenhuma, disse-lhe que chamasse uma ambulância e fosse para o hospital. Uns pensam em tudo, até de mais. Outros não pensam em nada. E quando estão habituados a terem a vida facilitada, abusam, simplesmente. Eu gostava muito dela, mas tudo tem limites. E lá foram para o hospital resolver o problema.

Enfim, a menina nasceu, veio para casa, passou o tempo da licença de parto e Juliana não foi trabalhar. Passava a vida na sala, a ver televisão, com a filha do lado. Os meses continuaram a passar e nada de Juliana falar sequer em trabalho. Entre nós, perguntávamo-nos o que estaria a acontecer, mas ninguém sabia responder, porque ela não abria a boca acerca da sua vida. Fazia-se desentendida. Passou um ano e não me contive. Perguntei-lhe de que estava à espera para retomar a sua vida habitual. Muito a custo, respondeu que não podia ir trabalhar porque tinha que cuidar da filha. O pai que trabalhasse. Não sem espanto, logo percebi que aquela criança não tinha sido nenhum descuido, mas sim premeditada, pois era uma desculpa para ficar em casa a ser sustentada pelo pai da criança. E as outras mulheres, como fazem? Achas que ficam em casa, perguntei. Achas que alguém se pode dar ao luxo de ficar na situação em que te estás a colocar e deixar a responsabilidade de sustentar tudo ao pai da tua filha, que tem um emprego em que ganha uma miséria? Ouviu tudo o que lhe disse, mas encolheu os ombros, não querendo assumir responsabilidades e mais, mostrando que estava na posição que queria de não se ralar com nada.

Falámos umas com as outras e todas nos questionámos com o comportamento irresponsável que ela estava a ter. Era a vida dela, mas não era assim que ia conseguir ter uma vida melhor, nem pensar. Além de que o relacionamento dela com o pai da filha não estava a correr muito bem, conforme era de se esperar.

A pequenina começou a crescer, Juliana começou a ir trabalhar, mas a vida não estava a correr como ela queria, porque andava sempre muito cansada e as tarefas domésticas ficavam todas para trás. Aquela casa era uma verdadeira babilónia. Ele começou a ver o comportamento dela e também foi pelo mesmo caminho. Chegava a casa a meio de tarde, ia para o quarto e deitava-se. As coisas estavam feias de verdade.

Foi então que Juliana se lembrou que tinha uma filha já crescida em Cabo Verde e de repente deu-lhe umas saudades muito, muito grandes. Tão grandes que mandou buscar a filha para ficar com ela. Finalmente! Mas o que este finalmente tinha era uma outra intenção. Pois é. Susana veio de Cabo Verde, uma garota lindíssima, uma querida, só que a sua vinda tinha outra intenção além da mãe matar as saudades da filha, como todas acreditávamos que sim. É que Susana passou a ser a cuidadora da irmã e não só. A responsável pela mesma. Era ela que a levava e trazia da escola. Era ela que tomava conta dela. Era ela que arrumava a casa, limpava e cozinhava, para quando a mãe chegasse a casa se poder sentar no sofá de braços cruzados a dormir ou a ver televisão. Toda a responsabilidade foi passada para a filha mais velha. Até o pai da pequenina fazia o mesmo. Aquilo era inadmissível!

Contudo, quem ouvisse Juliana falar, a conversa era sempre a mesma, que queria muito dar uma vida diferente às filhas. Perguntávamo-nos nós, como é que isso iria acontecer? Nunca, jamais. Não sei se ela achava que a vida boa lhe ia cair do céu! Para termos o que queremos temos que investir e trabalhar nisso, caso contrário as coisas não têm como se realizar. De boas intenções está o mundo cheio…

Quantas vezes a alertei para o facto de incutir responsabilidades na filha mais velha, que não podia, não devia!? Quantas vezes lhe falei na necessidade da garota também ter a sua vida própria, de poder sair com as amiguinhas e não ser sacrificada com os trabalhos que a mãe não queria fazer? Ah, porque já chego a casa muito cansada… então porque é que fazem filhos?!...

Certa vez, estávamos a conversar no quarto dela, sentadas à beira da cama e comecei a pensar… a pensar… e disse-lhe que, no lugar dela, trocaria os quartos, ou seja, passava o quarto dela para o das meninas e as meninas para o quarto dela. Era só uma sugestão, conforme eu faria no caso dela, com toda a certeza. O quarto dela era maior, tinha uma janela e uma bela varanda, onde ela poderia pôr uma mesinha com cadeiras e uma espreguiçadeira e as coleguinhas seriam mais bem recebidas, já era uma adolescente e tinha necessidade de conviver, por isso aquele quarto adaptava-se melhor às filhas, até para a pequenina, que teria uma área para as suas brincadeiras. Já ela e o pai da pequenina, podiam perfeitamente ficar no outro quarto, porque não precisavam da varanda e um espaço ligeiramente mais pequeno era mais do que suficiente para eles.

Para mim era mais do que óbvio. Uma mãe quer sempre o melhor para os seus filhos!? Eu também sou mãe e avó e como não o melhor para as minhas crianças?! Aliás, para todas as crianças do mundo inteiro?! Contudo, para minha grande surpresa, Juliana, sempre com aquele sorriso esvanecido, meio amarelado, e que lhe era muito característico, como quem não está muito interessada na conversa, olhou para mim e deixando-me completamente sem chão, respondeu, sem qualquer hesitação: “Não. Eu gosto muito do meu quarto. Isso não!”


sexta-feira, 5 de julho de 2024

Lilly - 77

 

Faz agora um ano eu estava de regresso de uma longa viagem ao Bangladesh, onde estive dezoito dias. Uma viagem longa, com dois voos e muitas esperas nos aeroportos. Mas fui e vim e tudo correu bem. Tive uns probleminhas relacionados com a alimentação, por causa da sobrecarga de especiarias que eles usam e da insistência em se comer de tudo o que fazem e oferecem, tive até que ir ao Hospital onde fiquei internada uma noite com soro, mas a coisa foi pacífica.

Esta viagem fez-me voltar atrás no tempo, relembrando-me situações idênticas ou muito semelhantes. Antes de ir, fui bastante avisada daquilo que achava que nunca aconteceria, porque, na minha ótica, não tinha a menor razão de ser. Mas estava enganada. Eles sim, estavam certos. Diziam que viria gente, muita gente para me ver. E eu pensava, porquê(?). Achava que não havia nenhuma razão para isso. Contudo, reafirmo, eles estavam certos. Era a família, os amigos, os vizinhos… uma coisa inexplicável.

Ao contrário da Índia, o Bangladesh não tem turistas. A Índia vive infestada de turistas por todo o lado. O Bangladesh não. Deve haver, como por todo o mundo. Mas não é comum. E nos “sítios”, isto é, nos lugarejos fora das cidades, ainda muito menos. Aí, as pessoas nascem e morrem sem nunca terem visto um desigual a si mesmos. Aparecer num sítio desses é o mesmo que aparecer para nós um extraterrestre. Foi isso que me aconteceu. As pessoas acorriam em massa para ver uma mulher de pele branca, que nunca tinham visto ao vivo. Talvez na televisão, mas jamais na sua frente. Senti-me uma verdadeira estranha, uma intrusa, uma peça isolada de tudo o que me rodeava.

Não foi fácil lidar com isto. Sobretudo as mulheres, elas queriam tocar em mim, olhando-me de cima a baixo, na cor dos olhos, do cabelo, no tom de pele por todo o corpo… diziam que eu era muito bonita e eu não entendia porquê. Referiam que as minhas feições eram muito finas e por isso bonitas. Mas eu não conseguia entender. Por mim, eu achava-os bem interessantes, a começar pelo tom de pele bem morena. Eles, pelo menos, não precisavam de se castigar à torreira do sol para se bronzearem, porque já nasceram bronzeados. Não precisavam de gastar dinheiro com bronzeamentos artificiais, como um pouco por todo o mundo se faz hoje em dia. Eles não precisavam de injetar botox, ou seja lá o que for, para terem os lábios mais volumosos, porque os têm de seu natural. E tudo está ao contrário. Todos querem ser o que não são.

Em consequência deste padrão, apesar dos meus setenta anos, todos queriam estar comigo e levar-me aqui, levar-me ali, enfim… o caso é que foi muito interessante. Até no hospital, não sei quantas pessoas, homens e mulheres, consegui reunir à minha volta. Eles vinham saber se precisava de alguma coisa, se estava tudo bem e queriam saber coisas a meu respeito, bajulando-me sem razão aparente e tratando-me como uma verdadeira pedra preciosa, sempre fazendo questão de evidenciar a minha especial beleza, o que para mim era inconcebível, deixando-me sem reacção.

Quando saía do vilarejo e a multidão começava a aumentar - porque aquilo é uma imensa população, gente e gente que nunca mais acaba – e como o trânsito é muito, mas muito lento, por causa dos tucs, dos rickshaws, mas também por causa das estradas alagadas pelas monções, pela quantidade de carros, etc… o facto é que é tudo muito lento, muito devagar, muito parado e as pessoas olhavam para mim pensando, talvez, que tinham visto errado, por isso voltavam a olhar fixamente. Para os conseguir desviar e tranquilizar eu acenava com a cabeça em pose de cumprimento. Se fossem homens com os kufis na cabeça, como os mais velhos usam, além de cumprimentar com a cabeça e o olhar, fazia a postura das mãos unidas ao peito. O facto é que eles apreciavam esse gesto, reagindo muito positivamente, porque não só devolviam, como o seu ar se tornava muito mais leve, sinal de que me aceitavam e isso era muito bom.

Às mulheres eu cumprimentava com um sorriso ou também com as mãos unidas em frente do peito, conforme fosse. As crianças eu acenava-lhes com a mão, sorrindo, e elas ficavam muito felizes. Quando voltava ao sítio, toda a gente começava a sair de casa para virem na minha direção, rodeando-me, envaidecendo-me e admirando-me simplesmente. Era uma coisa incompreensível e inimaginável!

E nunca ninguém me perturbou pelo facto de eu não me vestir de acordo com os princípios deles. Eu continuava a usar calças curtas e blusas sem manga, o que para eles é impensável. O facto é que sempre me respeitaram como sou, da mesma forma que os respeito a eles e a quem quer que seja, por que motivo for. Decididamente, sou uma pessoa crente, mas sem religião. Todavia, respeito incondicionalmente cada um, com quaisquer que sejam as suas ideias, convicções, ideologias, etc. Cada um tem o direito de ser como quer ser. Nesta filosofia de vida sinto-me no direito de estar incluída.

No entanto, se fosse muito importante, eu seria capaz, enquanto lá estive, de usar as roupas delas sem problema nenhum, caso fosse muito, muito importante. Eu o faria sem me sentir obrigada a isso. Faria porque queria. Por uma questão de respeito. Só isso. Felizmente que essa questão não se pôs e assim eu me senti completamente em liberdade, tendo sido sempre eu, fiel a mim mesma, fazendo tudo o que me apeteceu e achei correto.

Posso dizer com toda a verdade que a minha empatia com eles foi excecional, não tendo havido nunca nada de estranho, nem o menor desconforto perante as diferenças, que são imensas, garantidamente. A minha passagem pelo Bangladesh foi uma coisa memorável que, enquanto viver, jamais esquecerei. Porque foi lindo, revestindo-se de uma beleza toda especial.

Isto fez-me andar para trás no tempo, recuando uns trinta e tal anos atrás, quando estive de férias na Grécia. Não tem comparação, porque a Grécia tem muito turismo, turismo que nunca mais acaba. Mas a situação tem algo de semelhante, muito embora aí, houvesse uma razão ou motivo especial. Eu era a mulher o Riaz, um paquistanês com quem tive um relacionamento de sete anos. Ele foi para lá trabalhar e como as saudades eram muitas, fui lá de férias duas semanas.

A Grécia tem muitos turistas, de todas as nacionalidades. O Verão é quente, com uma água de mar maravilhosa, acessível na questão de preços, por isso muita gente aproveita. No meu caso, eu fui lá por um motivo: estar com o Riaz. Mas também conhecer a Grécia, claro, no que não me arrependi. E fui mais que bem recebida. Sentia-me uma rainha. Puseram à minha disposição uma bela vivenda, com um jardim maravilhoso, à beira da estrada e do outro lado o mar, pronto para me receber a qualquer hora, especialmente quando o calor apertava.

Na Grécia tive que ir com o Riaz a muitas casas de pessoas com quem ele trabalhava e que o conheciam bem, porque queriam conhecer a mulher Portugália (portuguesa) do Riaz. Era uma coisa do outro mundo. Todos os dias a senhora da casa ia lá para regar o jardim e ver se eu precisava de alguma coisa. Os vizinhos iam levar frutas, legumes, tudo muito bom, muito fresco. Havia um hotel ali mesmo ao lado e estavam sempre a convidar-me para ir lá. Aonde quer que eu fosse, toda a gente me olhava com olhos de ver, de admirar. Perguntavam quantos vestidos eu tinha, etc… era muito estranho. E quando fui com o Riaz à advogada que tratava da papelada dele, ele entrou no gabinete dela e eu fiquei sentada no sofá da sala de espera, onde o ângulo de visão dava para ver a secretária dela. Espantosamente, ela desvalorizou completamente o assunto dele, para vir cá fora falar comigo. Dirigindo-se a mim, parecia que se tratava de outra pessoa que não eu, pela maneira superior e altiva com que ela me cumprimentou e me cortejou. Eu levava um vestido comprido, como todos os meus vestidos do dia a dia e um chapéu, como é muito normal em mim. Não sei se ela achou isso uma coisa especial, o facto é que estava encantada com a minha humilde presença, tendo feito uma longa conversa, onde me contava que já tinha estado em Portugal e tinha gostado muito, fazendo-me sentir uma pessoa muito importante, imagine-se!? Eu não conseguia entender.

Realmente, na Grécia, eu fui uma estrela na terra. Sentia-me uma deusa. Não tenho palavras para descrever tudo o que me aconteceu, nem todas as situações por que passei. Quando penso que até as crianças, numa noite de calor, enquanto comia um marisco dos deuses, dançaram o Zorba para mim, não consigo deixar de ficar emocionada. Foi lindo! Parecia que os deuses conspiravam para que eu me sentisse num verdadeiro paraíso.

Por outro lado, recuando ainda mais no tempo e talvez mais outros tantos anos, penso que quando nasci, em 1952, no antigo estado da Índia Portuguesa, eu era considerada uma criança especial. Segundo os meus pais faziam questão de me falar e “lembrar”, as crianças indianas rodeavam-me e adoravam-me, dizendo que eu era muito bonita, muito linda. Hoje, analisando todas estas situações, acredito que há em mim qualquer coisa como uma espécie de empatia por povos bem diferentes daquele que represento, qualquer coisa que me atrai e os atrai a eles também, qualquer coisa que nos liga e que eu entendo como uma coisa intrínseca ao meu eu mais profundo, que não sei de onde vem, mas que faz parte de mim, sem dúvida. Diria mesmo que é uma coisa espiritual, uma coisa inerente à alma humana e, portanto, impossível de decifrar.

Voltando ao Bangladesh, se fosse outra mulher branca que não eu, teria tido a mesma recepção? Talvez, mas não tanto. A questão é que, se eu os fiz despertar, por outro lado, eles fizeram com que eu me abrisse para eles a cem por cento e isso é recíproco. Só recebemos quando damos e nem todos estão receptivos a essa troca.

Na Grécia, com tantas mulheres bonitas de todas as nacionalidades, eu parecia que tinha sido escolhida de entre todas. Foi só a situação em si? Não. Eu estava aberta à receptividade, admirando todas as gentilezas que me proporcionavam, o que sem dúvida aumentou a fasquia de ambas as partes.

Na Índia, se eu tivesse sido uma criança chata e aborrecida, as crianças indianas teriam gostado de mim só por eu ser branquinha?! As crianças não são todas iguais. Há crianças comunicativas, outras nem tanto. É a alma de cada um que define a empatia com os outros, a qualidade de comunicação com o mundo, com o universo holístico.

E apesar de não ter sido registada com um nome indiano, como a minha mãe tanto queria, a vida logo se encarregou de resolver o assunto. O meu nome de batismo é Maria Luísa, porque quando o meu pai me foi registar, simplesmente se esqueceu do nome que a minha mãe queria e porque naquela altura não havia telemóveis, lembrou-se de me pôr o mesmo nome de uma sobrinha que tinha nascido recentemente e a minha mãe não teve outro remédio senão aceitar.

Mas logo ficou no esquecimento, porque as crianças me achavam tão bonita como uma flor que lhes é particularmente querida e que tem o nome de Lilly. Todas me tratavam por Lilly e todas me queriam pegar ao colo e brincar comigo, sem parar de comentar como eu era linda. Imagine-se!? Mas isso teve tanta repercussão que mudou completamente o meu nome de Maria Luisa, que rapidamente foi esquecido pelos meus pais e por toda a família, para ser única e exclusivamente até hoje: Lilly.