Sim. Meu pai
tinha três casas quando faleceu. Talvez porque tinha três filhas. Porém, as
três casas ficaram para a minha meia irmã, a mais nova.
Isto foi algo
que incomodou muita gente, muito mais do que a mim e à minha irmã. Jamais o
questionámos sobre questões de herança. Era como se não tivesse nada. Nem nos
lembrávamos disso. Sempre nos preocupámos bem mais com outras coisas,
nomeadamente, a sua saúde e os seus problemas. E, quanto à herança, estava
claro que a minha madrasta estava por trás de tudo, impondo as suas vontades.
Quando casou com o meu pai, não tinha nada. Ao longo dos anos que viveram
juntos e por ter tido uma filha com ele, sempre fez a cabeça dele, porque só
pensava e queria tudo para a filha dela. Mas não foi só com o marido que ela
teve esse comportamento egoísta e materialista. Fez o mesmo com a irmã, uma
irmã que era solteirona e nunca teve filhos. No entanto, essa sim, tinha muito
dinheiro, porque tinha lojas abertas e tudo o que ganhava era
investido em propriedades. Como não tinha filhos, a minha madrasta conseguiu
fazer com que ela deixasse todos os bens, que não eram poucos, para a sua
querida filha, apesar de haver outros herdeiros, os primos, igualmente seus
sobrinhos e que teriam tanto direito como ela.
Não me admira nada esta atitude da minha madrasta, admira-me sim, a minha irmã nunca ter aberto a boca para defender os primos, do lado da tia, por exemplo, que ela sabia perfeitamente que tinham tantos direitos como ela, ou as irmãs, por parte do pai, que estavam exactamente na mesma posição. O problema é que o dinheiro fala sempre mais alto.
Claro, sei como
era a minha madrasta e sei que ela investia na filha conforme podia para a
manipular, da mesma maneira que fazia com o nosso pai. Do lado da tia, até
posso entender, porque ela e a irmã eram muito chegadas. Não é que,
inicialmente, também não o fossem com o irmão. Mas o irmão casou, teve dois
filhos, também tinha os seus negócios, mas não era tão colado às duas irmãs,
que eram unha e carne uma com a outra, talvez por serem solteironas e não terem
amigos, sendo muito sozinhas. A minha madrasta quando casou já tinha quarenta
anos e a irmã era mais velha. Elas eram muito estranhas. E se o meu pai não
conseguiu o elo de amor com a filha mais nova como conosco, em parte foi por
culpa da minha madrasta. Quando éramos crianças, ainda a minha mãe era viva,
sempre que o meu pai estava em casa, íamos com ele ao parque para brincar. Foi
ele que nos ensinou a andar de trotinete, a andar de bicicleta, o isso era
muito bom. Uma verdadeira felicidade. Era o nosso querido e amado pai. Com a
minha irmã mais nova, isso nunca foi possível, simplesmente porque a minha
madrasta não deixava de jeito nenhum. Ela dizia que era muito feio uma menina
sair sozinha com o pai, imagine-se!
Voltando às
heranças, se a mim e à minha irmã em nada incomodou o facto do nosso pai ter
deixado tudo para a nossa outra irmã, a mais nova, já os primos do lado da mãe
não foram nisso e quando a tia morreu impuseram-se, levando o caso a tribunal para
a justiça fazer o seu trabalho.
Não. Nós jamais
o faríamos. Porque somos parvas e somos isto e aquilo. Não importa. Nós apenas
respeitámos o desejo do meu pai. Isso estava acima de qualquer coisa. Pouco
antes de morrer, ele falou-me desse assunto, e da maneira mais simples possível,
explicou que tinha feito o que fez porque a minha madrasta lhe chateava a
cabeça com esse assunto, mas não só. Ele disse que nós, a minha irmã e eu,
tínhamos capacidade total para enfrentar a vida, o mesmo não acontecendo com a
outra filha, cuja mãe não soube preparar para a vida.
Escutei-o sempre
em silêncio. Deixei-o à vontade para dizer o que precisava de ser dito. Jamais
me passou pela cabeça contrariá-lo ou apontar-lhe o dedo, dizendo que não era
justo, ou que não queria saber de nós, etc., etc., etc., pois o caminho não era
esse. Se fosse com outras pessoas, talvez. Mas era o meu pai e eu. E o assunto
ali não eram as heranças, ou o raio que o partissem… o assunto ali era outro: o
amor. E disso ele nem precisava de falar.
Eu sempre fui a
filha mais ligada a ele. Eu conhecia como ninguém, além da minha mãe, o pai que
tinha, o ser humano especial que ele era. Tanto, que nem consigo ter palavras
para o expressar. É impossível. Ele era uma pessoa única, um ser humano numa
dimensão muito para além desta que conhecemos, onde tudo o que importa é o
dinheiro. E até hoje podem continuar a achar-me uma idiota, uma tola, uma
ingénua… o que quiserem, pois nada disso me afecta. Quando falei com a minha
irmã e lhe contei esta minha conversa com ele e a sua intenção quanto à
herança, fui bem clara na minha decisão de respeitar cem por cento a decisão
dele e ponto final, no que ela concordou plenamente. Portanto, o assunto estava
resolvido por natureza, o que foi muito bom.
Eu sabia a
distância a que a minha meia irmã estava de nós em relação ao amor do meu pai
pelas filhas do primeiro casamento, com a mulher que ele amou para a vida toda,
sem a menor chance de ser destruído. Ele voltou a casar anos mais tarde, mas
nada era o que era. Não havia a menor comparação possível. A minha mãe morreu
quando eu tinha dez anos. Meu pai, militar de carreira, para sobreviver ao duro
golpe que a vida lhe tinha dado, foi para Angola, a guerra de Angola… para a
frente de batalha, onde passou grande parte da sua vida, nos anos que se
seguiram. Nós ficámos com os avós, sendo que a minha irmã foi para um colégio
interno. Não havia telemóveis, nem meio de nos comunicarmos como agora. A única
maneira de saber dele era por meio dos aerogramas, um por semana, num dia
certo, em que a minha ansiedade era mais que muita para a chegada do correio.
Quando o aerograma caía na caixa eu tirava-o como se fosse uma pedra preciosa.
E quando pegava nele e o lia, independentemente do que estava escrito, eu só
sabia de uma coisa. Só uma coisa era certa. Que uma semana antes, o tempo que
demorava para chegar, ele estava vivo. No momento em que o recebia, quem podia
garantir? Tinha que esperar os próximos oito dias, para ficar a saber. Não era
fácil. Tudo podia acontecer, a qualquer hora, a qualquer momento.
Ele sempre se preocupou conosco e com as nossas necessidades. Casei-me tive um filho, divorciei-me e fui vivendo como pude. A minha irmã casou muito nova, foi para o Brasil, onde os filhos nasceram e vinte anos depois regressou, também divorciada. Quase todos os dias falávamos com ele e não raro o mês ele fazia um depósito na minha conta, mesmo quando eu dizia que não precisava. Era uma importância pouca, mas significativa para mim. O mesmo fazia com a minha irmã.
Nos últimos anos da sua vida orientei-o como pude e como devia, em relação aos médicos e à sua saúde. Acompanhava-o e estava a par de tudo. Não podia esperar isso de mais ninguém. Mas fiz tudo o que foi preciso e possível e com todo o amor que tinha por ele. Estivemos juntos até ao fim e enfrentei todos os seus receios e necessidades. Desabafou em paz tudo o que precisava de dizer. O amor que vinha à superfície era de uma imensa profundidade. Indescritível. Alguma vez lhe falei das casas ou de questões de dinheiro, herança!? Jamais. Havia uma coisa em jogo, muito, mas muito mais importante do que o dinheiro. Fui uma filha muito amada e isso estava acima de qualquer outra coisa. O amor que nos unia era tão grande, que não havia dinheiro que se sobrepusesse. E isso era realmente a única coisa que me importava de verdade. Infelizmente, a minha meia irmã ficou com o que foi possível: as casas. Sim.