Juliana tinha
duas filhas que ela amava muito. A mais velha tinha quinze anos quando a mais
pequena nasceu, de um segundo casamento. Juliana era Cabo Verdiana e veio para
Portugal à procura de uma vida melhor, como tantos outros o fazem, mas por esta
altura ainda só tinha uma filha, que ficara em Cabo Verde com a tia, irmã de
Juliana, que também tinha uma menina da mesma idade.
Sempre que lhe
perguntávamos pela filha, dizia que estava bem, com a tia, em Cabo Verde.
Falava muito com ela pelo telemóvel e de vez em quando mandava-lhe presentes. Frequentemente
expressava a vontade de ter uma vida melhor para ela e para a filha. Arranjava
trabalho, mas todos os que arranjava não duravam muito, porque chegava sempre
uma altura em que dizia estar farta. E o que vinha a seguir nunca era melhor,
do ponto de vista remuneratório, mas em contrapartida, segundo ela, mais suave,
menos cansativo.
Conseguiu
arrendar um apartamento no prédio onde vivo, por uma quantia irrisória
comparada com os preços praticados no mercado e ainda alugava um quarto para
ser ainda mais fácil. Como era uma rapariga muito agradável, simpática e
afável, eu e outras vizinhas minhas amigas, reunimos forças para lhe
arranjarmos mobílias e outras coisas para a casa, porque não tinha
absolutamente nada, o que lhe deu muito jeito, tendo agradecido.
Convivia muito
connosco, pelo que dizia sempre, que tinha sido muito bem recebida no prédio,
porque estávamos sempre a ajudá-la em tudo o que podíamos. De facto, muito nos mobilizámos,
facilitando-lhe todo o tipo de coisas, como podíamos.
O tempo foi
passando e a certa altura Juliana conheceu um rapaz da terra dela, que também
tinha vindo para cá à procura de uma vida melhor. Os dois começaram a namorar e
ele veio viver para casa dela. Também tinha uma filha da idade da filha de
Juliana, que também não estava com ele. Era a mesma situação de Juliana.
As amigas
vizinhas falavam com ela e diziam-lhe abertamente que tivesse cuidado para não
engravidar, uma vez que já tinha uma filha crescida e longe dela e agora que
estava num novo relacionamento, deveria pensar em trazer a filha para junto
dela. Vezes sem conta lhe falámos no assunto, que deveria ter o cuidado de não
engravidar, porque não era bom ter filhos à toa. Ela ouvia e ria muito, quando
tocávamos no assunto. Nós apenas queríamos o bem dela, porque ela própria dizia
que tinha vindo à procura duma vida melhor. Portanto, uma coisa de cada vez.
O facto é que um
dia em que estávamos todas juntas, uma das minhas vizinhas e amiga, me chamou a
atenção para a barriga dela. Fiquei sem perceber. Se ela estivesse grávida, com
toda a certeza eu seria a primeira a saber, porque eu era a mais chegada a ela
e ela confiava muito em mim para tudo. Isto era o que ela dava a entender e me
fazia acreditar.
Continuando com
a conversa da minha amiga, não percebi muito bem o que ela estava insinuando,
porque jamais me passou pela cabeça que ela estaria grávida. Grávida!?
Impossível! Quando lhe falávamos nisso ela ria, mas concordava connosco que
havia muita coisa a fazer, se realmente estava empenhada em ter uma vida
diferente para melhor. Contudo, a minha amiga e vizinha foi perentória,
afirmando que ela só podia estar grávida, pela barriga que tinha. Continuei sem
acreditar, dizendo-lhe que não tinha reparado e talvez estivesse um pouco mais
gordinha. Ela riu, afirmando categoricamente que ela estava grávida, sim.
Perguntei-lhe
então se ela lhe tinha dito alguma coisa e ela logo respondeu um não
prolongado, o que significava que nem pensar. De facto, ninguém do grupo sabia,
o que significava que estava tudo no segredo dos deuses. Mas porque ela faria
isso? Estar grávida e não nos dizer logo, para guardar segredo? Seria porque
lhe estávamos sempre a dizer para ter cuidado com isso, que não devia, etc.?
Mas a vida era dela e só ela tinha o direito de decidir o que quisesse. E nós,
como ela mesma dizia, éramos uma família para ela. Então porquê esta atitude?
Naquele dia não
tive oportunidade de lhe falar no assunto e porque fiquei pensativa. Porém, no
dia seguinte, assim que a apanhei a jeito, fui directa ao ponto e fiz-lhe a
pergunta directamente e sem rodeios. Ainda achava que ela ia dizer que não, que
disparate, mas, para meu grande espanto, ela fez aquele arzinho de sonsa, de
quem quer passar despercebida, mas como não tinha como esconder, sorrindo de
mansinho, confirmou que sim, que estava grávida.
Fiquei passada.
Como podia ela ter entrado por aquele caminho, se a outra filha ainda nem
estava com ela. Para mim ela estava a pô-la completamente de parte. Fora da
vida dela. Com esta gravidez, ela estava a repor na vida dela, a filha que
estava distante. Mas porquê? O certo era trazê-la para junto dela e cuidar dela
como uma mãe deve fazer. Agora com uma outra criança nova na vida dela, a outra
corria o risco de ficar completamente de parte. Tudo bem, ela tinha o direito
de decidir o que entendesse. E mais uma vez lá entrámos nós a ajudá-la em tudo
o que foi possível, como sempre e a que ela já estava mais do que habituada.
A barriga ia
crescendo e o dia certo chegou. Uma noite, por volta da meia noite, já eu tinha
começado a dormir, o meu telemóvel tocou. Fiquei assustada, vi que era ela, mas
atendi. Era para me dizer que estava com dores de parto e que tinha que ir
imediatamente para o hospital. Eu estava meia ensonada e tinha sido apanhada
completamente desprevenida. Ainda assim, percebi que ela estava a contar comigo
para isso. Mas porquê? Ela tinha o homem ali do lado dela! Estava na hora de ir
para o hospital? Pois, é claro, aquele dia havia de chegar, mas não foi comigo
que ela fez o filho! Nem sequer tinha seguido os nossos conselhos! Contra tudo
e todos, ela fez exactamente o que quis! Arranjou um homem e fez um filho. E eu
é que tinha que ir levá-la para o hospital? Ele que fosse com ela, que não era
senão o dever dele! Ah, porque ele tinha que se levantar cedo para ir trabalhar.
Eu nem queria acreditar. E eu, não?! Ah, porque não tinham carro! E toda a
gente tem carro? Então porque não pensaram em tudo isso? É só fazer filhos?!
Não. Sem pena
nenhuma, disse-lhe que chamasse uma ambulância e fosse para o hospital. Uns
pensam em tudo, até de mais. Outros não pensam em nada. E quando estão
habituados a terem a vida facilitada, abusam, simplesmente. Eu gostava muito
dela, mas tudo tem limites. E lá foram para o hospital resolver o problema.
Enfim, a menina
nasceu, veio para casa, passou o tempo da licença de parto e Juliana não foi
trabalhar. Passava a vida na sala, a ver televisão, com a filha do lado. Os
meses continuaram a passar e nada de Juliana falar sequer em trabalho. Entre
nós, perguntávamo-nos o que estaria a acontecer, mas ninguém sabia responder,
porque ela não abria a boca acerca da sua vida. Fazia-se desentendida. Passou
um ano e não me contive. Perguntei-lhe de que estava à espera para retomar a
sua vida habitual. Muito a custo, respondeu que não podia ir trabalhar porque
tinha que cuidar da filha. O pai que trabalhasse. Não sem espanto, logo percebi
que aquela criança não tinha sido nenhum descuido, mas sim premeditada, pois
era uma desculpa para ficar em casa a ser sustentada pelo pai da criança. E as
outras mulheres, como fazem? Achas que ficam em casa, perguntei. Achas que
alguém se pode dar ao luxo de ficar na situação em que te estás a colocar e
deixar a responsabilidade de sustentar tudo ao pai da tua filha, que tem um
emprego em que ganha uma miséria? Ouviu tudo o que lhe disse, mas encolheu os
ombros, não querendo assumir responsabilidades e mais, mostrando que estava na
posição que queria de não se ralar com nada.
Falámos umas com
as outras e todas nos questionámos com o comportamento irresponsável que ela estava
a ter. Era a vida dela, mas não era assim que ia conseguir ter uma vida melhor,
nem pensar. Além de que o relacionamento dela com o pai da filha não estava a
correr muito bem, conforme era de se esperar.
A pequenina
começou a crescer, Juliana começou a ir trabalhar, mas a vida não estava a
correr como ela queria, porque andava sempre muito cansada e as tarefas
domésticas ficavam todas para trás. Aquela casa era uma verdadeira babilónia.
Ele começou a ver o comportamento dela e também foi pelo mesmo caminho. Chegava
a casa a meio de tarde, ia para o quarto e deitava-se. As coisas estavam feias
de verdade.
Foi então que
Juliana se lembrou que tinha uma filha já crescida em Cabo Verde e de repente
deu-lhe umas saudades muito, muito grandes. Tão grandes que mandou buscar a
filha para ficar com ela. Finalmente! Mas o que este finalmente tinha era uma
outra intenção. Pois é. Susana veio de Cabo Verde, uma garota lindíssima, uma
querida, só que a sua vinda tinha outra intenção além da mãe matar as saudades
da filha, como todas acreditávamos que sim. É que Susana passou a ser a
cuidadora da irmã e não só. A responsável pela mesma. Era ela que a levava e
trazia da escola. Era ela que tomava conta dela. Era ela que arrumava a casa,
limpava e cozinhava, para quando a mãe chegasse a casa se poder sentar no sofá
de braços cruzados a dormir ou a ver televisão. Toda a responsabilidade foi
passada para a filha mais velha. Até o pai da pequenina fazia o mesmo. Aquilo
era inadmissível!
Contudo, quem
ouvisse Juliana falar, a conversa era sempre a mesma, que queria muito dar uma
vida diferente às filhas. Perguntávamo-nos nós, como é que isso iria acontecer?
Nunca, jamais. Não sei se ela achava que a vida boa lhe ia cair do céu! Para
termos o que queremos temos que investir e trabalhar nisso, caso contrário as
coisas não têm como se realizar. De boas intenções está o mundo cheio…
Quantas vezes a
alertei para o facto de incutir responsabilidades na filha mais velha, que não
podia, não devia!? Quantas vezes lhe falei na necessidade da garota também ter
a sua vida própria, de poder sair com as amiguinhas e não ser sacrificada com
os trabalhos que a mãe não queria fazer? Ah, porque já chego a casa muito
cansada… então porque é que fazem filhos?!...
Certa vez,
estávamos a conversar no quarto dela, sentadas à beira da cama e comecei a
pensar… a pensar… e disse-lhe que, no lugar dela, trocaria os quartos, ou seja,
passava o quarto dela para o das meninas e as meninas para o quarto dela. Era
só uma sugestão, conforme eu faria no caso dela, com toda a certeza. O quarto
dela era maior, tinha uma janela e uma bela varanda, onde ela poderia pôr uma
mesinha com cadeiras e uma espreguiçadeira e as coleguinhas seriam mais bem
recebidas, já era uma adolescente e tinha necessidade de conviver, por isso
aquele quarto adaptava-se melhor às filhas, até para a pequenina, que teria uma
área para as suas brincadeiras. Já ela e o pai da pequenina, podiam
perfeitamente ficar no outro quarto, porque não precisavam da varanda e um
espaço ligeiramente mais pequeno era mais do que suficiente para eles.
Para mim era
mais do que óbvio. Uma mãe quer sempre o melhor para os seus filhos!? Eu também
sou mãe e avó e como não o melhor para as minhas crianças?! Aliás, para todas
as crianças do mundo inteiro?! Contudo, para minha grande surpresa, Juliana,
sempre com aquele sorriso esvanecido, meio amarelado, e que lhe era muito
característico, como quem não está muito interessada na conversa, olhou para
mim e deixando-me completamente sem chão, respondeu, sem qualquer hesitação:
“Não. Eu gosto muito do meu quarto. Isso não!”
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