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terça-feira, 29 de outubro de 2024

Ser mãe - 79

 

Juliana tinha duas filhas que ela amava muito. A mais velha tinha quinze anos quando a mais pequena nasceu, de um segundo casamento. Juliana era Cabo Verdiana e veio para Portugal à procura de uma vida melhor, como tantos outros o fazem, mas por esta altura ainda só tinha uma filha, que ficara em Cabo Verde com a tia, irmã de Juliana, que também tinha uma menina da mesma idade.

Sempre que lhe perguntávamos pela filha, dizia que estava bem, com a tia, em Cabo Verde. Falava muito com ela pelo telemóvel e de vez em quando mandava-lhe presentes. Frequentemente expressava a vontade de ter uma vida melhor para ela e para a filha. Arranjava trabalho, mas todos os que arranjava não duravam muito, porque chegava sempre uma altura em que dizia estar farta. E o que vinha a seguir nunca era melhor, do ponto de vista remuneratório, mas em contrapartida, segundo ela, mais suave, menos cansativo.

Conseguiu arrendar um apartamento no prédio onde vivo, por uma quantia irrisória comparada com os preços praticados no mercado e ainda alugava um quarto para ser ainda mais fácil. Como era uma rapariga muito agradável, simpática e afável, eu e outras vizinhas minhas amigas, reunimos forças para lhe arranjarmos mobílias e outras coisas para a casa, porque não tinha absolutamente nada, o que lhe deu muito jeito, tendo agradecido.

Convivia muito connosco, pelo que dizia sempre, que tinha sido muito bem recebida no prédio, porque estávamos sempre a ajudá-la em tudo o que podíamos. De facto, muito nos mobilizámos, facilitando-lhe todo o tipo de coisas, como podíamos.

O tempo foi passando e a certa altura Juliana conheceu um rapaz da terra dela, que também tinha vindo para cá à procura de uma vida melhor. Os dois começaram a namorar e ele veio viver para casa dela. Também tinha uma filha da idade da filha de Juliana, que também não estava com ele. Era a mesma situação de Juliana.

As amigas vizinhas falavam com ela e diziam-lhe abertamente que tivesse cuidado para não engravidar, uma vez que já tinha uma filha crescida e longe dela e agora que estava num novo relacionamento, deveria pensar em trazer a filha para junto dela. Vezes sem conta lhe falámos no assunto, que deveria ter o cuidado de não engravidar, porque não era bom ter filhos à toa. Ela ouvia e ria muito, quando tocávamos no assunto. Nós apenas queríamos o bem dela, porque ela própria dizia que tinha vindo à procura duma vida melhor. Portanto, uma coisa de cada vez.

O facto é que um dia em que estávamos todas juntas, uma das minhas vizinhas e amiga, me chamou a atenção para a barriga dela. Fiquei sem perceber. Se ela estivesse grávida, com toda a certeza eu seria a primeira a saber, porque eu era a mais chegada a ela e ela confiava muito em mim para tudo. Isto era o que ela dava a entender e me fazia acreditar.

Continuando com a conversa da minha amiga, não percebi muito bem o que ela estava insinuando, porque jamais me passou pela cabeça que ela estaria grávida. Grávida!? Impossível! Quando lhe falávamos nisso ela ria, mas concordava connosco que havia muita coisa a fazer, se realmente estava empenhada em ter uma vida diferente para melhor. Contudo, a minha amiga e vizinha foi perentória, afirmando que ela só podia estar grávida, pela barriga que tinha. Continuei sem acreditar, dizendo-lhe que não tinha reparado e talvez estivesse um pouco mais gordinha. Ela riu, afirmando categoricamente que ela estava grávida, sim.

Perguntei-lhe então se ela lhe tinha dito alguma coisa e ela logo respondeu um não prolongado, o que significava que nem pensar. De facto, ninguém do grupo sabia, o que significava que estava tudo no segredo dos deuses. Mas porque ela faria isso? Estar grávida e não nos dizer logo, para guardar segredo? Seria porque lhe estávamos sempre a dizer para ter cuidado com isso, que não devia, etc.? Mas a vida era dela e só ela tinha o direito de decidir o que quisesse. E nós, como ela mesma dizia, éramos uma família para ela. Então porquê esta atitude?

Naquele dia não tive oportunidade de lhe falar no assunto e porque fiquei pensativa. Porém, no dia seguinte, assim que a apanhei a jeito, fui directa ao ponto e fiz-lhe a pergunta directamente e sem rodeios. Ainda achava que ela ia dizer que não, que disparate, mas, para meu grande espanto, ela fez aquele arzinho de sonsa, de quem quer passar despercebida, mas como não tinha como esconder, sorrindo de mansinho, confirmou que sim, que estava grávida.

Fiquei passada. Como podia ela ter entrado por aquele caminho, se a outra filha ainda nem estava com ela. Para mim ela estava a pô-la completamente de parte. Fora da vida dela. Com esta gravidez, ela estava a repor na vida dela, a filha que estava distante. Mas porquê? O certo era trazê-la para junto dela e cuidar dela como uma mãe deve fazer. Agora com uma outra criança nova na vida dela, a outra corria o risco de ficar completamente de parte. Tudo bem, ela tinha o direito de decidir o que entendesse. E mais uma vez lá entrámos nós a ajudá-la em tudo o que foi possível, como sempre e a que ela já estava mais do que habituada.

A barriga ia crescendo e o dia certo chegou. Uma noite, por volta da meia noite, já eu tinha começado a dormir, o meu telemóvel tocou. Fiquei assustada, vi que era ela, mas atendi. Era para me dizer que estava com dores de parto e que tinha que ir imediatamente para o hospital. Eu estava meia ensonada e tinha sido apanhada completamente desprevenida. Ainda assim, percebi que ela estava a contar comigo para isso. Mas porquê? Ela tinha o homem ali do lado dela! Estava na hora de ir para o hospital? Pois, é claro, aquele dia havia de chegar, mas não foi comigo que ela fez o filho! Nem sequer tinha seguido os nossos conselhos! Contra tudo e todos, ela fez exactamente o que quis! Arranjou um homem e fez um filho. E eu é que tinha que ir levá-la para o hospital? Ele que fosse com ela, que não era senão o dever dele! Ah, porque ele tinha que se levantar cedo para ir trabalhar. Eu nem queria acreditar. E eu, não?! Ah, porque não tinham carro! E toda a gente tem carro? Então porque não pensaram em tudo isso? É só fazer filhos?!

Não. Sem pena nenhuma, disse-lhe que chamasse uma ambulância e fosse para o hospital. Uns pensam em tudo, até de mais. Outros não pensam em nada. E quando estão habituados a terem a vida facilitada, abusam, simplesmente. Eu gostava muito dela, mas tudo tem limites. E lá foram para o hospital resolver o problema.

Enfim, a menina nasceu, veio para casa, passou o tempo da licença de parto e Juliana não foi trabalhar. Passava a vida na sala, a ver televisão, com a filha do lado. Os meses continuaram a passar e nada de Juliana falar sequer em trabalho. Entre nós, perguntávamo-nos o que estaria a acontecer, mas ninguém sabia responder, porque ela não abria a boca acerca da sua vida. Fazia-se desentendida. Passou um ano e não me contive. Perguntei-lhe de que estava à espera para retomar a sua vida habitual. Muito a custo, respondeu que não podia ir trabalhar porque tinha que cuidar da filha. O pai que trabalhasse. Não sem espanto, logo percebi que aquela criança não tinha sido nenhum descuido, mas sim premeditada, pois era uma desculpa para ficar em casa a ser sustentada pelo pai da criança. E as outras mulheres, como fazem? Achas que ficam em casa, perguntei. Achas que alguém se pode dar ao luxo de ficar na situação em que te estás a colocar e deixar a responsabilidade de sustentar tudo ao pai da tua filha, que tem um emprego em que ganha uma miséria? Ouviu tudo o que lhe disse, mas encolheu os ombros, não querendo assumir responsabilidades e mais, mostrando que estava na posição que queria de não se ralar com nada.

Falámos umas com as outras e todas nos questionámos com o comportamento irresponsável que ela estava a ter. Era a vida dela, mas não era assim que ia conseguir ter uma vida melhor, nem pensar. Além de que o relacionamento dela com o pai da filha não estava a correr muito bem, conforme era de se esperar.

A pequenina começou a crescer, Juliana começou a ir trabalhar, mas a vida não estava a correr como ela queria, porque andava sempre muito cansada e as tarefas domésticas ficavam todas para trás. Aquela casa era uma verdadeira babilónia. Ele começou a ver o comportamento dela e também foi pelo mesmo caminho. Chegava a casa a meio de tarde, ia para o quarto e deitava-se. As coisas estavam feias de verdade.

Foi então que Juliana se lembrou que tinha uma filha já crescida em Cabo Verde e de repente deu-lhe umas saudades muito, muito grandes. Tão grandes que mandou buscar a filha para ficar com ela. Finalmente! Mas o que este finalmente tinha era uma outra intenção. Pois é. Susana veio de Cabo Verde, uma garota lindíssima, uma querida, só que a sua vinda tinha outra intenção além da mãe matar as saudades da filha, como todas acreditávamos que sim. É que Susana passou a ser a cuidadora da irmã e não só. A responsável pela mesma. Era ela que a levava e trazia da escola. Era ela que tomava conta dela. Era ela que arrumava a casa, limpava e cozinhava, para quando a mãe chegasse a casa se poder sentar no sofá de braços cruzados a dormir ou a ver televisão. Toda a responsabilidade foi passada para a filha mais velha. Até o pai da pequenina fazia o mesmo. Aquilo era inadmissível!

Contudo, quem ouvisse Juliana falar, a conversa era sempre a mesma, que queria muito dar uma vida diferente às filhas. Perguntávamo-nos nós, como é que isso iria acontecer? Nunca, jamais. Não sei se ela achava que a vida boa lhe ia cair do céu! Para termos o que queremos temos que investir e trabalhar nisso, caso contrário as coisas não têm como se realizar. De boas intenções está o mundo cheio…

Quantas vezes a alertei para o facto de incutir responsabilidades na filha mais velha, que não podia, não devia!? Quantas vezes lhe falei na necessidade da garota também ter a sua vida própria, de poder sair com as amiguinhas e não ser sacrificada com os trabalhos que a mãe não queria fazer? Ah, porque já chego a casa muito cansada… então porque é que fazem filhos?!...

Certa vez, estávamos a conversar no quarto dela, sentadas à beira da cama e comecei a pensar… a pensar… e disse-lhe que, no lugar dela, trocaria os quartos, ou seja, passava o quarto dela para o das meninas e as meninas para o quarto dela. Era só uma sugestão, conforme eu faria no caso dela, com toda a certeza. O quarto dela era maior, tinha uma janela e uma bela varanda, onde ela poderia pôr uma mesinha com cadeiras e uma espreguiçadeira e as coleguinhas seriam mais bem recebidas, já era uma adolescente e tinha necessidade de conviver, por isso aquele quarto adaptava-se melhor às filhas, até para a pequenina, que teria uma área para as suas brincadeiras. Já ela e o pai da pequenina, podiam perfeitamente ficar no outro quarto, porque não precisavam da varanda e um espaço ligeiramente mais pequeno era mais do que suficiente para eles.

Para mim era mais do que óbvio. Uma mãe quer sempre o melhor para os seus filhos!? Eu também sou mãe e avó e como não o melhor para as minhas crianças?! Aliás, para todas as crianças do mundo inteiro?! Contudo, para minha grande surpresa, Juliana, sempre com aquele sorriso esvanecido, meio amarelado, e que lhe era muito característico, como quem não está muito interessada na conversa, olhou para mim e deixando-me completamente sem chão, respondeu, sem qualquer hesitação: “Não. Eu gosto muito do meu quarto. Isso não!”

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