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terça-feira, 29 de abril de 2025

A cigana de Vila Real - 83

 

Era mais um fim de semana em Vila Real, onde vamos de vez em quando, para estar com parte da família do Carlos, o irmão que vive lá com a respectiva família. O Carlos viveu a vida toda fora de Portugal, agora que finalmente reside cá, volta e meia vamos estrada fora, visitar os irmãos que vivem em zonas diferentes do norte do país.

Vila Real é uma cidade simpática, relativamente pequena, mas agradável. O irmão e a cunhada são médicos, já reformados e têm uma casa grande na avenida, onde de vez em quando há corridas: corridas de carros, de motos, de bicicleta e em que o trânsito fica completamente cortado para o efeito. É interessante assistir às corridas, confortavelmente sentados naquela bela varanda do primeiro andar ou noutro ponto qualquer da casa ou do jardim.

Algumas vezes o meu passatempo é entreter-me a limpar o jardim, que tem uma vasta e variada abundância de plantas de todo o género. Os gatos vadios também gostam de se chegar e pedinchar, porque sabem que são bem acolhidos, sem perderem a sua liberdade. A porta da cozinha está quase sempre aberta e a Manuela, a cunhada do Carlos, deixa-os entrar e andarem pela casa toda, como sendo da família. Assim, eles entram e saem para fazerem o que lhes apetece sem ninguém os incomodar. Além disso, têm sempre comida de luxo, que a Manuela tem o cuidado de lhes preparar.

Vila Real é uma cidade simpática e apesar de não sairmos muito, há um lugar que sempre visitamos: o mercado. O Carlos gosta de uns produtos muito específicos, difíceis de encontrar e ali é um dos lugares onde consegue encontrar aquilo que quer. Por isso, podemos não ir a mais lado nenhum, mas ao mercado, não falha. E eu adoro mercados, quaisquer que sejam, onde quer que sejam.

Mercados lembram-me a minha infância em África. A minha irmã ainda era bebé e a minha mãe tinha que ficar em casa com ela, por isso mandava sempre um faxina ao mercado e eu ia sempre com ele, porque adorava toda aquela bagunça. Era uma festa para mim. África era um verdadeiro paraíso. Não havia nada ali que fosse monótono. Tudo tinha uma vida muito própria. Havia cor, movimento, muita gente: adultos e crianças. A roupa deles era muito folclórica e divertida. Toda aquela energia em tudo se coadunava com a necessidade da minha alma.

A metrópole era um vazio enorme. Adaptar-me a viver no Portugal metropolitano era difícil. Também ia ao mercado com a minha avó e gostava, mas não era o mesmo. Quando vínhamos embora, parava numa banca de fruta e dizia-me para escolher uma peça de fruta. Eu escolhia sempre a mesma: um tomate bem vermelhinho, o que deixava a minha avó surpreendida e não era pouco, dizendo que eu era uma criança muito estranha. Mas a verdade é que o que eu encontrava mais semelhante às frutas tropicais, era o tomate, que comia com gosto e que a minha avó não entendia mesmo.

Foi difícil aceitarem-me na família. Para além dos meus pais, os únicos que me conheciam, me entendiam e me amavam incondicionalmente, o resto da família só queria modificar-me, para que eu tivesse “termos”, educação e modos de gente civilizada, como convinha. Ninguém percebia que eu tinha tido uma vivência diferente, onde nada era como aqui. Já para os meus pais, eu era perfeita. Estranho!?

Mas continuando no mercado, a minha memória sobre os mercados em África, os primeiros de que me lembro na minha existência desta vida, eram realmente um espectáculo. Uma grande agitação, além de que eu não entendia nada do que falavam. Mas isso também não tinha importância. Quem fazia as compras era o faxina e eu só o seguia. E às vezes nem isso. Ele chegava a um determinado sítio e dizia-me para me sentar num lugar que ele entendia e não sair dali até ele voltar. Provavelmente tinha medo de me perder, julgo eu. Eu cumpria rigorosamente as ordens dele. De qualquer modo, só o estar ali sentada já era muito bom. Eu via passar as pessoas e assistia a todo o movimento de quem vendia e de quem comprava. Ouvia-os a falar. Enfim, era muito gostoso. Depois, as bancadas com todo o seu colorido, e muitos produtos que desconhecia completamente. Era África!

Por isso, como já disse, até hoje, os mercados me encantam e me fascinam. Gosto de inspecionar tudo e bisbilhotar. Posso até nem comprar nada, mas gosto sempre de ver.

Numa das vezes que fomos ao mercado em Vila Real, estava uma cigana à porta. Os três entrámos a conversar, pelo que não dei muita atenção. Ela estava a pedir, embora não com muita insistência e também não tinha muito mau aspecto. Se não estivesse a pedir, talvez passasse despercebida.

Mas entrámos passando por ela, que continuou no mesmo lugar. Andámos pelo mercado, parando aqui, parando ali e parámos num espaço que tinha lojas em toda a volta. Havia um talho e o Carlos foi ver qualquer coisa. A Manuela estava mais perto dele do que eu, que estava ligeiramente afastada. De repente, apercebo-me da presença da cigana que estava lá na entrada, de mão estendida a pedinchar. Perguntei-lhe o que queria. Disse que não tinha dinheiro para comprar comida e levar para a família. Comecei a abrir a mala a ver se tinha algum dinheiro para lhe dar uma esmola, mas ela logo interrompeu, para me dizer que não queria dinheiro, apontando para a montra do talho. Não quer dinheiro, pensei para comigo mesma. Quer que lhe compre carne?! Fazer o quê? Ela estava ali diante de mim, em pessoa, de carne e osso e eu não tinha como fugir. Por outro lado, se ela queria carne. Tinha esse direito! As outras pessoas também estavam a comprar. Ela não era diferente dos outros. Porque não?

Cheguei-me à frente e quando um dos empregados ficou livre pedi-lhe umas pernas de frango, fazendo-lhe sinal que era para a cigana. Mas a cigana logo interrompeu para dizer que queria um frango inteiro. Um frango inteiro, repeti para mim mesma. Mas logo caí na realidade, pensando, porque não? Ela também tem direito a um frango inteiro, porque não? Fiquei na dúvida, se sim, se não, mas não sem sentir um pouco de constrangimento e vergonha de mim mesma, pelo ser humano que me estava a revelar, perante as necessidades dos outros. Não sei se ela estava habituada a pedir assim às pessoas à volta dela, mas naquele momento era eu que estava em cheque. Fazer o quê?

Pois sim, pedi ao homem do talho que visse um frango inteiro para ela e o homem assim o fez, embora me tenha dado a impressão de que parecia contrariado. Mas talvez fosse impressão minha. Ele só tinha que vender, mais nada, fosse a quem fosse. O homem pegou no frango, para logo o colocar na balança, mas, uma vez mais, ela interrompeu, para dizer que não era aquele que queria, deixando-me a mim e ao homem, completamente estupefactos, enquanto ela continuava apontando para os outros. Os outros que estavam ao lado, na verdade, eram maiores e eu nem tinha reparado neles. Mas ela insistia que era daqueles que ela queria, porque eram frangos do campo… e eu fiquei… sinceramente, fiquei aparvalhada, apenas porque nunca tinha assistido a uma cena daquelas. Uma pessoa a pedir com tantas exigências e tantos itens, deixava-me completamente perplexa e verdadeiramente embaraçada, sem saber o que pensar e o que fazer.

Entretanto, o homem do talho, estava de frango na mão, e agora sim, era notório, com cara de contrariado, talvez pela incerteza do que se queria, penso eu. A cigana, impávida e serena, perfeitamente bem, dizia que era aquele que ela queria. Eu, que já estava a perder a paciência, sem o querer admitir, respondi rapidamente que sim, podia dar-lhe um daqueles. Contudo, eu não cabia em mim de espanto comigo mesma. Como é que eu tinha deixado as coisas chegarem àquele ponto? E o homem também estava com uma cara de chateado com aquela cena. Talvez ele já tivesse assistido ao mesmo outras vezes, ou talvez não, não sei. Só para me livrar daquilo, disse que sim, perguntando quanto era. Mas antes que o homem tivesse tempo de falar em custos, para meu grande, grande espanto, eis que a cigana “atrevida”, interrompe, para dizer que queria mais coisas… o chouriço….

Chega, interrompi eu. Aquilo já tinha ultrapassado todos os limites e toda a minha paciência. Ela só podia estar a gozar comigo. Eu nunca tinha assistido a uma coisa daquelas. Tudo aquilo era surreal. O estranho é que o homem parecia ter ficado aliviado quando lhe disse firmemente: desculpe, não quero nada, obrigada.

Quem tudo quer, tudo perde.


quinta-feira, 24 de abril de 2025

O Joaquim - 82

 

Joaquim é um vizinho meu, uma pessoa não muito fácil de lidar. Frequentemente há problemas com ele, na vizinhança, porque ele é um bocado complicado. Também já tive alguns incómodos com a pessoa dele, mas consegui dar a volta ao texto.

Nesta vida, não podemos agradar a todos, é certo. Com efeito, ele é uma pessoa com quem é preciso aprender a lidar, mas nem toda a gente pensa assim. Se estiverem à espera que seja ele a entender os outros, podem esquecer. Ele gosta de falar, fazer ver os seus pontos de vista, mas não dá a mesma oportunidade, sobretudo se não estiverem de acordo com ele. Não é fácil, mas temos que aprender que faz parte do nosso crescimento espiritual, ser mais paciente com aqueles que precisam e facilitarmos as vias de comunicação, quaisquer que elas sejam, em vez de as complicarmos e as tornarmos até impossíveis.

Nesse contexto, há uns anos atrás, na ordem das coisas, ele seria um dos administradores do condomínio, no período de dois anos, conforme está estabelecido. Ele e outro. Houve muitos problemas, porque ninguém queria ser administrador com o Joaquim. E não era preciso perguntar porquê. Toda a gente sabia a razão disso. O Joaquim arranjava muitos problemas, complicava muito as coisas e tudo tinha que ser como ele dizia. Ter uma opinião diferente da dele era complicação na certa.

Foi então que decidi actuar, tomando a difícil decisão que ninguém queria para si, ficar na administração com o Joaquim. Aquilo seria um enorme desafio, mas eu queria, mais do que tudo, mostrar a todos que também parte de nós, de cada um de nós, ir ao encontro dos outros e fazer um esforço de aproximação. Era uma experiência realmente desafiadora, mas para mim, muito importante. Enquanto os outros apenas queriam mostrar a sua incompatibilidade com aquela pessoa, eu gostaria de provar que podiam estar enganados e que, sim, era possível fazer equipa com ele. E assim fiz. Problema resolvido para o condomínio.

Não posso dizer que foi fácil, porque não foi. Estaria a mentir se dissesse o contrário e eu já estava à espera disso. Mas ninguém me obrigou, fui eu que tomei a iniciativa, fui eu que aceitei por minha expressa e consciente vontade. Foram dois anos muito complicados, em que algumas vezes até passei mal. E não foi só por ele. Foi também por outras pessoas. Quando se toma uma decisão em reunião, sobre um determinado assunto que foi a votação, tem que ser cumprido, caso contrário estamos todos a brincar e isso não faz sentido. Se a maioria vota uma coisa, essa coisa tem que ser aceite por quem votou contra. Vivemos em democracia e para tudo é assim a vida. Mas há pessoas que não aceitam e querem que seja como elas dizem, recusando-se a aceitar a voz da maioria. Fica complicado.

Prevendo que coisas desta natureza iriam acontecer, logo no início do nosso mandato, fiz um pacto com o Joaquim, que seria, independentemente do que acontecesse, jamais nos incompatibilizaríamos um com o outro, no que o Joaquim concordou plenamente. E chamei-o bem a atenção para isso, lembrando-o de que teríamos de enfrentar situações embaraçosas, mas que o importante era ficarmos sempre unidos. Ele concordou sem problema nenhum, o que já foi muito bom, pois dar-lhe-ia mais consciência de tudo, etc.

E assim enfrentámos tudo o que veio e não foi pouca coisa. Trocávamos opiniões um com o outro, como tinha que ser e conseguimos levar as coisas adiante e chegar ao fim. Foi até interessante porque, apesar de todos os “apesares”, ficámos amigos, numa amizade mais sólida, mais firme, mais harmoniosa. O Joaquim viu em mim alguém em quem podia confiar, alguém com quem ele podia desabafar sem se chatear, com a paciência que os outros não sabem ter, porque às vezes ele até chega a ter piada.

Um dia, na entrada do prédio, um saindo e o outro entrando, cumprimentámo-nos como de costume e entre nós passou rapidamente um casal que tem dois filhos. Cumprimentámo-nos todos, sendo que eles são pessoas muito educadas e simpáticas. Ele mais sério, ela sempre toda sorridente. E depois de seguirem o seu caminho, o Joaquim começa a falar comigo, de uma forma meio codificada, com uns gestos e umas caras, enquanto eu aguardava uma maior precisão da parte dele. E começou a explicar-se. O que ele queria dizer, é que ela, a vizinha que tinha acabado de passar, nem sempre tinha o mesmo comportamento. Quando ele disse isto, fiquei à espera de mais, para não ter que lhe fazer perguntas.

Ela é simpática, dizia-me ele. Respondi-lhe que sim, muito simpática, sempre muito bem-disposta. Pois é, dizia ele, mas… e ficou em silêncio. Repeti, mas… e ele continuou. Mas tem dias. Tem dias, como assim, perguntei. Às vezes não é, sabe… dizia. Às vezes passa por mim e parece que nem me conhece, dizia ele muito injuriado, estranhando muito o facto de ela alternar o comportamento. Mas é só às vezes. E comecei a rir, a rir com gosto, vendo o olhar dele intrigadíssimo pela minha reacção, que ele não entendia nem esperava.

Uma vez, eu entrei no “take away”, do outro lado da rua, fora da nossa Praceta e no meio das pessoas que lá estavam, estavam eles, o casal com os dois filhos. Só que o marido não era o dela e os filhos também não. Eram outros. E quando ela de repente se virou e confirmei que era ela, sorrindo para a cumprimentar, ela nem reparou, ou ignorou, ou não viu, parecendo que não me conhecia. Coloquei-me em posição de a ver melhor e era ela, mas não. Só podia ser uma irmã gémea. Isso explicava que eu também já a tivesse visto entrar ou sair do prédio, sozinha, sem que ela me falasse.

Quando o Joaquim veio com essa conversa de nem sempre ela falar, percebi imediatamente que ele também não sabia da existência da irmã gémea, como eu não sabia, se não tivesse presenciado essa cena.

Como o Joaquim gosta de ter sempre razão, ao explicar-lhe que ela tinha a tal irmã gémea, simplesmente ficou desconcertado, sem jeito, pensativo, balbuciando “irmã gémea”… e talvez pensando que eu o estava a enganar. Nunca se sabe.

O facto é que ele ficou sem palavras, porque não estava à espera daquele desfecho. Era difícil para ele admitir que todo o tempo tinha estado enganado, tirando conclusões precipitadas que facilmente levam ao engano.

Mas por esta vez, talvez só por esta vez ou talvez por outras vezes, o Joaquim não tinha o que argumentar, restando-lhe apenas e somente o facto de que estava redondamente enganado. Ponto final.

 

domingo, 20 de abril de 2025

Um cruzeiro - 81

 

Como é bom fazer um cruzeiro pelo mediterrâneo fora, com tudo de bom à nossa disposição! Boa comida, boa companhia, bons programas para distrair a tripulação, além de outras coisas maravilhosas que uma viagem destas nos proporciona. Mar azul, céu azul! É muito bom.

E enquanto o barco anda durante a noite em que podemos dormir um sono tranquilo, relaxado, acordar num novo porto, um lugar diferente para visitar, oh vida boa!...

Foi há cerca de quarenta anos que embarquei no primeiro cruzeiro, integrada num grupo de funcionários da RTP. Por essa altura o meu casamento já estava bastante mal e decidi que seria bom para ambos fazer um cruzeiro, no que o meu marido concordou.

Não queríamos gastar muito dinheiro, por isso ficámos num camarote de três, com uma colega açoriana, que tinha trabalhado connosco na Delegação dos Açores, e que veio para Lisboa um pouco depois de nós. Ela era muito nossa amiga e tínhamos bastante intimidade, por isso, era a pessoa certa para ficar connosco. Era solteira, não queria pagar um camarote individual porque era muito caro também para ela e pronto, tudo se ajustou. Ela fazia a vida dela e nós a nossa, sendo que cada um dos três tinha o seu beliche. Foi óptimo.

Era um grande grupo da RTP, praticamente todos conhecidos, mais intimidade com uns do que com outros, enfim, eram férias e as condições eram propícias para nos conhecermos todos melhor, o que é sempre muito proveitoso.

A Conceição era uma pessoa engraçada, sempre bem-disposta e sempre pronta a rir por tudo e por nada. Era muito castiça, porque tinha aquela bela pronúncia açoriana da ilha Terceira, que é diferente de S. Miguel. Pronuncia que ela, apesar de fora da ilha há alguns anos, ainda não tinha perdido.

Com o divórcio em perspectiva, eu andava com os nervos muito desequilibrados e com ansiolíticos para atenuar a ansiedade. Um dia depois do almoço fui para o camarote para me deitar um pouco e descansar. Havia uma janela que ficava mesmo a meio do meio beliche e quando estava deitada, era como se estivesse submersa num aquário gigante, porque os camarotes ficavam abaixo do nível da água. E eu olhava pela janela redonda e via a água e tudo o que ela continha. Era relaxante e ajudava-me a adormecer tranquilamente.

A certa altura, quando eu já estava a entrar no sono, mas um sono leve, apercebi-me de que a São tinha entrado e andava por lá. Lembrava-me ou tinha a sensação de a ter ouvido dizer, talvez falando consigo mesma ou pensando que eu a estava a ouvir, que ia ao cabeleireiro, já tinha feito a marcação e queria muito arranjar o cabelo para estar bonita e bem arranjada para a noite, porque era uma noite especial qualquer. Coisas próprias dos cruzeiros e que alguns levam muito a sério. Sei que pouco depois, fiquei novamente sozinha e entrei no sono, um sono ainda leve, mas um pouco mais profundo.

Devo ter dormitado algum tempo e depois de ver as horas apeteceu-me levantar e ir até lá fora, ver o que se estaria a passar. Mas pouco tempo depois, antes de ter tempo de sair, entrou o meu marido, que se sentou na borda do meu beliche, dizendo-me para não sair do camarote e nem tão pouco me aproximar da zona da piscina, porque estava cheia de colegas da RTP e cada pessoa que aparecia, era tomada de assalto e atirada para dentro da piscina, sem mais nem menos.

Olhei espantada para ele, porque não queria acreditar. Mas ele não continuou falando e relatando o nome de colegas que já tinham caído na emboscada. Achei aquilo uma chatice e agradeci-lhe o aviso, porque não me agradava nada ser atirada à força para dentro de água. Ele voltou a sair e eu fiquei sozinha. Num impulso, decidi vestir-me e sair também, para indagar por mim mesma.

Assim pensei, assim fiz. Abro a porta do camarote e saio. Dou três ou quatro passos, dobro uma esquina e passa por mim a correr, completamente enlouquecida, a Drª Rosa, desvairada de todo, olhando para trás, nitidamente a fugir de alguém. Percebi imediatamente que estava na mira dos que a queriam atirar para a piscina, por isso ela fugia como o diabo da cruz.

Bom, depois desta cena, decidi voltar imediatamente para o camarote, pois já tinha sido avisada pelo meu marido e aquela cena que tinha acabado de ver, estava mais do que explicada, era mais do que evidente. Nem conseguia imaginar o turbilhão que ia na piscina e à volta dela.

Regressei ao camarote e voltei a deitar-me, para dar mais tempo a que tudo aquilo acalmasse. Não me agradava mesmo nada ser atirada para a piscina. Deitei-me e continuei e fixar-me na minha janela redonda de claraboia, que tanto me encantava. E neste dolce far niente, sem me aperceber, voltei a adormecer outra vez.

Entretanto, a São entra novamente e acordo lentamente, com ela sentada à frente do toucador, olhando-se no espelho e resmungando entre dentes. Mas o resmungar era estranho porque, ora resmungava ora ria. Pensei que estava a sonhar, por isso abri os olhos. Ao abrir os olhos vejo-a realmente sentada em frente do espelho e percebi que não estava a sonhar.

Contudo, alguma coisa não batia muito certo na minha cabeça. Aquilo que eu via era a São toda encharcada dos pés à cabeça e com uma toalha enxugando os cabelos. Mas eu ia jurar que a tinha ouvido dizer que ia ao cabeleireiro. Afinal tinha estado a lavar a cabeça!? Que confusão. E concluí que era tudo um sonho maluco dos meus. Voltei a fechar os olhos para me distanciar das minhas “doideiras”.

Mas ela continuava a barafustar, ora rindo, ora chateada não sei com quê, porque barafustava sozinha, para cair novamente na risada e tudo isto completamente sozinha, porque não havia mais ninguém no camarote. E eu não conseguia deixar de pensar que podia jurar que a tinha ouvido dizer que ia ao cabeleireiro! Mas afinal estava ali com o cabelo todo numa sopa!? A minha cabeça não estava mesmo boa. Tudo isto por conta do sonho, com certeza. Mas afinal ela ia ou não ao cabeleireiro?

Decidi levantar-me para ir espreitar o meu marido e o que ele e os outros andavam a fazer. Sento-me no beliche e olho para a São, através do espelho. Ela vira-se de frente para mim e pergunto imediatamente: “mas então, achei que tinhas ido ao cabeleireiro!?”. Resposta dela, ao mesmo tempo que desatava a rir e a choramingar: “e fui…”. "E foste?”, voltei a perguntar. Sim, disse ela, mas quando saí, queria-me sentar a apanhar sol à beira da piscina e eles meteram-me à força dentro de água, depois de ter gasto um dinheirão no cabeleireiro!? ...


quarta-feira, 16 de abril de 2025

O "Henrique" - 80

 

De todos os lugares da terra que já visitei, e não foram assim tão poucos, há três cidades que me deslumbraram completamente. Em terceiro lugar, Istambul, capital da Turquia; em segundo, Rio de Janeiro, Brasil e em primeiro, Nova Iorque.

Sei que para a grande maioria das pessoas Paris é isto, é aquilo, mas, muito sinceramente, não me diz nada. É só mais uma, igual a tantas outras. Para mim passou totalmente despercebida. O que é Paris comparando com Roma, por exemplo. Roma é um fascínio! Roma está cheia de mistério, cheia de mensagens codificadas aqui e ali, ao virar da esquina, em todos os monumentos e em todas as ruas a história fala a olhos vistos e os segredos descobrem-se como se tudo tivesse uma voz própria, que cada um pode ouvir e que para cada um é diferente.

É mística, é doida, calorosa, é o máximo. Ali, o passado tem uma força esmagadora. É impossível descartar. Mas no meio deste tumultuado caminho de emoções há uma dor profunda. Roma é Itália! É vida e morte, tudo ao mesmo tempo e às vezes eu ficava com a sensação de que estava lá e não cá. O passado que eu não vivi entrava no meu presente, quase que baralhando a minha cabeça e o meu espírito.

E como Itália, outros países do mundo me fascinaram, por este ou aquele motivo. Em todos os lugares há uma energia muito própria, muito surreal, que é preciso viver para sentir. Não podemos viajar com a mente fechada. Temos que abrir as portas do nosso eu para passar à experiência, naquilo que vemos, sentimos, absorver a comunicação com os demais, o que eles nos passam, os seus ditames, o que os cobre, a maneira como se vestem, deliciarmo-nos com o que nos dão a comer, certamente diferente dos nossos hábitos, mas para tudo precisamos de abrir fronteiras, ou arriscamo-nos a ficar fora de tudo, da essência vida.

Com efeito, alguma coisa muito especial chamou a minha atenção para estas três cidades que já mencionei, fazendo com que a minha pontuação caísse sobre elas e não noutras. A terceira, Istambul, é uma cidade maravilhosa, cheia de história, com tanta coisa para visitar, como tantas outras cidades ou lugares, é certo, mas, mais do que tudo, no meio daquela barafunda toda, uma cidade muçulmana onde as mulheres e os homens se vestem quase todos de maneira muito própria e para além daquela divisão entre Europa e Ásia, uma coisa me deixou completamente extasiada, o chamamento à mesquita ou à oração, aquela lengalenga que eu não sabia sequer o que diziam, mas que entoada do jeito deles, fica entre a música e o choro, é um som delicioso, que convida de facto ao silêncio e nos faz recolher ao nosso interior elevando o espírito para outras dimensões.

Aquela música chorada é linda, linda, uma coisa do outro mundo, sempre às mesmas horas, parece que o mundo inteiro pára para ouvir aquilo, deixando-nos extasiados e na mesma e única sintonia, que ultrapassa os limites humanos. É realmente de uma beleza impressionante. E não é que não tenha ouvido o mesmo, por exemplo, no Bangladesh, mas nem por sombras se assemelha à Turquia. No Bangladesh é um ruído assustador, uma coisa medonha que apetece fugir. Na Turquia é a coisa mais maravilhosa que já ouvi. Lindo! Lindo!...

Depois, em segundo, O Rio de Janeiro. O Rio é o lugar onde eu viveria por puro prazer. Ali encontrei tudo aquilo que tive em criança e perdi. Ali encontrei o meu sol, o meu calor tropical, gente de todas as cores, onde cada um veste o que quer e lhe apetece, onde a fruta salta aos nossos olhos, é o Brasil. Mas o Rio de Janeiro é especial. Eu nem sei o que salientar, porque tudo ali é bom. É uma pena ser tão mal aproveitado e não vou falar disso porque não vem ao caso.

E em primeiro lugar, como já referi, Nova Iorque, “a cidade que nunca dorme”. Com efeito. Nova Iorque é Nova Iorque e uma sensação de liberdade incrível. Não consigo expressar por palavras o que sinto por aquela cidade. É uma loucura atrás da outra.

Mas numa destas três cidades que me marcaram de modo especial, há uma historinha engraçada que aconteceu no Rio de Janeiro, precisamente em Copa Cabana.

Estávamos a passear, O Carlos e eu, quando decidimos alugar uma motinha. Eram as mais pequenas de todas. Uma graça! Só de olhar para elas já apetecia montar e fugir. Eram eléctricas e óptimas para passearmos pelo Rio, que é grande que nunca mais acaba, como todo o Brasil. E como andávamos muito a pé, aquilo seria uma grande ajuda e ao mesmo tempo um enorme prazer. Por isso decidimos aproximarmo-nos dos lugares de aluguer e sabermos como era.

Fomos caminhando, olhando, ao mesmo tempo que apreciávamos toda aquela beleza à nossa volta, pela calçada ou pela praia, até que decidimos ir a um rapaz que tinha várias motinhas das que queríamos. O Carlos, que é entendido no assunto, começou a falar com o rapaz que alugava as motos. Começou a fazer perguntas e enquanto eles falavam eu reparei que o rapaz era bonito e tinha olhos verdes.

O Carlos olhou, viu esta, aquela, a outra, falou, perguntou, ouvimos o que o rapaz dizia e ao mesmo tempo íamos falando um com o outro. Vinha outra pessoa que também estava interessada, e outra, olhávamos o mar, a praia, sob um sol radioso e lindo demais, as pessoas aproveitando a vida, calculávamos o tempo de energia que a moto oferecia e fazíamos cálculos para os nossos próximos passeio e o tempo ia passando, calma e tranquilamente, com todo o prazer que tudo aquilo nos proporcionava e que é preciso agradecer à vida, ao universo que tudo rege e comanda.

E então o Carlos interrompe tudo para me fazer a observação de que o rapaz se parecia muito com o Henrique, o meu filho querido. É bonito, tem olhos verdes, é muito parecido com o teu filho, dizia ele. Sim, respondi, enquanto acenava com a cabeça em sinal afirmativo. Coincidência, podia ser irmão, primo… tinha graça. E, sem querer, comecei a divagar. Ele tinha família completamente desconhecida no Brasil, isso sim. O avô paterno tinha emigrado para o Brasil e formado outra família, deixando a mulher e os filhos nos Açores, quando o pai dele, do meu filho, tinha apenas dois anos. Motivos de desentendimento entre o casal o levaram a isso. É a vida. E nunca mais ninguém soube dele. Mas isso era só eu a divagar, claro. As coincidências da vida, que às vezes não passam mesmo de coincidência, nada tendo a ver com a realidade.

Decidimos que ficaríamos ali naquele posto com o “Henrique” e fizemos a marcação para o dia seguinte. Tudo certo. Foi então que o Carlos, para ter a certeza de que encontrava o rapaz, perguntou “o seu nome, por favor”. Resposta dele: “Henrique”.