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sexta-feira, 1 de julho de 2022

Fim de ano - 73

 

Ainda adolescente, com dezassete anos, deixei a vida de estudante que tinha em Setúbal, onde vivia com a minha avó e os meus primos, para vir para Lisboa trabalhar e ser independente, porque estava farta da vida que tinha desde que a minha mãe faleceu. E fiquei a viver em casa dos meus tios, bem no centro da cidade.

Vim porque queria a minha independência e a minha liberdade. Por isso comecei a trabalhar no Ministério das Finanças, onde a minha tia há muito trabalhava. Foi bom ter vindo. Era um grande passo na minha vida. Porém, independência e liberdade ainda estavam por vir, porque a minha tia me fazia uma super vigilância e todos os passos que ela dava eu era obrigada a dar também.

Saíamos do Ministério às dezassete horas e trinta minutos e antes de irmos para casa havia sempre alguma coisa para fazer, porque ao chegar tinha a mesa posta e tudo mais que perfeito e pronto à espera dela e do marido. Por isso podia dar-se ao luxo de ter sempre algum lado aonde ir. Ou ia à missa ou comprar alguma coisa, ou simplesmente ver as montras da baixa, enfim, alguma coisa havia de preencher o tempo antes de ir para casa. E eu tinha que ir a reboque. Não havia alternativa. Comecei a trabalhar assim que cheguei a Lisboa, em Agosto de 1970, ainda com dezassete anos, para fazer os dezoito logo em Setembro. E a vida era isso. Trabalhar e andar atrás da tia, quisesse ou não. Não havia querer da minha parte. Até que Dezembro chegou e com ele muita coisa mudou.

Como sempre, os meus tios começaram a pensar no seu fim de ano. Eles viviam para as viagens e para as festas. As suas festas, pois elas eram só deles e de mais ninguém. E o fim de ano estava planeado. Então, o que fazer com a minha pessoa? Para eu não ficar em casa com a empregada, decidiram que iria a uma festa de uma colega do Ministério. Uma colega com quem eu não tinha a menor intimidade, que só conhecia de vista, que era ainda bastante jovem, mas que parecia uma velha autêntica, pela maneira como se vestia e se arranjava. Mas era uma pessoa de confiança da minha tia e, portanto, eu podia ir passar o fim de ano com ela, como se precisasse de quem tomasse conta de mim e me vigiasse!?

Era uma grande chateação aquela decisão. Mas deus escreve direito por linhas tortas. Sem dúvida. Ela tinha um irmão padre e iam fazer uma festa de paróquia, o que para a minha tia era muito seguro para mim. Ou ficava em casa ou ia à festa da paróquia com o padre e a “freira”. Boa! E acho que movida mais pela curiosidade do que por outra coisa qualquer, eu fui. Mas com toda a verdade eu achava que ia ser um tédio de todo o tamanho. Enfim, cada um tem o que merece.

A festa era, nem mais nem menos, num armazém vazio de Alcântara, na Avenida Marginal. Um casarão vazio, com uma pequena mesa redonda coberta com uma toalha bem simples, onde havia coisas para comer, que as pessoas voluntariamente e eventualmente iam trazendo. Havia uma aparelhagem de som e uma ou outra cadeira. Uns poucos caixotes que não se sabia o que continham e de resto estava vazio, com todo o espaço livre, frio e pouco acolhedor. Mas como tinha aquelas janelas enormes em meia lua, características de todos aqueles edifícios na marginal, pensei que me poderia entreter e esquecer… ficando a observar a vista do rio e a folia do lado de fora.

Não fazia ideia de onde me ia meter, em todo o caso, era fim de ano e a minha tia tinha-me oferecido nesse ano um vestido muito bonito que me tinha comprado aquando das suas férias no Verão em Paris. Muito simples, em malha, todo direito e colado ao corpo, embora sem exagero, com manga comprida e muito curtinho, branco e prateado, em que praticamente só se via o prateado. Depois calcei uns sapatos de verniz pretos, de salto, também muito simples, o meu cabelo curto de costume, sem ordem para deixar crescer, e os olhos esfumados com as pestanas bem pintadas, lá fui eu para a “festa”, longe de imaginar como seria o meu primeiro fim de ano, com dezoito anos acabadinhos de fazer, ingénua e sem experiência nenhuma da vida.

Ao chegar, as poucas pessoas que lá estavam, tudo gente velha para a minha idade, velha e sem graça, tudo “beatas” e nada mais, de volta do padre, todos olharam para mim sem uma única palavra, apenas me olhando. Fiz o mesmo. Exatamente o mesmo, sentindo-me como peixe fora de água. Mas nem por isso me importei. Tinha sido empurrada para ali e não era por isso que eu ia ser igual aos outros, nem mostrar o que não era que, aliás, não tinha porque esconder.

O padre aproximou-se e falou que eu era bem-vinda e que podia ficar à vontade, como se houvesse algo para não ficar. Pensava para comigo mesma, como seria a noite ou o tempo que ali passaria, no meio daquela gente que mais pareciam peças de museu. Era essa a minha sina e tinha que me aguentar.

Quando consegui livrar-me do padre fui até uma das janelas em meia lua e como o parapeito tinha uma largura considerável, decidi sentar-me com os joelhos dobrados e os braços à volta. E aí fiquei olhando ora para dentro ora para fora, à procura do que seria mais interessante: se o nada que existia ali dentro ou a noite que aparecia do lado de fora, apesar de tudo, bem mais atraente. E ali fiquei, com alguns olhares em cima de mim, com certeza achando estranha a minha posição pouco convencional e em cima do parapeito, depois de me terem oferecido uma cadeira e eu ter rejeitado. Paciência. Eu era assim.

E a noite mostrava-se daquele jeito, naquela pasmaceira, com música sem graça e nenhum entusiamo da parte de ninguém. Até que, por volta das onze horas, as coisas mudaram como que por obra do espírito santo. Sem mais nem menos, vejo entrar pela porta dentro um grupo de rapazes e raparigas mais ou menos da minha idade, que vindos não sei de onde, mudaram completamente o panorama da “festa”.

Eram seis. A primeira coisa que fizeram foi mudar a música. De seguida começaram todos a dançar em grupo. Caramba! Agora já apetecia olhar e ver a alegria e a energia que começava a mudar. E então começaram a chamar por mim, para me juntar ao grupo. Bem gostaria, mas a timidez não me deixava arrancar dali. Por isso continuei no meu posto de observação, embora já com um sorriso nos lábios. Várias vezes insistiram, mas eu sempre abanando a cabeça, sem coragem de me juntar a eles, que eram dois rapazes e quatro raparigas.

Ao fim de algum tempo, uma das garotas deixou o grupo e veio ter comigo, insistindo para que fosse com ela. Continuei a dizer que não, mas logo de seguida um dos rapazes juntou-se a ela, forçando-me a ir ter com eles, até que vieram todos ao meu encontro. Foi um choque, porque eu não compreendia porquê tanta insistência. Eu ainda tinha o registo de que eu não era ninguém que valesse a pena, que não agradava a ninguém, que ninguém gostava de mim, etc. E aquela insistência deles começou a baralhar as minhas ideias.

As duas raparigas começaram a elogiar a minha toilette, o meu vestido, etc. É que todos eles estavam vestidos na maior simplicidade. Jeans e t-shirts, sem nada de festivo. Roupa de todos os dias. Por isso, de facto, eu destacava-me e muito. Mas na altura não tinha essa noção. Os rapazes começaram a dizer para ir dançar com eles e todos queriam, porque queriam muito que me juntasse ao grupo, porque estava muito gira, muito tudo e porque estava tão sozinha, o que era uma pena. E assim foi que me arrastaram com eles. Entrei no ritmo, comecei a mexer-me, a minha energia começou a fluir e de repente tudo mudou. Agora tinha valido a pena ir até àquele lugar, ainda que fosse com a “freira”, que eu até já tinha esquecido. E a música acabava, para logo começar outra que não nos dava tréguas na dança. A festa estava apenas a começar. Em todo o caso, eu já falava com todos e todos sorriam felizes de me ter aberto e de estar com eles. Era entrar noutro mundo. E como era bom! Até parecia que nos conhecíamos já há muito tempo…

Até que chegou a meia-noite e o grupo decidiu sair dali e ir para a Ribeira. A Ribeira! O que seria a Ribeira? Tendo a concordância de todos, decidiram que eu iria também com eles. Oh, como é que isso ia ser? Lá lhes expliquei que tinha ido com aquela pessoa e não podia desrespeitar as ordens da minha tia. Mas eles não queriam saber disso para nada. Eram jovens e queriam apenas o direito de se divertirem na noite de passagem de ano. E continuaram a convencer-me, dizendo que tinham uma carrinha com lugar para todos e depois me deixariam em casa.

Não sem receio, fui falar com a “freira”, que não era freira, dizendo-lhe que eles me tinham convidado para ir com eles à Ribeira, mas é claro que ela não queria de jeito nenhum, dizendo que a minha tia tinha confiado na pessoa dela para tomar contar de mim e, portanto, não podia ir. Foi quando me dei conta de que não podia deixar que ninguém tomasse conta de mim, porque não precisava. Eu sabia! Sempre soube. Sempre fui responsável o suficiente para cuidar da minha irmã e dos meus primos e agora para mim, já com dezoito anos, porque haveria de precisar de cão de guarda? Era ridículo e era um direito que eu tinha, fazer o que me apetecia, especialmente numa noite diferente.

Foi chamar o irmão padre que começou a pregar-me um sermão, mas eu peguei na minha mala e juntei-me ao grupo que, por sinal, não minto, quando digo que deliraram por me terem no meio deles. E lá fomos todos na carrinha à Ribeira, segundo eles, para beber um cacau quente. Eu estava feliz que não cabia em mim, por aquela oportunidade de ouro que pela primeira vez em tantos anos me fazia sentir uma pessoa normal e não fazia ideia de que aquele ritual do cacau da Ribeira fazia parte da tradição da noite alfacinha. Até então a minha vida só tinha dias. As noites eram apenas para dormir e sonhar, às vezes coisas boas, outras nem tanto.

E assim, a noite estava finalmente a surgir. No meio daquela multidão do mercado, na fila para o cacau quentinho da Ribeira, eu não fazia a menor ideia de onde estava e muito menos de que tudo aquilo existia. Era um outro mundo que brotava e me fazia enxergar a vida do outro lado. A minha alma vibrava, tal qual o brilho do meu vestido prateado, que as garotas e até os rapazes estavam encantados com tudo comigo. Eles percebiam a minha timidez e a minha escassez de conhecimento da vida. Tudo aquilo para eles era perfeitamente corriqueiro e banal. Já para mim era como que um despertar. Não era só a minha alma que vibrava. O meu espírito planava e o cacau caía em mim como um bálsamo que embriagava os meus sentidos todos e mais alguns.

Aquilo, sim, era uma verdadeira festa, porque as pessoas estavam lá e viviam aquilo duma maneira intensa e eu com eles. Os meus olhos abriam pela primeira vez, vendo as luzes da noite, as luzes que durante o dia estavam escondidas. No dia seguinte, eu ia ter que aturar a tia por causa daquela aventura, mas naquele momento eu faria o que me apetecesse e nada nem ninguém mo impediria. A minha intuição dizia que podia confiar no grupo que a vida enviara para me fazer viver e me devolver a alegria há muito perdida e esquecida. Mas agora ela estava de volta e eu teria toda a minha vida para recordar aquela noite tão especial, onde nada mais aconteceu do que o absolutamente normal, mas que para mim, estava completamente fora de alcance.

E fomos ao cacau da Ribeira. E todos juntos celebrámos o ano novo, um ano verdadeiramente novo para mim. Não importava onde era nem com quem era. Era o que era, simplesmente. Eu nem sabia o nome deles, nem donde vinham nem para onde iam. Vinham da vida e iam para a vida. Uma vida onde havia alegria, felicidade e onde ninguém fazia nada de errado. Eles desfaziam-se em amabilidades comigo e eu não entendia porquê. Porque ali, se alguém estava de fora, era eu, não eles. Eles pertenciam àquele mundo. Eles tinham outra perspetiva da vida que até então eu nunca tinha tido. Eles abriram as portas para mim, ajudando-me a dar um passo que não foi pequeno, para continuar a minha caminhada no presente e que teria uma enorme repercussão no futuro.

Por volta das duas horas da manhã, começou a debandada. Entrámos todos na carrinha, com eles dizendo para não me preocupar que me deixariam à porta de casa. E assim foi. Cheguei a casa sem me importar com as consequências. Mas a partir daí tudo mudaria. Eu não deixaria que ninguém nunca mais me desse ordens e me proibisse de fazer o que eu queria. Nunca mais ninguém me diria “vai por aí”. Eu só iria onde a minha cabeça e o meu coração mandassem. E isso eu descobri naquela noite. Na noite do meu primeiro fim de ano, onde eu acabava de compreender que viver era imperioso e era para isso que cá estávamos. E que todos nascemos com direito à liberdade. Por isso eu estava determinada a fazer valer os meus direitos como ser humano que era, pura e simplesmente.

Aquela noite não se limitava a um fim de ano especial ou não. Aquela noite trazia a força e o empurrão necessários para eu abrir os olhos e ganhar coragem para, de uma vez por todas, entrar na vida toda inteira, com todo o meu ser e toda a minha intensidade e trabalhar a todos os níveis para conseguir chegar onde a vida me pudesse levar, dentro das minhas possibilidades. Daí para diante eu iria apreciar a vida em todas as suas dimensões. Viajar no tempo real, aproveitar todas as oportunidades de crescer espiritualmente e aplicar esse aprendizado na vida em concreto. Eu cairia muitas vezes, mas também teria todas as capacidades de sempre me conseguir reerguer, para continuar a minha caminhada por onde quer que ela passasse, mas sempre e somente por minha conta e risco, onde eu seria a única responsabilizada e mais ninguém.

Na terra, as luzes da cidade brilhavam a todo o vapor. No céu, lá bem no alto, uma estrela brilhava muito mais, iluminando o meu caminho com todo o seu esplendor.

  

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