Como era lindo!… pensava ela. A imagem dele estava gravada desde o dia em
que o vira pela primeira vez. Nessa altura, pensou… se tivesse menos dez anos,
não precisava de mais, menos dez anos eram o bastante e ele não escaparia
porque, se havia um adjectivo que a caracterizava bem demais era
“aventureira”.
Mas a aventura não era por “casos” ou “flirts”… não era nada disso.
Aventura era ela personificada, porque nunca deixara de viver nada por conta
dos outros e dos preconceitos ultrapassados e enfadonhos em que a maioria das
pessoas se deixava envolver, inibindo-se de viver, em nome de falsos
moralismos.
Realmente, isso não se lhe aplicava. Desde os dezassete anos que tomara as
rédeas da sua vida e isso sim, fizera dela uma aventureira nata. A vida tinha o
gosto da aventura, sim, porque tudo o que fazia e tudo em que se metia, era
para ser vivido a cem por cento, caso contrário, não estaria lá. Amava a vida
com todo o respeito e a alegria que lhe conferia e lhe atribuía, pela sua
simples existência neste mundo, onde nada se podia perder, a não ser aquilo que
realmente não era preciso e isso sim, era para definitivamente descartar para
todo o sempre.
Há três anos que ali estava com a família. Não a mulher e os filhos, porque
esses tinham ficado no seu país. Ele viera para ficar, arranjar papéis e então
trazer a família já em segurança. Mas vivia com os irmãos. E a vida era
trabalhar para ganhar dinheiro e enviar para a família, a fim de lhes
proporcionar uma vida melhor, até os poder trazer e fugir à guerra, à vida
miserável que tinham, apesar dos cursos que tinham tirado. Num país em guerra,
de nada serve ser isto ou ser aquilo. Num país em guerra, tudo é inútil, todo o
esforço é em vão e nunca se poderão fazer planos. É duro, mas é a realidade.
De vez em quando, cruzavam-se nas escadas, nos elevadores e da mesma
maneira que ele sabia que não lhe era indiferente, também ela sabia que alguma
atracção exercia sobre ele, mas as reticências eram tantas que não havia
ponta por onde se pegar. Era a diferença de idades, eram os irmãos, eram as
culturas - a barreira das culturas(!) - embora, até certo ponto, ela soubesse
lidar com isso. Mas não, não podia ser, era muito complicado.
Todavia, sempre que se cruzavam, ele encarava-a com uma curiosidade impossível
de esconder e impossível de não perceber. Parecia que alguma coisa ficava
sempre por dizer, algo que precisava de sair, mas que acabava sempre por ficar
engasgado, por conta da inibição que também sempre se sobrepunha. Lá teria as
suas razões, também ele. Era melhor… era melhor que tudo ficasse assim, por ali
mesmo, tudo no seu lugar.
Até que um dia, ao sair do elevador, abrindo a porta e antes de ter tempo
de sair, alguém abre a porta mais rápido e quase esbarram um no outro. E nesse
dia não houve tempo para pensar, nem ficar inibido e a pergunta saiu. Eram onze
horas da noite e apesar do programa ter sido bom, ela vinha cansada, querendo
chegar a casa e dormir. Ao esbarrar nele, inesperadamente os olhares de ambos
se fixaram inevitavelmente, de um jeito quase hipnótico. Atordoada, veio à
realidade com a pergunta inquisidora e que foi mais forte do que ele “onde
vai?”. Claro que o que ele queria saber era de onde ela vinha, porque vinha a
chegar sozinha àquela hora. Mas o seu fraco português fez o que pôde.
Apanhada de surpresa, atrapalhada, apressou-se a responder “classic music
concert”, como se sentindo coagida a dar-lhe satisfações. Como se, de repente,
sem mais nem menos, ele fosse seu dono… e com mil e uma questões na cabeça, ao
mesmo tempo que surpreendida com o que se estava a passar com ela - porque,
enquanto a sua voz interior perguntava a si mesma o que a tinha levado a
dar-lhe justificações da sua vida -, a ponto de se ter deixado levar. E para
tudo isto não havia resposta.
E antes mesmo que terminasse a frase “classic music con…” já ele respondia
“ah...” ao mesmo tempo que acenava que sim com a cabeça, em sinal de aprovação.
E não havendo mais nada para dizer, ela saiu de vez do elevador para lhe dar
passagem, enquanto os seus olhares se refugiavam um no outro, até a porta se
fechar novamente e cortar de vez aquele momento embaraçador, mas mágico.
Já em casa, enquanto se despia para se deitar, pensava em mil e uma razões
para aquela pergunta intempestiva. E uma delas, é que era absolutamente
impensável na terra dele, uma mulher sair assim, sozinha e ainda chegar a casa
àquela hora da noite. E muitas outras coisas… mas a verdade é que não era nada
daquilo. Sabia bem qual era a verdadeira razão daquela pergunta. Ele queria lá
saber das horas e do resto. Ele queria mesmo era ter a posse de todas as suas
horas, não só daquela, mas de todos os dias e saber como era a vida dela, que
para ele era um grande mistério, apenas porque a desejava, independentemente da
idade, de não ser a mulher mais bela do mundo, disto e daquilo… a verdade é que
sentia por ela uma atracção irresistível, que ele próprio não compreendia e nem
se daria a esse trabalho.
Aquela mulher, que entrava e saía a qualquer hora, com o ar mais
indiferente deste mundo, que sempre estava sozinha ou com amigas, sem uma
companhia masculina; aquela mulher que tinha um ar ainda jovem e vestia como
uma adolescente: jeans, leggings, vestidos compridos, frescos e fluidos,
mostrando o corpo magro e bem delineado, aquela mulher era uma fonte de
atracção e de mistério; um grande enigma para ele, com trinta e oito anos
apenas. Se ele, a viver com os irmãos, se sentia tão só, com a esposa longe,
sem amor por perto, impedido de uma vida sexual normal, por via das
circunstâncias; para quem a vida era apenas trabalho, comer e dormir - tudo
isto em nome da promessa de uma vida melhor, que tardava em chegar - e aquela
mulher sozinha, como ultrapassaria ela a sua solidão? Como poderia ela estar
sempre sozinha?…
Já tinha entrado na sua casa com um dos irmãos, por conta de uma pequena
questão técnica, para a qual necessitara de intervenção exterior. Por isso os
chamou e ficara deliciado com a casa. Aquilo era um verdadeiro refúgio de amor.
Ali, havia qualquer coisa no ar que era indecifrável. Ali, estava-se bem.
Também não sabia muito bem se era da casa, se apenas da presença dela. Mas tudo
ali se conjugava. Tudo era perfeito. O meio ocidental, meio oriental, tudo
funcionava maravilhosamente bem, fazendo-o lembrar do que precisava de
conquistar, jamais esquecendo as suas origens. Até nisso ela era fabulosa.
Os olhos dele brilhavam, com aquele brilho que só eles têm. Aquilo era um
mundo mágico que o seduzia e o deixava completamente perdido. Tudo ali era
simples, sem luxo, mas prático, confortável e funcional. Mas muito mais do que
isso: acolhedor, convidativo. Mas era também muita paz e muito amor que sentia
ali. A pessoa que vivia ali só podia ser uma pessoa muito especial. Aquilo era
tudo o que ele precisava. Aquela misteriosa mulher não tinha idade. Podia ter
uma idade qualquer, que a ele em nada lhe importava. O que importava era o que
ela era e o que ela representava. E ela era sem dúvida, a única pessoa que o
podia ajudar.
Ali tão perto, era só atravessar o patamar. Meia dúzia de metros, apenas, a
separar as portas de casa. Mas depois havia as outras quatro. E ainda os outros
andares. E estavam sempre a entrar e a sair. Mas o pior de tudo eram os irmãos.
O que fariam se soubessem? Seria uma chacina. Ainda por cima ele era o mais
velho, aquele que tinha que dar o exemplo! E tudo apenas por um pouco de paz,
um pouco de amor. Sexo, sim, mas mais do que isso, beijar, acariciar, sentir a
ternura do contacto da pele com pele. Entrar em casa e arrancá-la ao que
estivesse a fazer; pegar nela ao colo e deitá-la em cima da cama, naquele
quarto sensacional, com uma tapeçaria oriental na cabeceira, em tons de azul e
verde; aquele quarto de uma simplicidade incrível, era um convite ao erotismo,
aos sentidos mais sublimes, submetidos ao prazer do amor e da sensualidade.
Aquela mulher era o caminho para a sua liberdade.
Enquanto ele observava tudo minuciosamente, ela seguia-o atenta e curiosa
no pormenor com que reparava em tudo. Sentia-se lisonjeada mas, ao mesmo tempo,
um pouco devassada. Contudo, não lhe podia recusar esse privilégio. E aos
poucos, foi-se libertando e até aguçando a sua curiosidade, que não deixava de
a fascinar. Afinal, ele era o tal, especial. Ele era lindo! Isso era inegável.
Até as amigas vizinhas, já o tinham comentado. Mas elas eram novas, era
perfeitamente natural. Em todo o caso, o facto é que ele era mesmo bonito. E
não era só a beleza física. Era a altura, o porte, o ar com um misto de timidez
e o sorriso só no olhar. Era aquela cor morena de quem está permanentemente
bronzeado do sol. Era uma coisa que só ele tinha ou que só ela via, porque não
se podia explicar.
E quando ela fez questão de lhe mostrar a casa de banho, um espaço tão
importante como os demais, ele ficou em êxtase profundo. Com o olhar, percorreu
as quatro paredes e deteve-se no quadro dos banhos turcos, com as mulheres
semi-nuas na água e dizia oh, oh… estava impressionado com a beleza da pintura,
mas o facto de as mulheres estarem quase despidas com os seios à mostra,
deixava-o mudo, engasgado, ao ponto de ela ter de intervir para lhe fazer
lembrar que aquilo não eram mulheres nuas; aquilo era arte e a arte era para
ser apreciada e admirada sem qualquer julgamento. Ele respondia “yes, yes…”
numa voz tão sublime quanto velada, num tom de submissão e rendição absoluta.
Era de uma doçura impressionante!
Como era lindo!… pensava ela. Não tinha mudado nada, desde a primeira vez
que o vira. A sua doçura continuava igual. Tudo nele continuava na mesma. Doce,
terno, com aquela maliciosa ingenuidade e aquele olhar misterioso de sempre,
apesar de que todas as portas tinham sido definitivamente abertas. Sem regras,
sem limites, sem objecções; sem compromissos, apenas o compromisso da
felicidade através do amor que proporcionavam um ao outro, tudo no maior
sigilo, para não ser corrompido nem interrompido contra a vontade de ambos.
Tudo o que havia para partilhar era aquele amor indefinido, intemporal, sem
reclamações, sem exigência alguma. Só a liberdade prevalecia. Só a liberdade
era permitida e permanecia. Para isso se tinham quebrado definitivamente as
algemas, banido todos os credos e tudo o mais. Ali não havia lugar para a voz
dos outros. Já era tão pouco o tempo que tinham um para o outro, sem contar com
a ginástica que era preciso fazer para não dar nas vistas e manter tudo no
maior segredo. Era um esforço e tanto, segurar aquela adrenalina que não parava
de disparar, quando se continuavam a cruzar e se metiam outros pelo meio,
porque a vida continuava.
Aliás, tudo continuava na mesma, exactamente igual, apenas eles tinham
revertido o jogo, porque já não eram mais estranhos um para o outro. Quando uma
porta se fechava, logo a outra se abria, para deixar entrar por toda a casa,
pelo ar que respiravam, pelo calor que seus corpos embrenhados emanavam, todo
aquele prazer que os fazia respirar com mais leveza e viver com a mesma
intensidade, cada momento como se fosse simultaneamente o primeiro e o último. O
único, porque também o único segredo de suas vidas.
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