Um
dia a minha tia telefonou-me a perguntar se queria ir lá jantar. Perguntei-lhe
o que era o jantar e respondeu-me que ia fazer ervilhas com ovos. Como o meu
marido era um pouco esquisito com as comidas, era preciso saber sempre qual
seria o menu, para ver se servia ou não. Ele era açoriano e estava acostumado a
umas coisas um pouco diferentes, o que implicava ter uma certa cautela.
Continuava agarrado às comidinhas da mãe que, por sinal, era uma excelente
cozinheira, mas era uma cozinha um pouco pesada para o meu gosto e às vezes era
difícil conciliar os nossos hábitos. Porém, ervilhas com ovos, parecia-me bem.
Em
casa dos meus tios sempre houve empregada a tempo inteiro, pelo que a minha tia
nunca na vida fora habituada a cozinhar, assim como o meu tio. Mas quando se
reformou decidiu que não precisava mais de uma empregada a tempo inteiro e
decidiu dedicar-se à culinária. E assim, ervilhas com ovos era o que nos
apresentaria para o jantar, cozinhado por si mesma.
Telefonei
ao meu marido, mas havia um pormenor. Tínhamos em casa um amigo açoriano, que
estava de passagem. A nossa casa era a hospedaria dos açorianos que vinham a
Lisboa de passagem. Estávamos constantemente com gente em casa. Desta vez era o
Ferreira, que era amigo do meu marido desde criança. Então, liguei para a minha
tia para lhe dizer que talvez não pudéssemos por causa do nosso amigo, mas logo
ela respondeu que o levássemos também. Ele concordou e na hora certa lá fomos
jantar a casa dos tios. Por esta altura o meu filho teria uns dois, três anitos
no máximo. Era bastante pequeno.
O
Ferreira era um tipo bem disposto, curtido à brava, que sempre nos fazia rir
até mais não. Era casado, tinha dois rapazes também pequenos e lá em casa a
mulher tratava de tudo excepto das refeições, porque o Ferreira, bom cozinheiro
que era, fazia questão de ter essa tarefa por sua conta, o que muito aliviava a
mulher.
Então,
chegámos e entrámos. Fomos para a sala de estar, onde estava o meu tio e demos
início às apresentações. Estava tudo já em família. O Ferreira nunca se calava,
estava sempre a falar e a fazer piada com tudo. Ele era assim. Um humorista
inato e logo começou a inspeccionar o local, por sua conta, fazendo
discretamente as suas apreciações, que só quem o conhecia bem é que entendia,
caso contrário passava despercebido. E lá fomos conversando, rindo, até que
chegou a hora de ir para a mesa.
Para
começo de jantar, a mesa estava posta com muito pouco cuidado e a minha tia
dizendo que não fazia cerimónia, se não nos importávamos que fossem os tachos
para a mesa, e mais isto e mais aquilo. Pois, o que haveríamos de dizer!?
Quando havia empregada não dispensava todos os requintes e mais alguns, agora,
tudo mudara de figura. Mas podia ter-se empenhado um pouquinho mais. Ainda por
cima, sabendo que levávamos um amigo. Mas pronto. Bom, à mesa, continuámos com
as nossas graças, pois com o Ferreira era certo haver sempre motivo para rir.
A
minha tia que ia da sala para a cozinha e vice-versa, fazendo-se toda atarefada
e empenhada no jantar à família, naquele dia alargada, lá vinha então com um
tacho para a mesa. Voltou a dizer que se sentia à vontade e, portanto, não ia
fazer cerimónias, pedindo desculpa por causa do tacho, mas... francamente, deve
ter escolhido o tacho mais antigo e mais velho que tinha, porque era feio que
eu sei lá. Além do mais, estava todo martelado. Um horror! Nós olhávamos, mas
já estávamos habituados às excentricidades dela. O Ferreira olhava e dizia
entre dentes - “mas o que é isto?” - com aquela sua bela pronúncia açoriana que
não tem igual. E eu pensava “nem sabes onde te vieste meter”. Ok, depois
falaríamos sobre o assunto e dar-lhe-ia algumas explicações para ele entender.
Mas
era tão estranho aquele tacho na mesa, que percebi que todos os olhares estavam
concentrados nele. Porque seria? Sabíamos que o jantar eram ervilhas com ovos
escalfados. Mas parecia que aquele tacho não se adaptava muito bem a ervilhas
com ovos escalfados. Pelo menos, uma panela. Um tacho, não, pensava eu. O meu
marido sempre com ar de gozo, que ele sempre gozava com a minha tia. E o
Ferreira olhava incrédulo, para o mau aspecto daquele tacho na mesa. Depois,
devia ter acabado de sair do lume, porque o vapor subia, subia. Cheiro não
havia. Ervilhas com ovos escalfados têm o seu cheiro característico, mas dali
não saía cheiro nenhum. O meu tio calado como sempre e todos na expectativa.
Porque seria que estávamos todos na expectativa? Aparentemente, não precisava
ou não devíamos.
E,
instintivamente, levantei-me um pouco, para dar uma espreitadela. Ah, devia ser
engano. Ao mesmo tempo, o meu filho, que tinha saltado para o meu colo,
ergueu-se também para espreitar e foi o primeiro a dar sinal: “ai, mãe, o que é
que eu como?” - começando a choramingar. Disse-lhe rapidamente que não se
preocupasse, que ia arranjar outra coisa para ele comer.
O que
é que se passava!? Ervilhas, não vi nem uma para amostra. O tacho estava cheio
de água a ferver até acima, com uns feijões verdes a boiar para lá e para cá,
ora subindo ora descendo e no fundo do tacho, ovos cozidos com casca. Pensei
para comigo mesma “o que é isto?” E perguntei em voz alta: “então não tinhas
dito que eram ervilhas?” E a minha tia responde, com o ar mais tranquilo deste
mundo: “pois, mas não encontrei ervilhas e resolvi o problema com feijão
verde”. E perante o meu ar perplexo, desconcertado e sem saber o que fazer e o
que dizer, enquanto os outros dois já riam, tão discretos quanto possível, mas
sem se conseguirem controlar, a minha tia continuava a desculpar-se: “então
paciência, também não é assim tão diferente?” Não é diferente? Pensava eu alto.
E os ovos? E ela continuava: “cada um descasca o seu, não é assim tão
complicado".
E assim ficámos todos, todos, a olhar, mas sem ninguém se
aventurar a servir-se. Apenas o meu tio foi “obrigado” a servir-se e a comer
“só um bocadinho” como ele fez questão de dizer, porque estava sem “vontade” de
jantar. Saímos dali e fomos jantar.
Mas esta receita tão inovadora nunca mais foi esquecida.
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