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sábado, 23 de abril de 2016

Areia Branca - 29


Quatrocentos quilómetros de reta, era uma coisa impensável para nós. Não fosse o ar condicionado e estávamos fritas. O nordeste… tanto que me fascinava, pois tinha tudo a ver com África.  E lá íamos nós, por aquela estrada de alcatrão toda esburacada, que eram mais buracos que alcatrão. Mas era o que era. Sempre em frente, nem uma ligeira curva. Tudo reto, naquela imensa solidão, onde a água nos acompanhava sempre ao nosso lado. E tirando isso, nada mais havia. Tínhamos que ir falando, para Inajá não adormecer ao volante. Várias vezes lhe tinha perguntado se queria que conduzisse, mas ela respondia que não.

 

Deserto completo na paisagem vazia. Mas de repente, quando parecia que não havia a mais pequena possibilidade, eis que aparecia, vindo do nada, uma criança pequena que ainda mal sabia andar. De onde vinha aquela alminha, sozinha, tranquila, como que caída do céu? Era um enigma. E por ali andava brincando pertinho da água, sem se queixar, completamente à vontade, como se o céu e a terra fossem a sua casa. Eu ficava a olhar até a perder de vista, cansando os meus neurónios com tanta pergunta sem resposta. E lá íamos nós, seguindo o nosso rumo, estrada fora. 

 

E de repente aparecia um homem carregando sacos de rede com fruta, pendurados num pau que carregava no ombro, balançando para a frente e para trás, ao ritmo do caminhar suado. De chapéu de palha na cabeça, magro e seco, lá vinha ele junto à estrada. Como era possível? De onde viria e para onde iria? E a minha cabeça continuava a trabalhar sem descanso. Era tudo tão insólito! Mas ele continuava o seu caminho, indiferente ao resto, ignorando até a nossa passagem. 

 

E lá seguíamos nós o nosso trajecto, quilómetros e quilómetros naquela estrada sem fim, até que, a páginas tantas, aparecia uma cabra brincando à beira mar. Sozinha, sem rasto de vivalma e sem as demais companheiras. E da mesma maneira que aparecia, desaparecia da nossa vista. Quanta solidão! Quanta estranheza naquilo tudo. E a reta nunca mais acabava e parecia que não ia a lugar nenhum. A paisagem era sempre igual, fiel a si mesma. 

 

Mas finalmente entrávamos em Areia Branca. Afinal havia um fim e esse fim tinha um nome: Areia Branca. Agora sim, havia gente, havia casas, havia tudo ou quase tudo que, por sinal, era muito pouco. 

 

Dona Xiquinha e seu António estavam à nossa espera e mais uma data de gente que estavam sempre lá por casa. Uns velhotes bem simpáticos que nos acolheram com toda a simpatia. Dona Xiquinha e seu António eram pais do Prefeito de Areia Branca, que vivia noutra casa mais moderna. Mas aquela casa era uma delícia e tinha um jardim cheio de flores, onde acorria uma fauna verdadeiramente fabulosa de pássaros, os mais variados e os mais raros. Uma coisa do outro mundo. Mas Areia Branca ainda mal tinha começado. No dia seguinte de manhãzinha, após o pequeno almoço nordestino, com direito a bolo de fubá e a tanta coisa que não estávamos habituadas, lá partimos à descoberta daquele paraíso. Trocámos o Honda por um bug e lá fomos, costa fora.

 

Areia Branca nunca mais acabava. Aquilo era lindo demais! Aquilo era liberdade que nunca mais acabava. Depois de andarmos mais uns quilómetros, eis que chegamos a areia branca, claro. Mas ali, que lugar era aquele? Uma rua com árvores pelo meio e casas, mais palhotas do que casas, dum lado e do outro? Um telefone começou a tocar. No meio da rua, junto a uma árvore, uma cabine telefónica, melhor dizendo, um orelhão. Saltei do bug e fui correndo para atender o telefone. Aquilo dava-me um gozo! Lúcia gritava “Inajá, o que vai ela fazer? Oh Lilly, tu não podes atender o telefone, sabes lá o que é, para quem é?” Inajá ria, enquanto respondia “deixi, deixi ela” e Lúcia com aquela cara de espanto, como se todos tivessem perdido o juízo e só ela estivesse lúcida. Enquanto isso eu gritava “Dona Lurdinha, dona Lurdinha” e alguém vinha correndo “já vai, já vai… muito agradicida, viu?”. Mas Lúcia continuava perplexa. Aquilo era muita confusão para a cabeça dela, que não conseguia perceber o que fazia uma cabine telefónica (orelhão) plantada ali no meio da rua e quem é que ia atender? Inajá e eu ríamos… aquilo era Areia Branca… Nordéstshe, Rio Grande do Norte, Brasil! Enquanto isso, dona Nené perguntava de onde éramos nós, de onde tínhamos vindo. De Lisboa, respondemos. “Di Lisboa, Portugau? Meu Deus, lá no fim do mundo?!” Aí, Lúcia rindo, não se conteve e logo respondeu “fim do mundo? Fim do mundo é aqui”, enquanto olhava para mim com ar incrédulo, de quem não quer acreditar no que ouve. 

 

Deixámos o bug no descanso e fomos à praia, àquela água irresistível. Sentei-me na areia com um côco fresco, bebendo a sua água adocicada que eu tanto, tanto amo e ali ficámos, olhando o nada, perdidas no horizonte, saboreando a simples existência. Já tínhamos passado por uma lagoa deliciosa para onde levámos as cadeiras do bar e nos sentámos com a água à altura das nádegas. Lúcia, com a sua caipirinha e eu com a minha água de côco. E deliciadas com aquilo tudo, olhávamos uma para a outra, rindo a bom rir, pensando o mesmo. Na RTP estavam todos a trabalhar, com os problemas de todos os dias, as chatices que sempre se repetiam, enfim… nós duas bem o sabíamos. E nós ali no maior bem bom. Oh vida boa!...

 

Caminhando ao longo da praia havia uma casa pequena. Cá fora, um homem e uma mulher estavam sentados à volta de uma mesa de madeira coberta com uma toalha de plástico aos quadrados vermelho e branco e em cima algumas garrafas de cerveja. Cada um tinha um copo de cerveja e no chão, junto à mesa, várias grades de garrafas, provavelmente vazias. Ainda em frente da casa, ligeiramente ao lado deles, um rapaz jovem estava estendido numa rede de tecido presa nas extremidades, em árvores que a sustentavam. O rapaz estava deitado de costas, com uma perna e um braço de fora, que tocavam no chão de terra, para ir balançando a rede. A casa estava à beira da estrada, metida por entre a folhagem das árvores e da mais vasta vegetação, naquela terra avermelhada. Não havia a mais pequena aragem. Nada mexia, a não ser, de vez em quando, o rapaz, que empurrava a rede lentamente, com um ar vagaroso e preguiçoso. Ali não era preciso fazer nada. Estava sempre tudo feito. A única coisa a fazer era beber para matar a sede. 

 

Isaurinha e seu mui dedicado esposo, continuavam agarrados à cervejinha, esvaziando garrafa após garrafa, sem darem conta do tempo, limitando-se a apreciar a vida, sem nada fazerem, à sombra das longas folhas das bananeiras, das mangueiras, dos coqueiros, naquele lugar que era só deles. Se era o fim ou o princípio do mundo, não sei. Ali estavam, olhando o mar, numa imensa paz, num bem estar infinito. Naquele extenso areal branco banhado pelo mar calmo, um barquito aqui, outro ali, areia branca era aquilo mesmo. Lúcia sempre se queixando do calor e o meu espírito vagueando ao sabor da saudade de perder aqueles momentos que me devolviam um sentimento tão especial, uma coisa gostosa, saborosa, longe da correria e do stress de todos os dias, em que às vezes tinha a sensação de que quase não tinha tempo para viver ou até mesmo, respirar. Areia Branca… tão fascinante.

 

Muito tempo atrás, minha irmã Guida, com vinte e poucos anos, passava ali as férias com as crianças e o marido. António, fazia questão de trocar S. Paulo por Areia Branca, sempre que os negócios o permitiam. Era ali que tinha passado grande parte da sua infância, por seus pais serem oriundos do nordeste. Como as crianças gostavam muito de praia, todos os dias deixava minha irmã na praia com os filhos e voltava para a cidade, a poucos quilómetros. Havia uma outra mulher que também fazia o mesmo, isto é, frequentemente ia com os filhos pequenos à praia. E as crianças começaram a brincar juntas, até que um dia, as duas mães decidiram juntar-se e começar a falar, tal qual as crianças. E a outra perguntava à minha irmã “você é Pórtuguesa, pela prónúncia”, ao que a minha irmã respondeu afirmativamente. “E como veio párá aqui” voltou a perguntar. Minha irmã respondeu que o marido era primo do Prefeito. Ela olhou para a minha irmã, com enorme espanto e respondeu “então você é Mágárida, casada com António, meu primo? Eu sou Altair, irmã do Prêfeito,  filha de seu António e D. Xiquinha".

 

Pois é, só que Altair tinha casa própria para as suas idas a Areia Branca e por isso ainda não tinha havido o encontro das duas famílias. Então as crianças eram primos e sem saberem estava tudo em família. Só por isso, ficou entre as duas uma amizade que nunca mais acabou.

 

E eu continuava obcecada com o quadro de Isaurinha e sua família. Quanta inveja aquilo me fazia pela tranquilidade. É verdade que me causava uma certa nostalgia, mas eu gostava daquela mistura de sentimentos. Era uma leve mostra de um passado ao qual, definitivamente, há muito eu já não pertencia. A minha realidade era tão diferente, presentemente. Era a cidade de uma Europa, de uma cultura diferente e… e sei lá. Parecia que ali não havia chatices. De vez em quando, Isaurinha ia até à cidade com seu amado esposo, que a levava ao cinema. E, além de se amarem, que mais fariam nas suas pacatas vidas?!

 

O sol já começava a baixar, a ficar mais suportável, enquanto aquele cenário ia desaparecendo, levando a minha nostalgia e também a minha saudade, para me centrar no momento presente. Para Lúcia aquela viagem tinha sido um acontecimento marcante e muito louco na vida dela. Para começar, nunca tinha viajado de avião. Depois, não era uma viagem propriamente curta. Para quem tinha medo, pavor de andar de avião, foi uma grande loucura. Decididamente, ela tinha que perder o medo, caso contrário, não poderia ir. Então, o seu subconsciente se encarregou desse trabalho e assim, todas as noites ela sonhava. Quando chegava à RTP dizia-me “já consegui subir dois degraus da escada até ao avião(!)”. Isto acontecia nos sonhos, enquanto dormia durante a noite. E logo de seguida acordava, o que significava que apenas conseguira fazer aquele esforço, que não fora tão pouco assim. No dia seguinte voltava a dizer “já consegui subir mais dois ou três degraus(!)” e novamente acordava naquele ponto. Todos os dias no sonho fazia esse trabalho, até que um dia, muito excitada, chegou ao pé de mim, com um sorriso de vencedora. A auto estima dela estava lá em cima, dizendo “Lilly, consegui, amiga, consegui entrar no avião(!)”. Estava feliz e excitada que nem uma criança. Eu olhava para ela fascinada. A minha amiga estava pronta para aquela que seria a grande viagem da sua vida. E com aquela viagem aprenderia tanta coisa! Aprenderia, se não, a comer caju, pelo menos, a saber da sua existência e não só da castanha, como é verdadeiramente comum. Caju é muito mais que uma castanha. A castanha é só o pé. Caju é o fruto mais suculento e delicioso que conheço. Caju é fruto dos “deuses”. Só come caju quem ama loucamente caju. E eu sou tão louca por caju que, um dia, em plenas dunas, quando a minha água já havia acabado e eu estava a ficar completamente desidratada e sem pingo de energia, debaixo daquele calor e do sol escaldante, contra tudo e todos, fiz parar o bug e fui correndo para um pé de caju bravo que passava rasteirinho ao chão e quase despercebido, porque a sua côr é amarela e não vermelha, e ignorando as advertências de todos, colhi um, colhi dois, colhi três cajus, os mais maduros e depois de limpar o pó maior, ignorei também os problemas que daí podiam advir e chupei, chupei todo o caju, um por um. E à medida que punha à boca e ía passando do primeiro para o segundo, do segundo para o terceiro, a minha sede era saciada e a minha energia revigorada. Estava verdadeiramente renovada. “Você vai ficá duentshe” dizia Inajá, com Lúcia aproveitando a deixa "oh, Lilly, não comas essa porcaria"...


E o litoral ia sendo percorrido naquela calma toda, como se o tempo não se esgotasse, como se a vida nunca acabasse.



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