As instalações estavam
literalmente a meio gás, porque o número de trabalhadores, era visivelmente
reduzido. Notava-se bem a ausência de movimento e a falta de barulho e,
portanto, o silêncio era maior. Também não havia os habituais grupinhos do
cafezinho nem do cigarrinho. Contrariamente ao que era habitual, reinava uma
grande calmaria. Um estranho, talvez não desse por nada. Mas para quem lá
estava há anos sem conta, era impossível não perceber o défice de pessoal e de
tudo o mais.
Claro que havia uma razão. E a
razão era um evento qualquer, que estava a decorrer não sei onde, porque já lá
vão uns vinte anos e não tenho a menor ideia do que quer que era. Eram tantos
os eventos, tantos os acontecimentos e outras coisas mais, que não tem como me
lembrar. Impossível.
Nessa altura, eu era secretária
da Direcção Técnica. Toda a estrutura estava dependente de mim, no que se referia
a secretariado. Mesmo a parte administrativa, grande parte, era centralizada na
minha pessoa. Eu encaminhava o que tinha que encaminhar, para onde tinha que seguir,
e coisas mais específicas eram mesmo só comigo. Havia toda uma hierarquia que
nunca mais acabava. Director, subdirectores, chefes de repartição, chefes de
secção, responsáveis, etc…
Posso dizer, com toda a verdade,
que a minha experiência naquela casa era mais que muita. Já tinha passado por
tanta coisa e trabalhado com tanta gente! E, às vezes, era preciso ter muita
paciência, mas muita mesmo. E mesmo com muita paciência, às vezes era difícil.
Um, quer de uma maneira, outro, quer de outra; um quer fazer, outro não… o fim
da picada. Depois, ainda havia os que eram “responsáveis” só de título e para
ganharem dinheiro, mas responsabilidade nem sabiam o que isso era. E isso fazia
com que sobrasse para quem não devia ou para quem não tinha nada que ver com o
assunto. Era uma casa de loucos.
Num destes dias em que estava a
decorrer esse tal evento, que deslocou meio mundo para lá, há uma colega que me
liga, porque o vídeo do senhor doutor tal, com quem ela trabalhava, ou
secretariava, não estava a funcionar. Segundo ela, ainda no dia anterior tinha
estado a trabalhar, mas agora não dava sinal de vida. E como era urgente, queria
uma pessoa para resolver o problema “já”.
Maravilha! Vinha mesmo a calhar.
Sem pessoal, onde é que eu ia inventar alguém para lá ir? É que, até os
próprios chefes, estavam para fora. Aquele assunto era para a manutenção. Mas
não havia ninguém, eu sabia. Nem valia a pena passar a bola para ninguém,
porque a resposta eu sabia qual era. E não precisava. Era um assunto para eu
resolver. Em trinta e oito anos que trabalhei naquela casa, nunca ninguém me
deu ordens, nem me disse o que eu tinha que fazer. Eu sabia perfeitamente o meu
lugar, as minhas responsabilidades e o que estava a meu cargo. E neste caso,
nem me ia dar ao trabalho de falar com quem quer que fosse, simplesmente porque
não havia pessoal para mandar lá. Todos os técnicos estavam destacados no exterior.
Numa situação normal, eu ligaria para a manutenção e perguntava se havia alguém
livre para ir ver este ou aquele trabalho. Não precisava sequer de pedir ao
chefe. Mas neste caso, nem uma coisa, nem outra. Era o que era.
A colega que me ligou era muito decidida
e quando ela queria uma coisa, essa coisa tinha que ser. Eu sabia porque,
muitas vezes tive que intervir, isto é, tive que servir de mediadora,
precisamente porque ela queria o que queria e pronto. Neste caso, que era
directamente comigo, não tinha como lhe resolver o problema. Mesmo que eu
falasse com alguém mais acima, um subdirector técnico, por exemplo, ele
dir-me-ía que não havia ninguém. Tinha que esperar. Só que eu não ia chegar a
esse ponto, nem me ia expor, só porque era ela. Por isso, ouvi a questão, e
disse-lhe que estava toda a gente para fora, mas ia ver o que podia fazer.
Quando desliguei o telefone,
ciente de que não podia resolver o problema, ainda assim, pensei que tinha que
fazer alguma coisa. Não valia a pena seguir as vias normais, porque era uma
perda de tempo, mas apesar de tudo tinha que actuar. Tinha que ter uma reposta.
E enquanto retomava o trabalho, a minha cabeça começou à procura de uma
solução, que não havia. Ela tinha dito que o vídeo ainda no dia anterior tinha
estado a trabalhar e naquele dia não trabalhava. Pois, hoje estamos vivos,
amanhã, podemos não estar. As coisas estragam-se. O material técnico avaria-se.
É a vida.
E a minha cabeça não parava de
trabalhar, para ter uma ideia do que fazer. Ainda liguei para a manutenção,
mas, claro, ninguém atendia, porque não estava lá ninguém. E, se por acaso,
estivesse, mesmo assim, duvido que pudesse lá ir, porque estaria ocupado com
algo do exterior, sem poder perder tempo com um vídeo que não funcionava, ainda
que fosse de um membro da administração.
Passaram-se algumas horas e antes
que ela voltasse a ligar, para evitar chatices, decidi que eu mesma iria lá.
Para quê? Isso não sabia. Talvez para ganhar tempo, ou para que ela entendesse
que não havia mesmo ninguém para resolver o problema. E milagres ninguém podia
fazer. Por isso levantei-me, saí da minha sala, ou do meu open space,
percorri todo o corredor até ao outro extremo do edifício principal, das
instalações da RTP nos Olivais, apanhei o elevador até ao segundo piso e lá fui
em direcção à sala da minha colega e amiga Sílvia.
Abri a porta, espreitei e lá
estava ela sentada à secretária. Quando me viu, levantou-se, veio na minha
direcção e cumprimentámo-nos precisamente no meio da sala. Sílvia, em ar de
queixa, repetiu o que já me tinha dito ao telefone. O vídeo ontem estava a trabalhar.
Hoje não trabalha. Já tentámos várias vezes e nada. Não sei se foram as
mulheres da limpeza… não trabalha. E enquanto falava, apontava para a parede
onde estava a televisão, com o vídeo numa prateleira por baixo. Enquanto ela
falava eu ainda continuava a pensar no que é que eu tinha ido ali fazer. Perder
tempo, só isso. Mas ao olhar para a direcção que ela apontava, vejo realmente a
televisão e o vídeo por baixo. Lá estava ele, direitinho, bonitinho, e sem
trabalhar, de facto.
Mas, de repente, a minha sensação
de alívio foi indescritível. Sem querer, eu tinha mesmo resolvido o problema. A
minha ida não tinha sido em vão e mandar lá um técnico tinha simplesmente sido
uma total perda de tempo. Olho para ela, que estava com uma cara pouco
agradável, embora não fosse nada comigo, mas estava com um ar chateado, e
pensava para comigo mesmo, porquê? Sílvia, disse-lhe eu, o vídeo não trabalha
porque está desligado, amiga. A ficha não está na tomada.
Ah!?... Pois… … …
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