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terça-feira, 5 de maio de 2015

No tempo em que os animais falavam - 17


Há poucos anos atrás, quando aos fins de semana o Álvaro e eu íamos para a casa de campo em Alcobaça, aconteceu uma coisa incrível. Para quem é muito relacionado com a natureza e especialmente com os animais do campo, pode até nem ser, mas para mim que, forçosamente sou citadina, onde sempre fui criada, cresci e vivi, este episódio é algo revelador.

 

As fábulas contam as histórias “no tempo em que os animais falavam”. Neste episódio fiquei a saber que os animais falam de verdade e da forma mais inteligente possível.

 

Chegámos a Covões, Alcobaça, ao final da tarde de uma sexta-feira. Correu tudo normalmente como era costume. Acomodámo-nos, jantámos, vimos um pouco de televisão e depois fomos dormir. O som do campo… ah, que delícia! Que sossego. Eu chegava lá e esvaziava a minha cabeça. Era um sossego absoluto. Às vezes ouviam-se as gargalhadas ou as vozes das crianças de uma moradia próxima, que alegremente quebravam o silêncio, mas tirando isso, nada mais se ouvia. A estrada passava longe e não havia ruídos de espécie alguma. A moradia do lado era de um casal de emigrantes que raramente lá iam, pelo que os patos da quinta mais próxima se encarregavam de se banhar e conspurcar por completo a piscina. E tirando a passarada, que era muito bem vinda, ouviam-se uns cães de uma outra quinta próxima. Nada mais. Era um sossego abençoado por Deus e que tanto bem nos fazia. 

 

Ali, perdíamo-nos no silêncio e no silêncio encontrávamos tudo o que precisávamos para um verdadeiro descanso. Mas naquela sexta-feira, já estávamos na cama, quando me apercebi de que havia uma ovelha a dar sinal de vida porque, de vez em quando, fazia méheheheeee… e então percebi que já a tinha ouvido antes de me deitar. Não havia nada de mais nisso. Estávamos no campo. Mas eu nunca tinha ouvido anteriormente. Talvez fosse algum animal recém-chegado àquelas paragens.

 

No outro dia de manhã quando acordei, o Álvaro já andava na vida dele, como era costume. Tratava do jardim, limpava a piscina e até o pequeno-almoço preparava, para tomarmos juntos quando eu acordasse. E lá estava de novo a ovelha… méheheheeeee… que coisa estranha. De repente achei que a tinha ouvido até durante a noite, no meu sono profundo, se é que era possível. Talvez fosse apenas impressão minha, já que a tinha ouvido mesmo antes de adormecer. Continuava a ser normal uma ovelha a fazer méheheheeee, mas… mas eu achava que aquilo podia querer dizer alguma coisa. Na verdade, não devia ser nada. Estava tudo bem.

 

O sábado passou-se connosco nas nossas lidas de fim-de-semana, com algumas saídas e descanso à mistura. Como era bom o “dolce far niento” do campo… oh vida boa! Só que, no meio de tudo isto, não deixávamos de ouvir a ovelha.

 

E chegou novamente a noite, sendo que, na verdade, aquilo já me estava a incomodar, porque eu tinha a sensação de que ela estava a chamar. Quem? Porquê? E não havia ninguém por perto, os donos, por exemplo? Que estranho! Comecei a falar no assunto e o Álvaro pôs-se à escuta e depois deu uma espreitadela, enquanto acabava de dar as últimas fumaças no cigarro da noite, dando uma volta à casa, no exterior, para ver se captava alguma coisa.

 

No domingo a nossa rotina repete-se. E a nossa ovelha também. Volta e meia, lá vinha o méheheheeeeee. Até comentei que ela não se cansava e provavelmente já antes da nossa chegada estaria a fazer méheheheeee. Até o Álvaro já estava a achar aquilo estranho. Mas não era nada connosco!

 

No domingo ao fim da tarde, começámos a preparar-nos para bater em retirada. Fechou-se a casa e entrámos no carro. Abriu-se o portão e entrámos no caminho de terra batida que dava acesso à estrada de Covões, para apanhar a estrada principal. E já quase a chegar à estrada, a ovelha chama novamente:  méheheheeeeee. Olhámos na direcção do méh e parámos o carro. Havia aí uma quintinha, cujos donos não residiam lá. Iam lá de vez em quando. Saímos do carro e acercámo-nos do muro que era relativamente baixo. 

 

As ovelhas estavam todas juntas. Uma delas estava de pé, com a cabeça enfiada da rede de vedação e não conseguia tirar a cabeça. Enfiou-a, mas não saía. Há quanto tempo estaria naquela situação aflitiva? Nós tínhamos chegado na sexta-feira e ela já estava a chamar, portanto não fazíamos ideia de há quanto tempo estaria ali presa. Mas o mais interessante é que, como estava de pé havia muito tempo e porque já estava muito cansada, além de que não comia nem bebia, uma outra estava agachada no chão, no dorso da qual ela se apoiava, tentando assim resistir ao cansaço. Todas as restantes estavam em volta. 

 

O Álvaro trepou o muro, saltou para dentro e tirou a cabeça da ovelha, fazendo tudo voltar à normalidade. Entrámos no carro e prosseguimos a nossa viagem até Lisboa com uma enorme sensação de alívio. Mas aquela cena para mim foi indescritível. Quem ensinou à ovelha a sentar-se no chão a fim de que a outra se pudesse apoiar? Quem ensinou aos animais uma palavra que às vezes os homens esquecem e se chama “solidariedade”? 


Bom, a palavra, eu não sei se eles conhecem, mas o sentimento sim. Estava lá, expresso na atitude dos animais. Aliás, não podia estar mais expresso do que estava. Eu estava absolutamente fascinada e ma-ra-vi-lha-da.

 

Então os animais falam ou não? E precisam? Há uma comunicação inteligente que nos escapa e na verdade não necessitam nem de falar. 

 

O tempo em que os animais falavam é “hoje”.