Faz agora um ano eu estava de regresso
de uma longa viagem ao Bangladesh, onde estive dezoito dias. Uma viagem longa,
com dois voos e muitas esperas nos aeroportos. Mas fui e vim e tudo correu bem.
Tive uns probleminhas relacionados com a alimentação, por causa da sobrecarga
de especiarias que eles usam e da insistência em se comer de tudo o que fazem e
oferecem, tive até que ir ao Hospital onde fiquei internada uma noite com soro,
mas a coisa foi pacífica.
Esta viagem fez-me voltar atrás
no tempo, relembrando-me situações idênticas ou muito semelhantes. Antes de ir,
fui bastante avisada daquilo que achava que nunca aconteceria, porque, na minha
ótica, não tinha a menor razão de ser. Mas estava enganada. Eles sim, estavam
certos. Diziam que viria gente, muita gente para me ver. E eu pensava, porquê(?).
Achava que não havia nenhuma razão para isso. Contudo, reafirmo, eles estavam
certos. Era a família, os amigos, os vizinhos… uma coisa inexplicável.
Ao contrário da Índia, o
Bangladesh não tem turistas. A Índia vive infestada de turistas por todo o
lado. O Bangladesh não. Deve haver, como por todo o mundo. Mas não é comum. E
nos “sítios”, isto é, nos lugarejos fora das cidades, ainda muito menos. Aí, as
pessoas nascem e morrem sem nunca terem visto um desigual a si mesmos. Aparecer
num sítio desses é o mesmo que aparecer para nós um extraterrestre. Foi isso
que me aconteceu. As pessoas acorriam em massa para ver uma mulher de pele
branca, que nunca tinham visto ao vivo. Talvez na televisão, mas jamais na sua
frente. Senti-me uma verdadeira estranha, uma intrusa, uma peça isolada de tudo
o que me rodeava.
Não foi fácil lidar com isto.
Sobretudo as mulheres, elas queriam tocar em mim, olhando-me de cima a baixo,
na cor dos olhos, do cabelo, no tom de pele por todo o corpo… diziam que eu era
muito bonita e eu não entendia porquê. Referiam que as minhas feições eram
muito finas e por isso bonitas. Mas eu não conseguia entender. Por mim, eu
achava-os bem interessantes, a começar pelo tom de pele bem morena. Eles, pelo
menos, não precisavam de se castigar à torreira do sol para se bronzearem,
porque já nasceram bronzeados. Não precisavam de gastar dinheiro com
bronzeamentos artificiais, como um pouco por todo o mundo se faz hoje em dia.
Eles não precisavam de injetar botox, ou seja lá o que for, para terem os lábios
mais volumosos, porque os têm de seu natural. E tudo está ao contrário. Todos
querem ser o que não são.
Em consequência deste padrão,
apesar dos meus setenta anos, todos queriam estar comigo e levar-me aqui,
levar-me ali, enfim… o caso é que foi muito interessante. Até no hospital, não
sei quantas pessoas, homens e mulheres, consegui reunir à minha volta. Eles
vinham saber se precisava de alguma coisa, se estava tudo bem e queriam saber
coisas a meu respeito, bajulando-me sem razão aparente e tratando-me como uma
verdadeira pedra preciosa, sempre fazendo questão de evidenciar a minha
especial beleza, o que para mim era inconcebível, deixando-me sem reacção.
Quando saía do vilarejo e a
multidão começava a aumentar - porque aquilo é uma imensa população, gente e gente
que nunca mais acaba – e como o trânsito é muito, mas muito lento, por causa
dos tucs, dos rickshaws, mas também por causa das estradas
alagadas pelas monções, pela quantidade de carros, etc… o facto é que é tudo
muito lento, muito devagar, muito parado e as pessoas olhavam para mim pensando,
talvez, que tinham visto errado, por isso voltavam a olhar fixamente. Para os
conseguir desviar e tranquilizar eu acenava com a cabeça em pose de
cumprimento. Se fossem homens com os kufis na cabeça, como os mais
velhos usam, além de cumprimentar com a cabeça e o olhar, fazia a postura das
mãos unidas ao peito. O facto é que eles apreciavam esse gesto, reagindo
muito positivamente, porque não só devolviam, como o seu ar se tornava muito
mais leve, sinal de que me aceitavam e isso era muito bom.
Às mulheres eu cumprimentava com
um sorriso ou também com as mãos unidas em frente do peito, conforme fosse. As
crianças eu acenava-lhes com a mão, sorrindo, e elas ficavam muito felizes. Quando voltava ao sítio, toda a gente começava a sair de casa para virem na minha direção,
rodeando-me, envaidecendo-me e admirando-me simplesmente. Era uma coisa
incompreensível e inimaginável!
E nunca ninguém me perturbou pelo
facto de eu não me vestir de acordo com os princípios deles. Eu continuava a
usar calças curtas e blusas sem manga, o que para eles é impensável. O facto é
que sempre me respeitaram como sou, da mesma forma que os respeito a eles e a
quem quer que seja, por que motivo for. Decididamente, sou uma pessoa crente,
mas sem religião. Todavia, respeito incondicionalmente cada um, com quaisquer
que sejam as suas ideias, convicções, ideologias, etc. Cada um tem o direito de
ser como quer ser. Nesta filosofia de vida sinto-me no direito de estar
incluída.
No entanto, se fosse muito
importante, eu seria capaz, enquanto lá estive, de usar as roupas delas sem
problema nenhum, caso fosse muito, muito importante. Eu o faria sem me sentir
obrigada a isso. Faria porque queria. Por uma questão de respeito. Só isso.
Felizmente que essa questão não se pôs e assim eu me senti completamente em
liberdade, tendo sido sempre eu, fiel a mim mesma, fazendo tudo o que me
apeteceu e achei correto.
Posso dizer com toda a verdade
que a minha empatia com eles foi excecional, não tendo havido nunca nada de estranho,
nem o menor desconforto perante as diferenças, que são imensas, garantidamente.
A minha passagem pelo Bangladesh foi uma coisa memorável que, enquanto viver,
jamais esquecerei. Porque foi lindo, revestindo-se de uma beleza toda especial.
Isto fez-me andar para trás no
tempo, recuando uns trinta e tal anos atrás, quando estive de férias na Grécia.
Não tem comparação, porque a Grécia tem muito turismo, turismo que nunca mais
acaba. Mas a situação tem algo de semelhante, muito embora aí, houvesse uma razão
ou motivo especial. Eu era a mulher o Riaz, um paquistanês com quem tive um
relacionamento de sete anos. Ele foi para lá trabalhar e como as saudades eram
muitas, fui lá de férias duas semanas.
A Grécia tem muitos turistas, de
todas as nacionalidades. O Verão é quente, com uma água de mar maravilhosa,
acessível na questão de preços, por isso muita gente aproveita. No meu caso, eu
fui lá por um motivo: estar com o Riaz. Mas também conhecer a Grécia, claro, no
que não me arrependi. E fui mais que bem recebida. Sentia-me uma rainha.
Puseram à minha disposição uma bela vivenda, com um jardim maravilhoso, à beira
da estrada e do outro lado o mar, pronto para me receber a qualquer hora,
especialmente quando o calor apertava.
Na Grécia tive que ir com o Riaz
a muitas casas de pessoas com quem ele trabalhava e que o conheciam bem, porque
queriam conhecer a mulher Portugália (portuguesa) do Riaz. Era uma coisa do
outro mundo. Todos os dias a senhora da casa ia lá para regar o jardim e ver se
eu precisava de alguma coisa. Os vizinhos iam levar frutas, legumes, tudo muito
bom, muito fresco. Havia um hotel ali mesmo ao lado e estavam sempre a
convidar-me para ir lá. Aonde quer que eu fosse, toda a gente me olhava com
olhos de ver, de admirar. Perguntavam quantos vestidos eu tinha, etc… era muito
estranho. E quando fui com o Riaz à advogada que tratava da papelada dele, ele
entrou no gabinete dela e eu fiquei sentada no sofá da sala de espera, onde o
ângulo de visão dava para ver a secretária dela. Espantosamente, ela desvalorizou
completamente o assunto dele, para vir cá fora falar comigo. Dirigindo-se a
mim, parecia que se tratava de outra pessoa que não eu, pela maneira superior e
altiva com que ela me cumprimentou e me cortejou. Eu levava um vestido
comprido, como todos os meus vestidos do dia a dia e um chapéu, como é muito
normal em mim. Não sei se ela achou isso uma coisa especial, o facto é que
estava encantada com a minha humilde presença, tendo feito uma longa conversa,
onde me contava que já tinha estado em Portugal e tinha gostado muito,
fazendo-me sentir uma pessoa muito importante, imagine-se!? Eu não conseguia
entender.
Realmente, na Grécia, eu fui uma
estrela na terra. Sentia-me uma deusa. Não tenho palavras para descrever tudo o
que me aconteceu, nem todas as situações por que passei. Quando penso que até
as crianças, numa noite de calor, enquanto comia um marisco dos deuses,
dançaram o Zorba para mim, não consigo deixar de ficar emocionada. Foi lindo!
Parecia que os deuses conspiravam para que eu me sentisse num verdadeiro
paraíso.
Por outro lado, recuando ainda
mais no tempo e talvez mais outros tantos anos, penso que quando nasci, em
1952, no antigo estado da Índia Portuguesa, eu era considerada uma criança
especial. Segundo os meus pais faziam questão de me falar e “lembrar”, as
crianças indianas rodeavam-me e adoravam-me, dizendo que eu era muito bonita,
muito linda. Hoje, analisando todas estas situações, acredito que há em mim
qualquer coisa como uma espécie de empatia por povos bem diferentes daquele que
represento, qualquer coisa que me atrai e os atrai a eles também, qualquer
coisa que nos liga e que eu entendo como uma coisa intrínseca ao meu eu mais
profundo, que não sei de onde vem, mas que faz parte de mim, sem dúvida. Diria
mesmo que é uma coisa espiritual, uma coisa inerente à alma humana e, portanto,
impossível de decifrar.
Voltando ao Bangladesh, se fosse
outra mulher branca que não eu, teria tido a mesma recepção? Talvez, mas não
tanto. A questão é que, se eu os fiz despertar, por outro lado, eles fizeram
com que eu me abrisse para eles a cem por cento e isso é recíproco. Só
recebemos quando damos e nem todos estão receptivos a essa troca.
Na Grécia, com tantas mulheres
bonitas de todas as nacionalidades, eu parecia que tinha sido escolhida de
entre todas. Foi só a situação em si? Não. Eu estava aberta à receptividade,
admirando todas as gentilezas que me proporcionavam, o que sem dúvida aumentou
a fasquia de ambas as partes.
Na Índia, se eu tivesse sido uma
criança chata e aborrecida, as crianças indianas teriam gostado de mim só por
eu ser branquinha?! As crianças não são todas iguais. Há crianças
comunicativas, outras nem tanto. É a alma de cada um que define a empatia com
os outros, a qualidade de comunicação com o mundo, com o universo holístico.
E apesar de não ter sido
registada com um nome indiano, como a minha mãe tanto queria, a vida logo se encarregou
de resolver o assunto. O meu nome de batismo é Maria Luísa, porque quando o meu
pai me foi registar, simplesmente se esqueceu do nome que a minha mãe queria e
porque naquela altura não havia telemóveis, lembrou-se de me pôr o mesmo nome
de uma sobrinha que tinha nascido recentemente e a minha mãe não teve outro
remédio senão aceitar.
Mas logo ficou no esquecimento,
porque as crianças me achavam tão bonita como uma flor que lhes é
particularmente querida e que tem o nome de Lilly. Todas me tratavam por Lilly
e todas me queriam pegar ao colo e brincar comigo, sem parar de comentar como
eu era linda. Imagine-se!? Mas isso teve tanta repercussão que mudou
completamente o meu nome de Maria Luisa, que rapidamente foi esquecido pelos
meus pais e por toda a família, para ser única e exclusivamente até hoje: Lilly.