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sábado, 8 de agosto de 2015

A falsa O.S. - 19


A história passa-se na Direcção Técnica da Rádio. As duas empresas já estavam juntas, mas ainda em espaços diferentes. É claro que eu não estava lá, porque nunca trabalhei na rádio. Contudo, quando nos juntámos, ouvi contar a história tantas vezes, que me sinto com legitimidade para a descrever. 

AC era um colega muito porreiro e querido, que se prestava à brincadeira. De baixa estatura, barba rasteira, usava óculos com umas lentes que lhe aumentavam imenso os olhos e que nunca tirava. Conforme fazia questão de lembrar, a mulher não gostava de o ver sem óculos, porque ficava com os olhos muito pequeninos. 

Era um indivíduo curtido, até hoje, bem humorado e sempre com a piada certa, fizesse rir ou não. Passava a vida a contar piadas e anedotas que nos punham sempre a rir muito, na maioria das vezes porque realmente tinham piada, outras vezes, porque não tinham piada nenhuma mas, só por isso, já nos dava um enorme gozo e acabávamos rindo do mesmo jeito, como se tivesse tido imensa graça. 

Mas era uma pessoa com quem se podia contar. Amigo, camarada, o problema era o “profissionalismo”, tão profissional, que às vezes deixava de fazer o que tinha que fazer, por achar que não lhe ficava bem… e tudo em nome do profissionalismo. Enfim, cada um é como é. 

O seu sonho era subir, subir, não por ser pequenino(!), mas porque queria um cargo à “altura”. E como era casado pela segunda vez, sonhava que um dia haveria de fazer uma surpresa à mulher, com uma nomeação a sério, de modo a ficar muito bem visto e lhe fazer ver que tinha feito bem em ter investido nele e, em boa verdade, não se pode dizer que essa sua aspiração de subir na vida não fosse legítima, já que todos têm esse sonho, mas uns mais do que outros e outros ainda bem mais. 

A sua grande paixão era a engenheira TA, loura, de olhos azuis, bonita, interessante e culta. Muito sua amiga, mas que lhe dava muito trabalho, sobretudo quando resolvia tirá-lo do sério, a que ele resistia heroicamente, devo salientar. Era um espectáculo e tanto. A adrenalina subia que não era brincadeira. 

Sabendo todos da sua grande aspiração, subir na vida, ter um cargo como deve ser, um dia a engenheira TA, bem disposta e especialmente inspirada, resolveu pregar-lhe uma bela duma partidinha. Pegou numa ordem de serviço antiga, fez um texto adaptado à circunstância no qual era nomeado o engenheiro CP, então chefe de ambos, para Director, e AC para subdirector. Estava ali tudo direitinho com as assinaturas perfeitas do Conselho de Administração e tudo na maior perfeição. Ninguém diria que tudo aquilo era falso, porque estava feito com todo o primor, com excepção no que toca ao conteúdo, mas isso é outra história. 

E sai a ordem de serviço número não sei quantos, que foi devidamente distribuída pelos funcionários, os quais foram previamente avisados para a brincadeira que se estava a fazer. 

AC e seu chefe, engenheiro CP, tinham ido tomar um cafézinho da praxe e quando voltaram, tinham em cima das respectivas mesas a dita ordem de serviço. O engenheiro CP viu, leu e ficou quieto, pensativo. AC leu e mal tomou conhecimento de que tinha sido nomeado para subdirector, entrou de imediato em transe completo e absoluto. Queria falar e nem podia. Com o nervosismo, até os óculos lhe caíram e a primeira coisa que fez foi pegar no telefone e ligar para a sua “Maria”. 

Toda a direcção estava a postos, observando o espectáculo. AC tremia que nem varas verdes e logo que a mulher atendeu, começou a gaguejar, que nem a voz lhe saía. Mas, gaguejando e soluçando, lá começou desfazendo-se de sua justiça, contando o feito e salientando que sempre lhe dissera que tinha a certeza de que um dia seria reconhecido o seu talentoso profissionalismo com todo o seu merecidíssimo mérito, etc… etc… etc… Bestial! AC estava no sétimo céu, com tudo a que tinha direito. Os outros não, claro. Ele era assim e cada um é como é… 

O homem estava em choque, tremendo e transpirando por todos os poros, mas toda a Direcção Técnica da Rádio também e não menos. Aquilo era para ser uma brincadeirinha, só que ninguém podia supor que a coisa tomasse proporções tão alarmantes. Isso, ninguém poderia imaginar, pois se alguém tivesse imaginado, jamais a brincadeira teria saído, com toda a certeza. 

O engenheiro CP, que tinha ficado introspectivo com aquela história e como tem bastante mais do que dois dedos de cabeça, achou que aquilo não podia ser, que ali havia coisa, só não sabia qual era a coisa e como é um indivíduo de boa fé, sensato e tudo o mais, nunca pensou que aquilo pudesse ser uma brincadeira e muito menos, vindo de onde veio. Mas também ninguém podia adivinhar que a reacção fosse tão catastrófica!?

E ouvindo o estardalhaço do amigo, que se desfazia de tanta importância, pegou na ordem de serviço e informou que ia pessoalmente à Administração, saber que raio de coisa era aquela, que para ele não fazia sentido nenhum. Só que aí, os colegas fizeram barreira, detendo-o, para a confusão que estava feita não ser ainda maior e pouco a pouco começaram a fazê-los entender que tudo não passava de uma brincadeira. 

E enquanto o engenheiro CP respirava de alívio, os sonhos de AC caíam por terra, desmoronando-se e desfazendo-se que nem castelos de areia na praia.

 

 

Cada um é como é!...

 

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Rosas brancas - 18


Rosas brancas, frágeis… uma aragem mais forte e desfolham-se com toda a facilidade. Frágeis na cor, frágeis na estrutura, depressa começam a perder as pétalas e uma por uma segue o seu próprio caminho.

 

De novo? Um, dois, três, quatro… cinco… no regresso, seria a sexta vez que passava por ali, completando três dias de idas ao clube de Vela e lá estava ele. Que drama!... Como era possível? Há pessoas que nos surpreendem pela positiva, outras pela negativa. Era o caso. Até tive dificuldade em reconhecê-lo. “Parece”… pensei eu. Não parece, é. Sem dúvida nenhuma. Que coisa diabólica!

 

Parei um pouco, por entre a roseira branca, observando a figura. Parecia um tonto, coitado. Era uma pessoa de estatura baixa, mas normal. Agora, parecia que estava por metade da altura. Umas calças larguíssimas, que não pareciam dele e um casaco com uns ombros muito largos que lhe chegava até aos joelhos, quando não devia ultrapassar a zona da coxa. Inacreditável!

 

O cabelo grisalho, quase todo branco e bastante grande, mas acima de tudo, com um ar descuidado. Uma mala a tiracolo, enorme e muito cheia, que carregava com imensa dificuldade e vários sacos de plástico em que, constantemente, mexia e remexia. Assim se arrastava. Dava dois passos, parava. Trocava de mão os sacos e voltava a andar mais dois passinhos para voltar a parar. Olhava para todos os lados e trocava novamente os sacos, olhando para dentro deles, como se tivesse esquecido alguma coisa. Dir-se-ia que tinha acabado de ter sido expulso de casa e amedrontado, não sabia o que fazer nem para onde ir. Que tristeza!

 

Não me apetecia ver mais. Talvez devesse falar-lhe, mas não tinha a coragem de o fazer. Devia ir ter com ele e trocar algumas palavras, tentar entender o que se estava a passar… em vez disso, mais uma vez, fingi que nada via, continuando o meu caminho. Era dramático.

 

A aragem dissipava o calor, amenizando a temperatura, ao mesmo tempo que dispersava as pétalas das rosas, tão suaves, tão macias, embora feínhas, excepto uma ou outra, cuja beleza também pouco duraria. Cheirei-as e fiquei deliciada. Que perfume, que aroma levemente adocicado, que elixir delicioso! Inspirei, expirei e voltei a inspirar profundamente, mas com toda a lentidão, para tirar o máximo partido daquele prazer delicioso e esquecer aquele drama.

 

Um pequeno triângulo no meio da rua, que podia ser uma rotunda, mas tinha a forma de triângulo. Um botequim lá plantado e mesas com bancos de madeira. Em volta, uma cercadura de arbustos verdes, quebrada aqui, quebrada ali, com algumas flores pelo meio. Uma música suave, não muito alta… bastante agradável. Alguns velhotes sentados, conversando uns com os outros ou somente vendo quem passava. Carros estacionados por ali e em volta os prédios antigos e velhos do Poço do Bispo.

 

E eu ali parada, agora no segundo pé de roseira branca, um pouco mais adiante, presa naquele drama que tanto me entristecia. O estranho… bem, o estranho era tudo… mas o mais estranho é que, de todas as vezes que ali tinha passado, lá estava ele, naquele sítio!? Era uma coincidência muito desagradável, porque não me parecia normal. Ou ia para algum lado ou vinha de algum sítio, mas encontrá-lo ali, sempre que eu por lá passava… era caótico, a menos que estivesse lá sempre e não fosse a lado nenhum. Seria possível? Parecia um pedinte! E tinha um ar de desgraçadinho… Como é que pode? … E segui para o clube, com todas estas coisas na cabeça.

 

Tinha sido meu colega durante trinta e muitos anos, quase quarenta. Trabalhava na Contabilidade e era um bom profissional. Tinha-se reformado bastante mais cedo do que eu, pois era um pouco mais velho. Uma pessoa normal, com uma vida normal, comum. Mas aquele não era o mesmo, era uma sombra dele. Uma boa pessoa, incapaz de fazer mal a uma mosca. Humilde, bem formado, com um ar servil, sim… mas agora? Quem era aquela estranha criatura? E sempre naquele sítio!? Não era uma simples coincidência. Ele estava ali sempre. Ainda não tinha falhado uma só vez e isso é que me deixava intrigada, porque encontrá-lo uma vez… duas vezes… tudo bem, acontece. Mas sempre e do mesmo jeito, com a mesma sacola e os sacos de plástico, igualzinho?!… Era assaz incomodativo.

 

 

A aula terminara e ficámos conversando, numa troca de impressões uns com os outros. O clube era um edifício muito antigo, espaçoso, com uma sumptuosa escadaria que, em tempos idos, devia ter sido um luxo. Agora, estava tudo muito velho. E enquanto descia as escadas com o corrimão de madeira e rebordo dourado, atapetadas com uma larga passadeira de alcatifa vermelha, pensava comigo mesma, que agora ia ter a coragem de ir ao seu encontro e tentar perceber alguma coisa. Era o mínimo que podia fazer. O exercício físico tinha-me feito bem e o espírito estava mais leve e disposto a encarar aquela realidade, fosse o que fosse.

 

Saí a porta das instalações do clube e atravessei a rua para o jardim, em direcção ao carro. Parei no jardim junto ao primeiro pé de rosas, olhando em volta. Havia a música, os velhotes sentados, o autocarro na paragem, os táxis estacionados à espera de clientes, os carros para lá e para cá, as oficinas abertas e os mecânicos a trabalhar. A vida acontecia. Olhei para o relógio e era meio-dia, mas ele não estava em parte nenhuma e era a primeira vez que tal acontecia.

 

Cheirei as rosas: uma, duas, três vezes. Cheirei uma e outra e outra, enquanto prendia uma pétala entre os dedos. Como era bom aquele perfume, meu Deus!? Fiquei a olhar as roseiras, meio abandonadas, meio esquecidas. Aquelas rosas brancas, frágeis e deliciosamente cheirosas, que perfumavam o ar, exalavam um aroma inebriante que chegava a embriagar. Talvez por isso, por serem tão cheirosas, os velhotes se acomodassem por ali… não, seguramente, não era. Era por causa do botequim. Ninguém via as rosas, ninguém cuidava delas, nem sequer olhavam para elas. Era como se nem existissem.

 

E ele não estava. Pela primeira vez não estava ali. A minha missão não fora cumprida, mas a minha tarefa estava simplificada. Ali, onde a vida acontecia da forma como tinha que acontecer, segui o meu caminho em direcção ao carro. Uns estavam, outros iam. Uns vivendo tranquilamente, na paz do seu canto; outros, num mundo submerso, de escuridão e sombras, passando ao lado de tudo, num vazio permanente. O drama da vida. 


Soltei a pétala que estava presa nos meus dedos e deixei-a ir, também ela com seu lema. Ficaria horas sem fim, mergulhada no perfume que o vento suavemente dispersava e ao mesmo tempo dissipava pelo ar, seguindo o seu percurso intemporal e eterno, sem pedir licença para passar…