Translate

quarta-feira, 14 de junho de 2023

O "baptismo" de Sofia - 77

 

Sofia nasceu a 27 de Junho de 2011, o que fez com que 2011 tivesse sido um dos anos mais felizes e importantes da minha vida. E nasceu em Cambridge, porque o pai estava a trabalhar na Microsoft. É claro que isso fez com que os avós tivessem que se deslocar a Inglaterra, para verem de perto aquela miniatura de gente, pela primeira vez, o que não era pouca coisa. Era uma alegria e uma felicidade imensa. Por questões familiares, fui a última da lista e quando lá cheguei, Sofia estava com quinze dias de vida. Era mesmo uma coisinha pequenininha, tão pequenina, que eu não me lembrava mais, de como eram pequeninos os bebés quando nascem.

Quando cheguei perto dela, estava ao colinho da sua linda mommy, pois tinha acabado de mamar. Era uma grande felicidade, ver a minha pequenina pela primeira vez, ao vivo e a cores, sem ser através das câmaras. Era mesmo uma niquinha de gente. E eu pensava, meu deus, como vai esta coisinha vingar, crescer e ser gente!? Bem, gente já ela era, mesmo dentro da barriguinha da mãe, mas uma coisinha tão fofa e tão minúscula! Era uma emoção muito, muito grande.

Mas é assim que todos nascemos e vimos a este mundo!? Pequenos demais e completamente indefesos, esperando que cuidem de nós com todo o amor possível e com todos os cuidados necessários, para podermos enfrentar este mundo maléfico e medonho, onde há tanta ruindade, nomeadamente com as crianças, as nossas crianças, lindas e adoradas e às vezes tão maltratadas por esse mundo fora.

Aí, a minha tarefa começou: cuidar de tudo aos mínimos detalhes, para os pais se sentirem confortáveis e poderem ter um pouco de descanso. Porque não? Se pudermos fazer a diferença, porque não!? Apesar de já adultos e com um filho, são sempre as nossas crianças. Assim, a minha rotina estava traçada sendo que, de manhã à noite, havia sempre o que fazer. O pai ia para o trabalho e a mãe, que tinha ido de propósito para Inglaterra, para que a sua menina nascesse com o pai presente, ficava em casa cuidando dela.

Todos os dias eu fazia uma pequena limpeza à casa, interior e exterior, a fim de a manter sempre limpa. Todos os dias eu cozinhava, cuidava da roupa e saíamos para ir às compras. Compras no supermercado ou compras para a pequenina, com alguma coisa que sempre faltava e nos fazia ir, entre outras lojas, à Mothercare, onde havia de tudo para miniaturas de gente.

O bairro onde eles viviam era muito agradável. Os prédios eram todos individuais, em vez de colados uns nos outros. Todo o espaço em volta era cuidadosamente ajardinado e fiel ao estilo rústico, tão característico dos ingleses e de que eu tanto gosto. A varanda era enorme, onde havia uma mesa com cadeiras e ainda espreguiçadeiras para relaxar. Todos os dias de manhã passava um camião da Câmara, com grandes mangueiras, para limpar as varandas. Depois, era esperar que secassem e podermos fazer uso daquele tão aprazível espaço.

Estar naqueles apartamentos era como estar integrado na natureza, com todas as comodidades mínimas à nossa disposição. Tudo o que fazíamos era rodeado de ar puro, luz e beleza natural. Não havia cortinados. Todos os moradores tinham sempre tudo aberto, inclusive nos quartos. Também não havia “mirones”, é claro. Cada um preocupava-se consigo e nada mais. Se as pessoas se deitavam para dormir ou descansar, era problema deles. Se estavam na cozinha, era lá com eles. Fosse o que fosse que estivessem a fazer, não incomodavam nem eram incomodados, com toda a certeza, o que era fantástico e que eu tanto admirava, porque é o meu jeito de viver.

Sofia passava grande parte do tempo, quieta, dormindo e acordando entre as mamadas, embalada no seu baloiço da Mothercare, sem dar trabalho. Mas ao fim da tarde, a pequenina chorava. A essa hora já o pai estava em casa e os dois punham-na no carrinho e levavam a sua bebé para passear no jardim. Ela acalmava um pouco, mas logo recomeçava o choro muito intenso, muito incomodada e muito irritada. Ninguém sabia o que fazer para a calar, porque parecia que não queria nada, mas o facto é que fazia a sua birra.

Ao terceiro dia da minha estadia, pensei para comigo mesma que aquilo não podia ser e tinha que haver uma maneira de ultrapassar aquela cena da criança chorar tanto, sempre à mesma hora. E então, enquanto a mãe trocava a sua fraldinha, percebi que ainda não lhe davam banho. Lavavam-na apenas como se fosse uma recém-nascida. Mas porquê, se estava tudo bem com ela, se o umbigo estava óptimo, não havendo motivo para descartar uma boa banhoca!? Falei com a minha nora e disse-lhe que estava na hora da menina tomar banho de banheira, o que lhe faria muito bem e na certa a acalmaria, porque todos os bebés adoram a água. Ela ficou a olhar para mim, pensando e sem saber muito bem o que dizer.

Pensei… é isso, está mais do que na hora. E na presença da mãe e do pai, comecei a comandar as coisas para lhe dar banho, o que ao mesmo tempo serviria de aprendizagem para os dois. E foi bem interessante ver a ansiedade de ambos, querendo ver como segurar a menina, para não se afundar na água, como tê-la toda por inteiro e completamente segura apenas numa mão, para ter a outra livre e passar o sabonete, etc…

Por esta altura eu tinha os dois, pai e mãe, um de cada lado. A pequena banheira começou a encher e expliquei-lhes como saber se a temperatura da água estaria bem. No dia seguinte, compraríamos um medidor da temperatura da água, para ser mais fácil. Os dois estavam excitados e ao mesmo tempo maravilhados, pois era uma novidade que entrava na rotina de ambos: a hora do banho da sua bebé. A banheira ficou com o nível de água suficiente e a uma temperatura considerada ideal. Sofia continuava a chorar ou a berrar, enquanto a roupinha ia sendo tirada, e já o pai dizia que, no dia seguinte, seria ele a dar-lhe banho, enquanto eu esboçava um sorriso de felicidade.

Finalmente, toda nuazinha, segurei nela apoiada no meu braço direito, com o esquerdo a ajudar, fazendo-a entrar aos poucos, aos pouquinhos, muito lentamente. Assim que sentiu os pezinhos dentro da água quentinha, o choro dela, que por esta altura era ainda mais forte, talvez pelo facto de estar despida, embora a casa tivesse aquecimento, o seu corpinho deu sinal de algo diferente. Diferente, mas agradável. Continuei a mergulhá-la devagarinho, com os dois muito ansiosos, um de cada lado, e Sofia começou a acalmar. À medida que entrava na água e reconhecia o conforto de um banho quente, o seu ar de satisfação era notório. O seu rosto adquiria um sorriso esvaído, mas muito sentido, como quem diz: “mas o que é que me está a acontecer?” Na verdade, era a primeira vez que entrava na água para um banhinho. E aquela sensação não lhe passou despercebida, claro está. A sua sensibilidade estava a registar todo o bem-estar que aquilo produzia no seu minúsculo ser. Era como se nos dissesse: “é bom, é muito bom, podem continuar…”

Uma coisa indescritível. Os pais, não menos deliciados do que ela. E eu sentia a leveza de toda aquela situação, agradecendo à vida por me ter levado até lá, permitindo-me ser a primeira a “baptizar” a minha pequena Sofia que, agora, já completamente mergulhada na água, apenas com a cabecinha de fora, se deliciava, com toda a água à sua volta. O choro já tinha desaparecido. O seu rostinho de fúria e desagrado, dava agora lugar a um sorrisinho tão agradável e gostoso, que dava gosto ver. Sofia estava deliciada com a sua banhoca e respirava fundo, descontraída e relaxada. Sentia-se a felicidade dela em todo o seu ser, por todo o lado. Estávamos impregnados daquela energia que nos iluminava a todos, trazendo-nos imensa paz, amor e alegria. Sofia saboreava com prazer e deliciada, a sua nova experiência nesta vida: o seu primeiro banho.


sábado, 11 de março de 2023

O telemóvel - 76

 

A Lúcia e eu decidimos ir almoçar fora. Não tinha nada a ver com o que quer que fosse que o refeitório da RTP tivesse para aquele dia. Apenas, uma vez por outra, apetecia-nos espairecer na hora do almoço.

Decorriam as olimpíadas e todas as televisões dentro da empresa, num canal ou noutro, não falavam em outra coisa. E lá fomos nós em busca de um lugar diferente.

Saímos das instalações da Avenida 5 de Outubro e fomos até ao Chimarrão que nessa altura havia no Campo Pequeno, mesmo ao lado da Praça de Touros. Era um espaço gigante, onde acorria sempre muita gente que trabalhava ali naquelas redondezas e provavelmente outras pessoas vindas de outros lados. Para nós, estava óptimo. Eram meia dúzia de passos e lá estávamos nós.

Como era um espaço bem amplo, normalmente havia sempre lugar. E além de ser chimarrão, havia alternativas à ementa. Portanto, estava bem para qualquer um. A Lúcia sempre foi uma óptima companhia, porque estava sempre bem disposta. Tudo para ela era motivo de gargalhada e gozação. A descontração morava dentro dela, o que eu invejava grandemente, no bom sentido. Para ela nunca havia drama. Drama não ligava com a personalidade dela, de jeito nenhum. Nunca conheci ninguém assim.

Chegadas ao Chimarrão, procurámos uma mesa vaga e sentámo-nos. Na parede de fundo, lá estava um écran gigantesco e, como não podia deixar de ser, a transmitir os Jogos Olímpicos. Mas enfim, dado que estávamos fora do nosso local habitual, não nos afectava muito.

Logo de seguida chegaram dois indivíduos, que se sentaram numa mesa bem pertinho, logo a seguir à nossa. Lembro-me de que os dois chegaram, tiraram os respectivos casacos, ou sobretudos, puxaram das cadeiras e tomaram lugar à mesa. E é então que, sem querer, ouço um deles dizendo ao outro que o tinha chamado para irem ali almoçar, porque os dois tinham um assunto de trabalho para conversar e ele achava que seria mais proveitoso fora do local de trabalho, a fim de não serem interrompidos nem importunados com outros assuntos, etc, etc, etc, ao que o outro logo concordou, dizendo que estava plenamente de acordo e que tinha sido uma excelente ideia.

Ouvindo esta conversa, ainda que sem querer, pensei para comigo mesmo, que iam tratar de trabalho, o que não era o nosso caso. A Lúcia e eu íamos simplesmente espairecer. Talvez dizer disparates e falar de tudo menos de trabalho. Para isso não teríamos ido ali. Eu não queria de todo estar a ouvir a conversa dos dois, nem de ninguém. Mas eles estavam tão perto de nós, que era impossível não ouvir. Mesmo estando nós duas a falar uma com a outra, mesmo assim, ouvia-se, mesmo não querendo.

Dito isto, e enquanto tinham a ementa já nas mãos, eis que toca o telemóvel de um deles, que logo atende, dando início à conversação. Chegou o empregado, que o fez interromper a conversa ao telefone por uns instantes, mas logo recomeçou. O empregado retirou-se com ele ainda ao telemóvel e antes mesmo que a conversa terminasse, tocou o telemóvel do outro, que logo atendeu. Entretanto, o primeiro terminou, ficando em silêncio, pois o segundo estava agora a falar ao telemóvel.

A Lúcia e eu já tínhamos sido servidas e limitávamo-nos a saborear o nosso rico almoço, bem diferente do refeitório. E enquanto comíamos íamos conversando e parando, conversando e parando. Dizendo as nossas larachas e rindo das parvoeiras que íamos relembrando.

Entretanto os nossos amigos, parceiros de negócio, também já tinham iniciado o seu almoço. A diferença entre eles e nós, é que enquanto nós comíamos e conversávamos uma com a outra, eles comiam e falavam ao telemóvel. Acabava um, começava o outro. E às tantas eram os dois ao mesmo tempo. Que gente tão solicitada, pensava eu. Nem o almoço lhes dava o merecido prazer, porque ainda por cima as conversas eram longas. Longas a falar, longas a ouvir do lado de lá. E sempre que um começava a falar com o outro, por ausência de telefonemas, era certo que a conversa não ia para além de duas ou três palavras, pois eram logo interrompidos pelos telemóveis.

E nós na boa, descontraídas, carregando as baterias para mais uma tarde de trabalho e de olimpíadas, também, mas depois de uma boa e saborosa refeição.

Curiosamente o nosso almoço terminou mais ou menos ao mesmo tempo que o deles, pois quando chamámos o empregado para pagar, eles aproveitaram e fizeram o mesmo. E tal como nós, pediram a conta, pagaram, levantaram-se, voltaram a enfiar os casacos e guardaram os telemóveis nos respectivos bolsos.

Os dois tinham ido para uma conversa especial, segundo palavras deles, com uma certa importância. Tão importante que convinha ser fora do local de trabalho. Para quê? Para não serem importunados por nada nem ninguém.

Mas… !?


sábado, 19 de novembro de 2022

O vídeo - 75

 

As instalações estavam literalmente a meio gás, porque o número de trabalhadores, era visivelmente reduzido. Notava-se bem a ausência de movimento e a falta de barulho e, portanto, o silêncio era maior. Também não havia os habituais grupinhos do cafezinho nem do cigarrinho. Contrariamente ao que era habitual, reinava uma grande calmaria. Um estranho, talvez não desse por nada. Mas para quem lá estava há anos sem conta, era impossível não perceber o défice de pessoal e de tudo o mais.

Claro que havia uma razão. E a razão era um evento qualquer, que estava a decorrer não sei onde, porque já lá vão uns vinte anos e não tenho a menor ideia do que quer que era. Eram tantos os eventos, tantos os acontecimentos e outras coisas mais, que não tem como me lembrar. Impossível.

Nessa altura, eu era secretária da Direcção Técnica. Toda a estrutura estava dependente de mim, no que se referia a secretariado. Mesmo a parte administrativa, grande parte, era centralizada na minha pessoa. Eu encaminhava o que tinha que encaminhar, para onde tinha que seguir, e coisas mais específicas eram mesmo só comigo. Havia toda uma hierarquia que nunca mais acabava. Director, subdirectores, chefes de repartição, chefes de secção, responsáveis, etc…

Posso dizer, com toda a verdade, que a minha experiência naquela casa era mais que muita. Já tinha passado por tanta coisa e trabalhado com tanta gente! E, às vezes, era preciso ter muita paciência, mas muita mesmo. E mesmo com muita paciência, às vezes era difícil. Um, quer de uma maneira, outro, quer de outra; um quer fazer, outro não… o fim da picada. Depois, ainda havia os que eram “responsáveis” só de título e para ganharem dinheiro, mas responsabilidade nem sabiam o que isso era. E isso fazia com que sobrasse para quem não devia ou para quem não tinha nada que ver com o assunto. Era uma casa de loucos.

Num destes dias em que estava a decorrer esse tal evento, que deslocou meio mundo para lá, há uma colega que me liga, porque o vídeo do senhor doutor tal, com quem ela trabalhava, ou secretariava, não estava a funcionar. Segundo ela, ainda no dia anterior tinha estado a trabalhar, mas agora não dava sinal de vida. E como era urgente, queria uma pessoa para resolver o problema “já”.

Maravilha! Vinha mesmo a calhar. Sem pessoal, onde é que eu ia inventar alguém para lá ir? É que, até os próprios chefes, estavam para fora. Aquele assunto era para a manutenção. Mas não havia ninguém, eu sabia. Nem valia a pena passar a bola para ninguém, porque a resposta eu sabia qual era. E não precisava. Era um assunto para eu resolver. Em trinta e oito anos que trabalhei naquela casa, nunca ninguém me deu ordens, nem me disse o que eu tinha que fazer. Eu sabia perfeitamente o meu lugar, as minhas responsabilidades e o que estava a meu cargo. E neste caso, nem me ia dar ao trabalho de falar com quem quer que fosse, simplesmente porque não havia pessoal para mandar lá. Todos os técnicos estavam destacados no exterior. Numa situação normal, eu ligaria para a manutenção e perguntava se havia alguém livre para ir ver este ou aquele trabalho. Não precisava sequer de pedir ao chefe. Mas neste caso, nem uma coisa, nem outra. Era o que era.

A colega que me ligou era muito decidida e quando ela queria uma coisa, essa coisa tinha que ser. Eu sabia porque, muitas vezes tive que intervir, isto é, tive que servir de mediadora, precisamente porque ela queria o que queria e pronto. Neste caso, que era directamente comigo, não tinha como lhe resolver o problema. Mesmo que eu falasse com alguém mais acima, um subdirector técnico, por exemplo, ele dir-me-ía que não havia ninguém. Tinha que esperar. Só que eu não ia chegar a esse ponto, nem me ia expor, só porque era ela. Por isso, ouvi a questão, e disse-lhe que estava toda a gente para fora, mas ia ver o que podia fazer.

Quando desliguei o telefone, ciente de que não podia resolver o problema, ainda assim, pensei que tinha que fazer alguma coisa. Não valia a pena seguir as vias normais, porque era uma perda de tempo, mas apesar de tudo tinha que actuar. Tinha que ter uma reposta. E enquanto retomava o trabalho, a minha cabeça começou à procura de uma solução, que não havia. Ela tinha dito que o vídeo ainda no dia anterior tinha estado a trabalhar e naquele dia não trabalhava. Pois, hoje estamos vivos, amanhã, podemos não estar. As coisas estragam-se. O material técnico avaria-se. É a vida.

E a minha cabeça não parava de trabalhar, para ter uma ideia do que fazer. Ainda liguei para a manutenção, mas, claro, ninguém atendia, porque não estava lá ninguém. E, se por acaso, estivesse, mesmo assim, duvido que pudesse lá ir, porque estaria ocupado com algo do exterior, sem poder perder tempo com um vídeo que não funcionava, ainda que fosse de um membro da administração.

Passaram-se algumas horas e antes que ela voltasse a ligar, para evitar chatices, decidi que eu mesma iria lá. Para quê? Isso não sabia. Talvez para ganhar tempo, ou para que ela entendesse que não havia mesmo ninguém para resolver o problema. E milagres ninguém podia fazer. Por isso levantei-me, saí da minha sala, ou do meu open space, percorri todo o corredor até ao outro extremo do edifício principal, das instalações da RTP nos Olivais, apanhei o elevador até ao segundo piso e lá fui em direcção à sala da minha colega e amiga Sílvia.

Abri a porta, espreitei e lá estava ela sentada à secretária. Quando me viu, levantou-se, veio na minha direcção e cumprimentámo-nos precisamente no meio da sala. Sílvia, em ar de queixa, repetiu o que já me tinha dito ao telefone. O vídeo ontem estava a trabalhar. Hoje não trabalha. Já tentámos várias vezes e nada. Não sei se foram as mulheres da limpeza… não trabalha. E enquanto falava, apontava para a parede onde estava a televisão, com o vídeo numa prateleira por baixo. Enquanto ela falava eu ainda continuava a pensar no que é que eu tinha ido ali fazer. Perder tempo, só isso. Mas ao olhar para a direcção que ela apontava, vejo realmente a televisão e o vídeo por baixo. Lá estava ele, direitinho, bonitinho, e sem trabalhar, de facto.

Mas, de repente, a minha sensação de alívio foi indescritível. Sem querer, eu tinha mesmo resolvido o problema. A minha ida não tinha sido em vão e mandar lá um técnico tinha simplesmente sido uma total perda de tempo. Olho para ela, que estava com uma cara pouco agradável, embora não fosse nada comigo, mas estava com um ar chateado, e pensava para comigo mesmo, porquê? Sílvia, disse-lhe eu, o vídeo não trabalha porque está desligado, amiga. A ficha não está na tomada.

Ah!?... Pois… … …


segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Férias na quinta - 74

 

“Escuta, ó Senhor das águas misturadas!

O imóvel dispersa-se, e o movente permanece”

(Basavanna)

 

Dois dias depois de chegarmos aos Açores, para mais umas férias de Verão com a família do meu marido, o Padre Domingos decidiu que íamos todos para a quinta, a fim de mudar de ares e espairecer um pouco. Como com tudo era ele que mandava, as suas ordens eram sempre para cumprir. Assim, depois de ter feito duas viagens para levar algumas coisas que era importante ter lá, à terceira fomos todos enfiados no carro, rumo à quinta, que ficava a uns vinte quilómetros de Ponta Delgada.

A quinta estava há muito tempo desabitada. Por isso, tanto no interior como no exterior, estava tudo numa lástima. A minha sogra por lá andou a matar-se a fazer algumas limpezas essenciais, mas, ainda assim, estava tudo num deus nos acuda. Acontece que eu não ia de férias, propriamente, para andar metida em limpezas e, portanto, tive que me sujeitar. O meu marido, esse, ficou para trás, claro, porque não lhe apetecia ficar na quinta, longe de tudo e do seu passatempo, o trabalho, porque apesar de estarmos nos Açores, a RTP para ele continuava, de férias ou sem férias, uma vez que não sabia fazer outra coisa na vida e porque todos os seus amigos eram os colegas de trabalho.

Já eu, queria ter direito a férias e estar longe ou fora do trabalho, onde estava o ano inteiro. Se, para ele, a vida era só trabalhar, por dever e por gosto, para mim, havia muito mais coisas do que o trabalho. Havia a casa, o filho, a família, etc. Portanto, se alguém precisava mesmo de férias, esse alguém era eu, com toda a certeza. Só que, a bem da verdade, as férias nos Açores eram sempre um massacre. Ele chegava, pousava a bagagem, que incluía o filho e eu, e pirava-se imediatamente para fora, para onde lhe apetecia, para fazer apenas e somente o que queria e lhe convinha. Era eu que tinha que ficar em casa com o filho e toda a família, sem reclamar ou refilar.

Na quinta, tudo era poeira e teias de aranha. No piso de baixo havia uma enorme cozinha e uma sala de jantar bem grande, assim como uma sala de estar que era um autêntico salão. No piso de cima eram os quartos. A casa era muito bonita e enorme, mas no estado de completo abandono em que estava, passava completamente despercebida. Era difícil esquecer toda a lixeira e bagunça para a poder apreciar devidamente. Havia um espaço enorme no exterior, totalmente desaproveitado. Ali, em tempos idos, existia uma hortinha razoável e um pomar, onde ainda havia árvores de pé. À volta da casa tinha um espaço para lazer, outrora muito bem ajardinado, onde as flores teimavam em desabrochar, no meio de toda a erva daninha.

O meu cunhado e a mulher, esses, despacharam os filhos, de imediato, para a quinta, para estarem com a avó, uma vez que o primo, o meu filho, estava lá. Mas a questão não era essa, estarem com o primo. A verdadeira razão é que eles tinham um medo e um ciúme desgraçado de que a avó se apegasse mais ao meu filho do que aos deles, por ele só ir lá de férias no Verão e no Natal. Como se isso fosse possível!? Aquelas crianças, a Catarina, com mais um ano e o André com menos um, passavam tanto tempo com a avó, porque a mãe não tinha paciência para os aturar, que era impossível a minha sogra vir a gostar mais do meu filho do que dos deles.

Com tudo isto, eu acabava sempre por ter três em vez de um, sendo que era bem mais difícil aturar os outros que o meu. É a vida. Para o meu marido, tudo isto passava ao lado. Se lhe falasse nisso ou se tivesse algum desabafo com ele, logo diria que era até muito bom, para que o Henrique tivesse convivência com os primos e tal e coisa. Não é que não tivesse razão, porém, quem aguentava com tudo em cima era eu. E tinha mesmo que ser assim, caso não fosse, a minha sogra não suportaria toda a carga que sempre tinha em cima dela. Ela aguentava coisas que eu não compreendia porquê. O facto de aceitar ir para ali já era um sinal disso. Era muito mais fácil para ela ficar em casa. Era, no mínimo, mais sossego, mais descanso. Ela sempre tinha uma barra pesada, onde quer que estivesse, mas em casa dela, pelo menos, tinha tudo organizado, sem precisar de mais esse adicional.

E pronto, lá estávamos, a aguentar as férias ou o que quer que fosse. Eu já sabia que só ia descansar quando voltasse ao continente, à minha casa e, a bem dizer, à minha rotina. Mas não tinha outro remédio. Cada um tem a vida que merece. É complicado quando uns podem fazer tudo o que querem e nunca o que não querem e outros têm sempre que fazer apenas e somente o que não querem.

Num sábado à noite, quando entrei na cozinha, onde a minha sogra passava a maior parte do tempo, porque ainda por cima a culinária dela não era propriamente simples e muito menos rápida, percebi que, em cima da gigantesca mesa de jantar, estava alguma loiça que pensei que seria para pôr na mesa. Quando lhe perguntei, respondeu que o Domingos queria comer lá fora. Se ele queria comer lá fora, queria isso dizer que todos iríamos jantar lá fora. Era uma ordem. Mais uma. Mas lá fora porquê? Aquilo iria dar um trabalho desgraçado. Claro que isso para ele não importava nada. Mas era comodista ao ponto de querer lá fora apenas para não ter de levantar o rabinho dali.

Sempre a seguir ao almoço ele batia uma sorna, fosse ou não para a igreja. Primeiro, tinha que arranjar tempo para a sua soneca. E naquele dia não foi diferente. Mas depois disso, levantou-se e foi lá para fora, sempre com o seu precioso missal, sentando-se à mesa de pedra que havia debaixo de uma árvore, que tinha uma copa enorme, e onde se ficava resguardado do sol. Sentado no banco de pedra com o missal aberto em cima da mesa, ali ficou a tarde toda, compenetradíssimo no que estava a ler.

Então, a minha sogra explicou-me que ele lhe tinha dito que queria comer lá fora, porque não se queria levantar dali. Isso foi logo o que pensei, mas aquilo era o cúmulo. Como podia ser?! Mas ele era assim mesmo. A mesa não ficava longe da cozinha para ir andando a pé. Mas para comer lá fora, era uma grande maçada para a pobre da minha sogra, que não ia ter sossego. Enquanto ele ia ficar ali refastelado, a ser servido de toda a maneira e feitio, a coitada não ia parar de andar para fora e para dentro, carregando com tudo. Não, não podia ser. Achei que aquilo não era tolerável de maneira nenhuma e fiquei muito incomodada.

Então pensei para comigo mesma que desta vez, pelo menos desta vez, as coisas iam ser diferentes e não iam ser do jeito dele. Por isso disse à minha sogra que não se preocupasse que eu resolvia por minha conta e risco. Fiz de conta que não sabia da imposição dele e comecei a pôr a mesa dentro de casa. A minha sogra percebeu imediatamente o meu plano e embora receosa, não se manifestou nem me contrariou, aceitando tudo o que eu estava a fazer.

Quando tudo estava pronto para o jantar, chamei as crianças para a mesa e fui lá fora ao encontro do Padre Domingos, que continuava imperturbável, agarrado à sua importantíssima leitura. Aproximei-me calmamente, dizendo-lhe, simplesmente, que a mesa estava posta e estávamos todos à espera dele, pelo que agradecia que viesse para dentro.

Vagarosamente, parou a leitura e levantou um pouco a cabeça, enquanto com um ar extremamente calmo e apenas com uma ligeira admiração, perguntou se não jantávamos ali. Do mesmo jeito calmo e tranquilo, respondi que não, que a mesa estava posta lá dentro, enquanto me fui desviando, propositadamente, de retorno a casa, para não lhe dar oportunidade de questionar fosse o que fosse, nem fazer comentários que não me interessavam de todo.

Para meu espanto, percebi que se moveu lentamente, fechando o livro e levantando-se com todo o vagar, seguiu-me em direcção a casa, onde entrou e sem reclamar absolutamente de nada, sentou-se à mesa para o jantar. Pensei para comigo mesma, “tudo em ordem, tudo na boa”. Pelo menos desta vez, só por uma vez, ele teve um comportamento aceitável e adequado, rem refilar, sem reclamar. Só por esta vez, a minha sogra ficou um pouco mais aliviada e tudo correu na perfeição. Às vezes temos que ter a coragem para fazer a diferença.

 

“O imóvel dispersa-se, e o movente permanece”

sexta-feira, 1 de julho de 2022

Fim de ano - 73

 

Ainda adolescente, com dezassete anos, deixei a vida de estudante que tinha em Setúbal, onde vivia com a minha avó e os meus primos, para vir para Lisboa trabalhar e ser independente, porque estava farta da vida que tinha desde que a minha mãe faleceu. E fiquei a viver em casa dos meus tios, bem no centro da cidade.

Vim porque queria a minha independência e a minha liberdade. Por isso comecei a trabalhar no Ministério das Finanças, onde a minha tia há muito trabalhava. Foi bom ter vindo. Era um grande passo na minha vida. Porém, independência e liberdade ainda estavam por vir, porque a minha tia me fazia uma super vigilância e todos os passos que ela dava eu era obrigada a dar também.

Saíamos do Ministério às dezassete horas e trinta minutos e antes de irmos para casa havia sempre alguma coisa para fazer, porque ao chegar tinha a mesa posta e tudo mais que perfeito e pronto à espera dela e do marido. Por isso podia dar-se ao luxo de ter sempre algum lado aonde ir. Ou ia à missa ou comprar alguma coisa, ou simplesmente ver as montras da baixa, enfim, alguma coisa havia de preencher o tempo antes de ir para casa. E eu tinha que ir a reboque. Não havia alternativa. Comecei a trabalhar assim que cheguei a Lisboa, em Agosto de 1970, ainda com dezassete anos, para fazer os dezoito logo em Setembro. E a vida era isso. Trabalhar e andar atrás da tia, quisesse ou não. Não havia querer da minha parte. Até que Dezembro chegou e com ele muita coisa mudou.

Como sempre, os meus tios começaram a pensar no seu fim de ano. Eles viviam para as viagens e para as festas. As suas festas, pois elas eram só deles e de mais ninguém. E o fim de ano estava planeado. Então, o que fazer com a minha pessoa? Para eu não ficar em casa com a empregada, decidiram que iria a uma festa de uma colega do Ministério. Uma colega com quem eu não tinha a menor intimidade, que só conhecia de vista, que era ainda bastante jovem, mas que parecia uma velha autêntica, pela maneira como se vestia e se arranjava. Mas era uma pessoa de confiança da minha tia e, portanto, eu podia ir passar o fim de ano com ela, como se precisasse de quem tomasse conta de mim e me vigiasse!?

Era uma grande chateação aquela decisão. Mas deus escreve direito por linhas tortas. Sem dúvida. Ela tinha um irmão padre e iam fazer uma festa de paróquia, o que para a minha tia era muito seguro para mim. Ou ficava em casa ou ia à festa da paróquia com o padre e a “freira”. Boa! E acho que movida mais pela curiosidade do que por outra coisa qualquer, eu fui. Mas com toda a verdade eu achava que ia ser um tédio de todo o tamanho. Enfim, cada um tem o que merece.

A festa era, nem mais nem menos, num armazém vazio de Alcântara, na Avenida Marginal. Um casarão vazio, com uma pequena mesa redonda coberta com uma toalha bem simples, onde havia coisas para comer, que as pessoas voluntariamente e eventualmente iam trazendo. Havia uma aparelhagem de som e uma ou outra cadeira. Uns poucos caixotes que não se sabia o que continham e de resto estava vazio, com todo o espaço livre, frio e pouco acolhedor. Mas como tinha aquelas janelas enormes em meia lua, características de todos aqueles edifícios na marginal, pensei que me poderia entreter e esquecer… ficando a observar a vista do rio e a folia do lado de fora.

Não fazia ideia de onde me ia meter, em todo o caso, era fim de ano e a minha tia tinha-me oferecido nesse ano um vestido muito bonito que me tinha comprado aquando das suas férias no Verão em Paris. Muito simples, em malha, todo direito e colado ao corpo, embora sem exagero, com manga comprida e muito curtinho, branco e prateado, em que praticamente só se via o prateado. Depois calcei uns sapatos de verniz pretos, de salto, também muito simples, o meu cabelo curto de costume, sem ordem para deixar crescer, e os olhos esfumados com as pestanas bem pintadas, lá fui eu para a “festa”, longe de imaginar como seria o meu primeiro fim de ano, com dezoito anos acabadinhos de fazer, ingénua e sem experiência nenhuma da vida.

Ao chegar, as poucas pessoas que lá estavam, tudo gente velha para a minha idade, velha e sem graça, tudo “beatas” e nada mais, de volta do padre, todos olharam para mim sem uma única palavra, apenas me olhando. Fiz o mesmo. Exatamente o mesmo, sentindo-me como peixe fora de água. Mas nem por isso me importei. Tinha sido empurrada para ali e não era por isso que eu ia ser igual aos outros, nem mostrar o que não era que, aliás, não tinha porque esconder.

O padre aproximou-se e falou que eu era bem-vinda e que podia ficar à vontade, como se houvesse algo para não ficar. Pensava para comigo mesma, como seria a noite ou o tempo que ali passaria, no meio daquela gente que mais pareciam peças de museu. Era essa a minha sina e tinha que me aguentar.

Quando consegui livrar-me do padre fui até uma das janelas em meia lua e como o parapeito tinha uma largura considerável, decidi sentar-me com os joelhos dobrados e os braços à volta. E aí fiquei olhando ora para dentro ora para fora, à procura do que seria mais interessante: se o nada que existia ali dentro ou a noite que aparecia do lado de fora, apesar de tudo, bem mais atraente. E ali fiquei, com alguns olhares em cima de mim, com certeza achando estranha a minha posição pouco convencional e em cima do parapeito, depois de me terem oferecido uma cadeira e eu ter rejeitado. Paciência. Eu era assim.

E a noite mostrava-se daquele jeito, naquela pasmaceira, com música sem graça e nenhum entusiamo da parte de ninguém. Até que, por volta das onze horas, as coisas mudaram como que por obra do espírito santo. Sem mais nem menos, vejo entrar pela porta dentro um grupo de rapazes e raparigas mais ou menos da minha idade, que vindos não sei de onde, mudaram completamente o panorama da “festa”.

Eram seis. A primeira coisa que fizeram foi mudar a música. De seguida começaram todos a dançar em grupo. Caramba! Agora já apetecia olhar e ver a alegria e a energia que começava a mudar. E então começaram a chamar por mim, para me juntar ao grupo. Bem gostaria, mas a timidez não me deixava arrancar dali. Por isso continuei no meu posto de observação, embora já com um sorriso nos lábios. Várias vezes insistiram, mas eu sempre abanando a cabeça, sem coragem de me juntar a eles, que eram dois rapazes e quatro raparigas.

Ao fim de algum tempo, uma das garotas deixou o grupo e veio ter comigo, insistindo para que fosse com ela. Continuei a dizer que não, mas logo de seguida um dos rapazes juntou-se a ela, forçando-me a ir ter com eles, até que vieram todos ao meu encontro. Foi um choque, porque eu não compreendia porquê tanta insistência. Eu ainda tinha o registo de que eu não era ninguém que valesse a pena, que não agradava a ninguém, que ninguém gostava de mim, etc. E aquela insistência deles começou a baralhar as minhas ideias.

As duas raparigas começaram a elogiar a minha toilette, o meu vestido, etc. É que todos eles estavam vestidos na maior simplicidade. Jeans e t-shirts, sem nada de festivo. Roupa de todos os dias. Por isso, de facto, eu destacava-me e muito. Mas na altura não tinha essa noção. Os rapazes começaram a dizer para ir dançar com eles e todos queriam, porque queriam muito que me juntasse ao grupo, porque estava muito gira, muito tudo e porque estava tão sozinha, o que era uma pena. E assim foi que me arrastaram com eles. Entrei no ritmo, comecei a mexer-me, a minha energia começou a fluir e de repente tudo mudou. Agora tinha valido a pena ir até àquele lugar, ainda que fosse com a “freira”, que eu até já tinha esquecido. E a música acabava, para logo começar outra que não nos dava tréguas na dança. A festa estava apenas a começar. Em todo o caso, eu já falava com todos e todos sorriam felizes de me ter aberto e de estar com eles. Era entrar noutro mundo. E como era bom! Até parecia que nos conhecíamos já há muito tempo…

Até que chegou a meia-noite e o grupo decidiu sair dali e ir para a Ribeira. A Ribeira! O que seria a Ribeira? Tendo a concordância de todos, decidiram que eu iria também com eles. Oh, como é que isso ia ser? Lá lhes expliquei que tinha ido com aquela pessoa e não podia desrespeitar as ordens da minha tia. Mas eles não queriam saber disso para nada. Eram jovens e queriam apenas o direito de se divertirem na noite de passagem de ano. E continuaram a convencer-me, dizendo que tinham uma carrinha com lugar para todos e depois me deixariam em casa.

Não sem receio, fui falar com a “freira”, que não era freira, dizendo-lhe que eles me tinham convidado para ir com eles à Ribeira, mas é claro que ela não queria de jeito nenhum, dizendo que a minha tia tinha confiado na pessoa dela para tomar contar de mim e, portanto, não podia ir. Foi quando me dei conta de que não podia deixar que ninguém tomasse conta de mim, porque não precisava. Eu sabia! Sempre soube. Sempre fui responsável o suficiente para cuidar da minha irmã e dos meus primos e agora para mim, já com dezoito anos, porque haveria de precisar de cão de guarda? Era ridículo e era um direito que eu tinha, fazer o que me apetecia, especialmente numa noite diferente.

Foi chamar o irmão padre que começou a pregar-me um sermão, mas eu peguei na minha mala e juntei-me ao grupo que, por sinal, não minto, quando digo que deliraram por me terem no meio deles. E lá fomos todos na carrinha à Ribeira, segundo eles, para beber um cacau quente. Eu estava feliz que não cabia em mim, por aquela oportunidade de ouro que pela primeira vez em tantos anos me fazia sentir uma pessoa normal e não fazia ideia de que aquele ritual do cacau da Ribeira fazia parte da tradição da noite alfacinha. Até então a minha vida só tinha dias. As noites eram apenas para dormir e sonhar, às vezes coisas boas, outras nem tanto.

E assim, a noite estava finalmente a surgir. No meio daquela multidão do mercado, na fila para o cacau quentinho da Ribeira, eu não fazia a menor ideia de onde estava e muito menos de que tudo aquilo existia. Era um outro mundo que brotava e me fazia enxergar a vida do outro lado. A minha alma vibrava, tal qual o brilho do meu vestido prateado, que as garotas e até os rapazes estavam encantados com tudo comigo. Eles percebiam a minha timidez e a minha escassez de conhecimento da vida. Tudo aquilo para eles era perfeitamente corriqueiro e banal. Já para mim era como que um despertar. Não era só a minha alma que vibrava. O meu espírito planava e o cacau caía em mim como um bálsamo que embriagava os meus sentidos todos e mais alguns.

Aquilo, sim, era uma verdadeira festa, porque as pessoas estavam lá e viviam aquilo duma maneira intensa e eu com eles. Os meus olhos abriam pela primeira vez, vendo as luzes da noite, as luzes que durante o dia estavam escondidas. No dia seguinte, eu ia ter que aturar a tia por causa daquela aventura, mas naquele momento eu faria o que me apetecesse e nada nem ninguém mo impediria. A minha intuição dizia que podia confiar no grupo que a vida enviara para me fazer viver e me devolver a alegria há muito perdida e esquecida. Mas agora ela estava de volta e eu teria toda a minha vida para recordar aquela noite tão especial, onde nada mais aconteceu do que o absolutamente normal, mas que para mim, estava completamente fora de alcance.

E fomos ao cacau da Ribeira. E todos juntos celebrámos o ano novo, um ano verdadeiramente novo para mim. Não importava onde era nem com quem era. Era o que era, simplesmente. Eu nem sabia o nome deles, nem donde vinham nem para onde iam. Vinham da vida e iam para a vida. Uma vida onde havia alegria, felicidade e onde ninguém fazia nada de errado. Eles desfaziam-se em amabilidades comigo e eu não entendia porquê. Porque ali, se alguém estava de fora, era eu, não eles. Eles pertenciam àquele mundo. Eles tinham outra perspetiva da vida que até então eu nunca tinha tido. Eles abriram as portas para mim, ajudando-me a dar um passo que não foi pequeno, para continuar a minha caminhada no presente e que teria uma enorme repercussão no futuro.

Por volta das duas horas da manhã, começou a debandada. Entrámos todos na carrinha, com eles dizendo para não me preocupar que me deixariam à porta de casa. E assim foi. Cheguei a casa sem me importar com as consequências. Mas a partir daí tudo mudaria. Eu não deixaria que ninguém nunca mais me desse ordens e me proibisse de fazer o que eu queria. Nunca mais ninguém me diria “vai por aí”. Eu só iria onde a minha cabeça e o meu coração mandassem. E isso eu descobri naquela noite. Na noite do meu primeiro fim de ano, onde eu acabava de compreender que viver era imperioso e era para isso que cá estávamos. E que todos nascemos com direito à liberdade. Por isso eu estava determinada a fazer valer os meus direitos como ser humano que era, pura e simplesmente.

Aquela noite não se limitava a um fim de ano especial ou não. Aquela noite trazia a força e o empurrão necessários para eu abrir os olhos e ganhar coragem para, de uma vez por todas, entrar na vida toda inteira, com todo o meu ser e toda a minha intensidade e trabalhar a todos os níveis para conseguir chegar onde a vida me pudesse levar, dentro das minhas possibilidades. Daí para diante eu iria apreciar a vida em todas as suas dimensões. Viajar no tempo real, aproveitar todas as oportunidades de crescer espiritualmente e aplicar esse aprendizado na vida em concreto. Eu cairia muitas vezes, mas também teria todas as capacidades de sempre me conseguir reerguer, para continuar a minha caminhada por onde quer que ela passasse, mas sempre e somente por minha conta e risco, onde eu seria a única responsabilizada e mais ninguém.

Na terra, as luzes da cidade brilhavam a todo o vapor. No céu, lá bem no alto, uma estrela brilhava muito mais, iluminando o meu caminho com todo o seu esplendor.

  

sexta-feira, 29 de abril de 2022

O caminho de volta - 72

 

Sempre que tomamos uma decisão, temos que pensar na responsabilidade que a mesma acarreta. Uma tomada de decisão é um caminho que se abre ou que se fecha. Tudo depende da boa ou má escolha. A consciência tem que estar mais ativa do que normalmente e as coisas têm que ser bem pensadas. Os caminhos que se abrem também se podem fechar. E há caminhos para ir e vir, mas há caminhos só de ida, ou seja, que não têm volta.

Por exemplo, lembro-me que na minha juventude tive muitos amigos e amigas que se drogavam, alguns com mais frequência do que outros e alguns com drogas mais leves e outros ainda com drogas mais pesadas. Mas todos eles gostavam disso. Sim, porque na verdade, nunca conheci ninguém que se drogasse sem não gostar de o fazer. E se o faziam e gostavam é porque era bom. Esse é que é o problema. Estranho, não?!

Tal como o tabaco, eu era ainda adolescente quando as minhas colegas começaram a fumar. Em casa, a minha própria tia me deu um dia um maço de tabaco LM, porque não queria que eu fumasse às escondidas, o que não deixa de ter a sua piada. Que me lembre, peguei duas vezes em cigarros, por insistência das minhas colegas de liceu. E tanto da primeira vez como da segunda, percebi que não gostava. Aquilo era horrível. Sabia mal, tinha um cheiro que me incomodava… no que elas até concordavam comigo. Mas aquilo não era exatamente para gostar. Era preciso fumar para agradar, ter estilo e para os rapazes repararem e as acharem muito moderninhas, etc. Havia uma soma de razões interminável para o fazer, mas nenhuma para não o fazer.

Contudo, ao segundo cigarro, a minha decisão estava tomada. Não iria obrigar-me a fazer uma coisa da qual não gostava e até era um frete desgraçado. Porque o faria? E nessa altura, há quarenta e muitos anos, ainda nem se falava no mal que o tabaco fazia, nem sequer se pensava em campanhas antitabagistas. Enfim, tudo se podia fazer. Tabaco e droga estava na moda. Por acaso acho que são coisas que estão sempre na moda, infelizmente. Face ao resultado da minha negação ao tabaco, achei por bem devolver o maço de LM à minha tia que, em vez de ficar satisfeita e aliviada, pelo contrário, se mostrou um pouco contrariada, dizendo que apenas não queria que eu fumasse às escondidas. Se eu quisesse mesmo fumar, de certeza que não lhe iria devolver o tabaco, portanto, nada fazia sentido.

Voltando às drogas, de facto muitos dos meus amigos consumiam e alguns puseram termo às suas vidas por terem ingerido over doses. Se aquilo era bom ou não eu nunca o saberia, porque era daquelas coisas que também ninguém me faria ingerir. Por mais que fosse aliciada para o fazer, não tinha a menor vontade de experimentar. Experimentar era um caminho que se abria e que podia não ter volta. E esse caminho eu não estava interessada em fazer. Para mim não.

Quando em criança vivi na Guiné-Bissau, por o meu pai ser militar, eu era uma aventureira nata. Todavia, as minhas aventuras eram devidamente calculadas, para não saírem furadas. E entre as muitas aventuras em que me metia, uma delas era muito especial. Não posso dizer que a mais perigosa, porque outras havia, mas era bastante arrojada. Em determinadas noites do mês, penso que tinha que ver com a lua, ouvia o batuque dos indígenas, que depois mais tarde percebi que eram os feiticeiros nos seus habituais rituais. A questão é que o meu quarto, onde eu dormia com a minha irmã de dois anos, dava para as traseiras, que era o mato. E por causa do calor, as janelas estavam permanentemente abertas, protegidas por grades de rede por causa dos mosquitos. E eu não conseguia dormir por causa do batuque que ouvia no mato. Achava aquilo estranho, mas demasiado fascinante para ficar na cama a ouvir, sem ver de perto o que lá não sei onde se passava. E não querendo perder a festa, tirava a rede e com uma cadeira junto à janela, saltava para a rua. Uma vez do lado de fora, voltava a encostar a rede e depois de me certificar de que lado vinha tudo aquilo, tomava o rumo do som.

Só uma coisa me assustava verdadeiramente: as cobras. Por isso, apenas em cuecas por causa do calor, pé ante pé para fugir à picada das cobras – achava eu -, a minha atenção era dirigida para onde o som me levava, sendo que tinha plena consciência de que não podia perder a noção da orientação que tomava para não correr o risco de não conseguir voltar para casa. Isso é que não podia acontecer de maneira nenhuma.

E de todas as vezes que me embrenhava mato adentro, para esta louca aventura, que não foram tão poucas as vezes, sabia perfeitamente que, não sabendo para onde ia, não podia perder a noção do caminho que me levaria de volta para casa. Sempre atenta ao ritmo que chamava por mim, mas sempre olhando para trás, para perceber a direção do caminho de volta, conseguia chegar, ficar o tempo que me apetecia, contra toda a estranheza dos feiticeiros que parecia que ficavam assustados com a minha presença, em que às vezes ficava de pé, outras vezes sentada no chão, de pernas cruzadas, admirando todo aquele insólito espetáculo com os seus próprios instrumentos e as suas vestes muito peculiares e diferente de tudo o que eu já tinha visto.

Quando já estava cansada ou o sono começava a chegar, da mesma maneira discreta e silenciosa com que tinha chegado, abalava, rumo ao caminho de volta, com toda a atenção, para uma vez mais não me perder. Portanto, bem cedo aprendi que os caminhos vão e vêm e se nos perdermos neles corremos o risco de não mais voltar.

Por isso, quando na minha adolescência os meus amigos se drogavam e me queriam introduzir nesse caminho eu sempre pensava que em vez de me quererem levar para lá, eles deveriam era querer voltar, para deixar de vez aquele caminho, que quanto a mim, não interessava. Mas eles não pensavam assim. Eles só queriam ir, ir, ir… aumentando cada vez mais a distância entre o ponto de partida e a chegada de um destino completamente desconhecido e sem rumo, com grandes probabilidades de não ter mais volta.


sábado, 16 de abril de 2022

Gabriel - 71

 

Era o mês de maio e Conchinha, tia da minha nora, estava prestes a fazer mais um aniversário, que sempre festejava em grande estilo, com toda a família e alguns amigos mais próximos. Por isso, uma vez mais, estavam todos reunidos para festejar num restaurante previamente contratado e fechado para o efeito. Concha, como uma boa Angolana, gostava de festa. Tudo para eles era motivo para festejar, o que muito me agradava. A minha vida era um pouco monótona, porque só trabalho e casa e nada mais, e aquela família vinha a calhar, com todos os seus costumes e tradições.

As pessoas começaram a chegar e a tomar os seus lugares e aos poucos o espaço ia ficando composto. De vazio começou a encher. Estava na hora e todos tinham fome, mas faltavam duas pessoas: a prima Xaxão e o filho Lito. Toda a gente queria começar, mas Concha insistia que sem os primos chegarem não daria início ao almoço. Enquanto isso, íamos conversando uns com os outros, até que perguntei à minha nora quem eram os que faltavam, mas ela disse que achava que eu não os conhecia, apressando-se a mencionar que eram muito boas pessoas e que ela gostava particularmente do primo, porque era uma pessoa especial, muito educado e tudo de bom. Fiquei bem impressionada, mas realmente nunca tinha ouvido falar deles.

E nesta espera toda, de repente, duas pessoas aproximam-se do lado de fora da porta do restaurante. Viriam ao engano, uma vez que estava aberto só para nós?! Ao mesmo tempo ouço vozes: “ah, os primos chegaram”. Então não era engano, eram mesmo eles, o que era óbvio, por serem Angolanos… e finalmente iríamos começar a almoçar. Contudo, aquela chegada tinha-me deixado sem palavras e um pouco baralhada, porque longe de imaginar…

Em trinta e oito anos que trabalhei na RTP conheci muita gente e podia ter conhecido ainda muito mais. Se tomasse o cafezinho da ordem, se fumasse, etc…, mas como nunca fiz nada disso, não tinha essas oportunidades para conhecer mais gente. Por isso que digo que conheci muita gente, naturalmente, por ser uma empresa muito grande, mas é claro que podia ter conhecido muito mais.

Quando a RTP e a RDP se juntaram numa empresa só e os trabalhadores ficaram juntos, acabei por conhecer ainda mais pessoas e no meio desta confusão toda, onde aconteceram muitas histórias, um dia cruzo-me com um indivíduo de bom aspeto, bonitão, Angolano de pele muito clara. Um homem interessante, que antes eu nunca tinha visto, mas os nossos olhares não foram indiferentes. Ambos sentimos uma certa atração ou um certo magnetismo, talvez pelo facto de ser Angolano e ter uns olhos azuis incríveis… e não pelo facto de serem azuis, que não são os da minha preferência. Gosto de uns olhos escuros, bem escuros e profundos, mas no caso dele, sendo Angolano, achei muito curioso. Em todo o caso, não tinha porque dar importância ao assunto. Mas era funcionário, com toda a certeza, porque não tinha nenhuma identificação especial.

E este encontro repetiu-se algum tempo depois, sendo que se deu a mesma surpresa, o mesmo choque de magnetismo, o que mais uma vez não escapou a nenhum de nós. E também, mais uma vez, a coisa passou, porque não havia motivo para ser diferente. Não estava interessada em descobrir ou perceber fosse o que fosse.

Mais tarde, um outro dia qualquer, uma terceira vez este cruzamento aconteceu, só que desta vez, ele chegou bem perto de mim e sem mais nem menos, abraçou-me e beijou-me nos lábios, deixando-me completamente atónita e desconfortável, pelo que o fiz parar imediatamente com aquela maluquice que não tinha cabimento.

Ele era um indivíduo bonito, com um ar educado, mas com uma pitada de malandrice. E naquela empresa realmente havia de tudo. Gente capaz de todas as atitudes possíveis e imaginárias. Mas nunca pensei que tivesse a ousadia de fazer uma coisa daquelas, independentemente de onde estava, de quem estava, que quem viu ou não. E muito menos comigo, com quem não tinha a menor intimidade. Para mim era uma loucura completa. E o que fiz foi pirar-me o mais depressa possível, tentando digerir o que tinha acabado de acontecer. Isto passou, até que acabou por cair no esquecimento.

Por esta altura eu era secretária da Direção Técnica, pelo que estava rodeada de engenheiros e técnicos de vária natureza. E por ser secretária da Direção, tinha uma posição estratégica naquele espaço, para estar o mais acessível tanto aos de dentro da Direção, como aos de outros serviços.

Um dia entra um indivíduo pelo open space adentro, que por força das circunstâncias veio parar à minha frente. Quando olho para ele, era o tal, o “atrevido”. Lá vinha ele com o seu ar de menino bem comportado e pelo menos ali não se atreveria a repetir a mesma brincadeira ou outra qualquer. Ao ver-me claro que ficou surpreendido. Agora já tinha a minha referência, porque até então, não sabíamos nada um do outro.

Ambos sorrimos discretamente e como era minha obrigação, perguntei-lhe o que desejava. Gabriel, que trabalhava na Informação da Rádio, vinha pedir um certo material técnico para uma reportagem que ia fazer em Angola. Fui ao gabinete do diretor e relatei o necessário, contudo, o diretor do momento, porque por ali passaram muitos diretores, cada um mais incompetente que o outro, não mostrou qualquer empenho em resolver o assunto, facto que muito estranhei. E perante o seu distanciamento e a sua falta de interesse, a minha cabeça imediatamente começou a trabalhar. Ali passava-se alguma coisa que escapava ao meu entendimento. Seria por ele ser Angolano? Não, não era possível. Ambas as empresas estavam cheias de gente das áfricas e eu nunca tinha percebido ter havido um caso de racismo. Além disso trabalhávamos com a Cooperação com os países africanos, o que era mais um motivo para resolver o problema de Gabriel, ou fosse de quem fosse. Trabalho é trabalho, mas sua excelência o diretor deixou bem claro, com todas as letras, que não tinha como o ajudar e que resolvesse o assunto como quisesse.

Que coisa tão estranha? O rapaz estava no sítio certo. Nós éramos a Direção Técnica e também não era por ele ser da Rádio, porque ele próprio, o diretor, era da Rádio! O que diabo estava a acontecer eu não sabia explicar. Mas alguma coisa estaria por detrás daquela cena, isso eu não tinha dúvidas. E para me certificar comecei a fazer perguntas, na qualidade de secretária, perguntas de carisma inocente, mas não, aqui e ali, ponta aqui, ponta ali, mas a única coisa que percebi é que ele não gostava do Gabriel e, portanto, como agora estava na qualidade de diretor, achou que tinha o direito de fazer o que entendesse.

Achei isto perfeitamente fora de contexto e não queria ouvir nada daquilo. Para mim, atitudes destas não eram toleráveis. Ninguém tinha o direito de se aproveitar do “poder” para evidenciar o seu ego e agora é tudo meu. Uma desclassificação total. Porque se alguém pensa que enriquece pessoalmente, interiormente, com atitudes destas, engana-se redondamente. Mais uma vez o profissionalismo estava em falta total. Se fosse eu que mandasse era imediatamente despedido, pura e simplesmente. Mas como eu não era ninguém, saí do gabinete, decidida a, de alguma outra forma, tentar ajudar o Gabriel. Fosse quem quer que fosse, eu sempre fazia o que podia para resolver e solucionar, porque era para isso que eu trabalhava e me pagavam. E fui ter com um engenheiro, pedindo-lhe que resolvesse o problema cuidadosamente. Nem lhe disse que já tinha falado com o diretor. Agora era por minha conta e risco e queria ver quem é que me ia impedir.

Gabriel era um indivíduo inteligente e de parvo não tinha nada. Percebeu perfeitamente que havia problema. Talvez ele tivesse outros elementos que eu não tinha. Mas ele era discreto e calmo. E para ser muito franca, ficou muito impressionado com a maneira como me empenhei para lhe resolver o problema, ultrapassando todas as barreiras. Agradeceu muito e foi-se embora. Uns dias depois iria então para Luanda fazer mais uma reportagem, pois era esse o seu trabalho. Depois disso, não voltei a vê-lo, não nos voltámos a cruzar.

 

Agora estávamos todos no Restaurante quando a porta se abriu e os últimos convidados acabavam de entrar, acompanhados por Conchinha que, uma vez mais, começou a fazer as honras da casa que lhe cabiam e que ela tanto gostava de fazer. Para mim era alargar o conhecimento de mais uns membros daquela numerosíssima família, que nunca mais acabava. Havia sempre mais alguém para conhecer. Desta vez, a prima Xaxão e o filho Lito.

Concha começou os cumprimentos e quando chegou à minha pessoa, ela indicou, a Xaxão, muito prazer, e o Lito. O Lito e eu ficámos a olhar um para o outro, sem saber o que dizer. Concha começou a dizer o meu nome e a minha função na RTP, coisa que ela sempre fazia e me deixava um pouco irritada. Mas antes de continuar, interrompi para dizer: nós já nos conhecemos.

Ah, já!? Concha pareceu um pouco surpreendida, mas logo ligou as coisas. Ah, sim… esboçando um sorriso adequado. Então já se conhecem(!?)… etc., etc., etc…

Efectivamente já tínhamos a nossa história, com uma pequena diferença. O Gabriel que estava agora na minha frente, tinha olhos castanhos, tal qual veio ao mundo, sem as habituais lentes de contato azuis, que sempre fazia questão de exibir e que tanto me intrigavam(!?)…